Processo nº 103/2015 Data: 12.02.2015
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.
In dubio pro reo.
Pena.
SUMÁRIO
1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.
2. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
3. Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva.
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
4. Provado estando que a “maior parte” do estupefaciente apreendido – com peso líquido de 18.562g – era pela arguida destinado à venda ou cedência a terceiros, censura não merece a sua condenação como autora da prática de 1 crime de “tráfico” do art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, excessiva também não sendo a pena de 4 anos de prisão que lhe foi fixada por tal ilícito.
O relator,
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Processo nº 103/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, com os sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo, a final, a ser condenada como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1, da Lei n.° 17/2009, na pena de 4 anos de prisão, e 1 outro de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da mesma Lei, na pena de 2 meses de prisão.
Em cúmulo, fixou-lhe o Colectivo a pena única de 4 anos e 1 mês de prisão; (cfr., fls. 471 a 480, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada com o decidido, a arguida recorreu.
Na sua motivação e conclusões de recurso, imputa à decisão recorrida o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “erro na aplicação do direito”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser considerada autora de 1 crime do art. 11°, n.° 1 – e não art. 8°, n.° 1 – da Lei n.° 17/2009, considerando também excessiva a pena aplicada; (cfr., fls. 494 a 502-v).
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Em resposta, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 510 a 514-v).
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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I..
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Em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls. 495 a 502 verso, a recorrente/2ª arguida A assacou, ao douto Acórdão sob sindicância, o erro notório na apreciação de prova, a insuficiência para decisão da matéria de facto provada, a violação do princípio in dubio pro reu, e a demais severidade da pena aplicada - a de 4 anos e 1 mês de prisão efectiva.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas e cabais explanações da ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.510 a 515 verso), no sentido do não provimento do presente recurso.
No que diz respeito ao «o erro notório na apreciação de prova» consagrado na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica e consolidada a seguinte jurisprudência (cfr. Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014):
O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
No caso sub iudice, o raciocínio da recorrente dá-se a entender que o «erro notório na apreciação de prova» consiste em não há prova segura para suportar o 22° facto provado elencado no Acórdão em crise. O que toma patente e líquido que a argumentação da recorrente não integra em nenhuma das modalidades delineadas reiteradamente pelo TUI.
Bem, os argumentos aduzidos em sede do «erro notório na apreciação de prova» mostram nitidamente que ele pretendeu pôr em crise, no fundo, a apreciação e livre convicção do Tribunal a quo sobre os vários meios de prova, tentando sobrepor a sua valorização sobre a do Tribunal.
O que justifica que se recordar o ensinamento do Venerando TUI no seu Processo n.°13/2001: A recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador.
De outro lado, interessa não olvidar (Acórdão do Venerando TSI no Processo n.°470/2010): Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
Em conformidade com tais sensatas jurisprudências, afigura-se-nos inquestionável que não se verifica o invocado «erro notório na apreciação de prova», sendo os argumentos da recorrente supra transcritos vedado pelo preceito no art.114° do CPP.
Ora, a fim de fundamentar a insuficiência para decisão da matéria de facto provada e a violação do princípio in dubio pro reu, a recorrente invocou apenas que o Tribunal a quo não apurou a quantidade concreta dos estupefacientes apreendidos para ser fornecida a outrem.
Não obstante a ser certo que não foi determinada a quantidade concreta, no entanto, não é menos verdade que o Tribunal a quo apurou que a «maior parte» seriam fornecida a outras pessoas. A expressão «maior parte» significa a percentagem superior a metade.
Nesta medida, e atento ao peso líquido dos estupefacientes apreendidos que atinge a 18.562g, não há dúvida de que a qualificação jurídica no Acórdão in questio é inatacável, não ferindo nem a insuficiência para decisão da matéria de facto provada, nem infringindo o princípio in dubio pro reu, não podendo ser convolada para o crime p.p. pela disposição no n.°1 do art. 11° da Lei n.°17/2009.
Tendo em consideração o elevado grau de ilicitude, a intensidade do dolo, a personalidade da recorrente, e designadamente os antecedentes criminais, em consonância com a respectiva moldura penal, temos por concludente que não se verifica a invocada demais severidade da pena aplicada.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 540 a 541).
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 474 a 477, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Insurge-se a arguida contra o Acórdão do Colectivo do T.J.B. que a condenou nos termos atrás descritos.
Considera que o mesmo padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e de “erro na aplicação do direito”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser considerada autora de 1 crime do art. 11°, n.° 1 – e não art. 8°, n.° 1 – da Lei n.° 17/2009, considerando também excessiva a pena aplicada.
–– Comecemos pelas questões colocadas em relação à “matéria de facto”.
Pois bem, repetidamente temos considerado que o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 23.01.2014, Proc. 756/2013, e mais recentemente, de 06.11.2014, Proc. n.° 571/2014).
Por sua vez, é sabido que “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015 do ora relator).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015).
Dito isto, evidente é que nenhuma razão tem a recorrente quanto às questões que coloca em sede do julgamento da matéria de facto, sendo de se subscrever, na íntegra, o que sobre as mesmas se consignou no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto e que aqui se dá como reproduzido.
Com efeito, manifesto é que inexiste qualquer “insuficiência”, pois que o Colectivo a quo pronunciou-se sobre toda a “matéria objecto do processo”, elencando a que resultou provada e identificando a que resultou não provada.
Por sua vez, e dado que a recorrente, ainda que de “forma lateral”, coloca a questão, evidente é também que violado não foi “princípio in dubio pro reo”, pois que este “identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Como temos entendido, “perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. o Ac. de 06.04.2000, Proc. n.° 44/2000, e mais recentemente, de 24.07.2014, Proc. n.° 311/2014).
Por sua vez, e como entende a doutrina, segundo o princípio “in dubio pro reo” «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo - quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615).
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do STJ de 29-4-2003, proc. n.º 3566/03, in “www.dgsi.pt”).
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 9-5-2005, proc. n.º 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
E, no caso, lendo-se o Acórdão recorrido, não se alcança onde, como ou em que termos, tenha tido o Colectivo a quo qualquer “dúvida” aquando da sua decisão sobre a matéria de facto, adequado não sendo de considerar que decidiu contra o princípio em questão.
Quanto ao invocado “erro”, igualmente pouco há a dizer.
De facto, não se vislumbra – nem a recorrente identifica – a violação de nenhuma regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, constatando-se que mais não faz que tentar impor a sua versão dos factos, afrontando, sem nenhuma razão, o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 114° do C.P.P.M., o que, como é óbvio, não colhe.
–– No que à “qualificação jurídico-penal” diz respeito, a mesma é a solução, já que, no caso, provado tendo ficado que a “maior parte” do estupefaciente apreendido – com peso líquido de 18.562g – era destinado ao “tráfico”, totalmente inviável é a pretendida alteração da qualificação jurídico-penal efectuada, já que verificados não estão os elementos típicos do art. 11° da Lei n.° 17/2009, integrando antes a conduta – como decidido foi – a prática de 1 crime de “tráfico” do art. 8° da dita Lei.
–– Em relação à(s) “pena(s)”, também não vemos qualquer margem para a sua redução.
O crime de “tráfico” é punido com a pena de 3 a 15 anos de prisão, e o de “consumo” com pena de prisão até 3 meses.
Atenta as ditas molduras, a matéria de facto provada (de onde se destacam os antecedentes criminais da ora recorrente), o seu dolo directo e intenso, as fortes necessidades de prevenção criminal, e os critérios dos art°s 40°, 65° e 71° do C.P.M., nenhuma redução das penas parcelares e única se nos apresenta como possível, sendo assim o recurso de improceder na sua totalidade.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará a recorrente a taxa de justiça de 6 UCs.
Macau, aos 12 de Fevereiro de 2015
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
Proc. 103/2015 Pág. 18
Proc. 103/2015 Pág. 19