打印全文
Proc. nº 573/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 05 de Março de 2015
Descritores:
-Solidariedade
-Conjunção
-Solidariedade dos devedores
-Responsabilidade contratual

SUMÁRIO:

I. A solidariedade de devedores só existe quando ela resulte da lei ou da vontade das partes (art. 506º, CC), sendo que tal vontade pode ser expressa ou tácita.

II. Na falta de indicação em contrário, entende-se que a pluralidade fica estabelecida conjuntamente; estaremos então perante obrigações parciárias.

III. No âmbito da responsabilidade contratual o regime-regra é a conjunção: cada um dos obrigados responde para com o credor por uma parte proporcional da prestação devida.

IV. É, em regra, conjunta, e não solidária, a responsabilidade dos arrendatários de uma fracção no pagamento das respectivas rendas.
Proc. nº 573/2014

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, casado, portador do BIRM n.º 5/XXXXX1/5, com o domicílio profissional em Macau, na XX, Lote XX, Edif. “XX”, “XX”, r/c, loja “XX”, executado no Processo de Execução de Sentença nº CV1-02-0001-CPE-B instaurado no TJB por B, casada com Óscar de Souza, no regime da comunhão de adquiridos, portadora do BIRM, n.º 5/XXXXX1/4 e com o domicílio profissional em Macau, na Alameda de XX, s/n, Edif. “XX”, r/c, loja XX, deduziu embargos à execução e oposição à penhora que naquele processo teve lugar.
*
Por decisão de 12/07/2013, foram os embargos julgados procedentes.
*
B, embargada, interpôs então recurso jurisdicional de tal decisão, cujas alegações concluiu da seguinte forma:
«a) Vem o presente recurso interposto da decisão supra referida que julgou “...procedentes os presentes embargos de executado, devendo a embargada liquidar a responsabilidade de cada um dos executados na execução, para que desse modo se faça a sua cobrança coerciva”.
b) Entende a recorrente, ao contrário da sentença recorrida, salvo o devido respeito, que existe solidariedade passiva de ambos os executados no pagamento da quantia exequenda, porquanto esta se reporta a rendas não pagas de um contrato de arrendamento em que ambos eram arrendatários.
c) Ora, a condenação dos executados, deriva de um incumprimento contratual destes, no tocante a um contrato de arrendamento que ambos outorgaram com a exequente, embargada e ora recorrente.
Neste, ficou estipulado que o montante da renda acordada seria paga por ambos os arrendatários e não que cada um seria responsável por metade da renda fixada.
d) Decorre, pois, da “vontade das partes” a solidariedade dos executados no tocante ao pagamento das rendas.
e) No arrendamento dos autos não existe discriminação contratual do montante que cada um dos arrendatários deveria pagar - mas apenas uma renda - cuja solidariedade resulta de uma interpretação dos termos contratuais, ou seja, se manifesta tacitamente do conteúdo do contrato ou, na expressão de Manuel de Andrade (obra citada, nota ao art.º 217º), “com um grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões”.
f) E esta interpretação é a que resulta do pedido na acção de despejo e o que resulta expressamente da condenação em 1ª e 2a instâncias.
g) A referência condenatória é a um valor total a pagar pelos, então, réus; e não a um valor correspondente a metade do mesmo, a suportar por cada um dos réus.
h) Mensalmente, enquanto durou (e foi cumprido) o contrato, os arrendatários pagavam uma renda, e não metade cada um.
Agora, são solidariamente responsáveis pelas rendas não pagas e, também, não por metade cada um.
i) Mostram-se violadas as normas dos art.ºs 505º e 506º do C.C..
Termos em que, como se peticiona, deverá ser dado provimento ao presente recurso.
Assim se fazendo JUSTIÇA!».
*
O embargante A respondeu ao recurso, concluindo as respectivas alegações da seguinte maneira:
«A) Por douta sentença proferida em 12/07/2013, entendeu o douto tribunal julgar procedente os embargos deduzidos pelo ora Recorrido e que em consequência, deveria a embargada, ora Recorrente, liquidar a responsabilidade de cada um dos executados na execução, para tomar possível a sua cobrança coerciva.
B) A Recorrente não partilha do mesmo entendimento por entender que o não pagamento das rendas no âmbito de um contrato de arrendamento gera solidariedade passiva entre os arrendatários/executados
C) Sendo certo que, no âmbito do direito civil o regime regra é o das obrigações conjuntas.
D) Desta forma, a renda deverá manter-se fiel à regra da divisibilidade.
E) Porquanto, nos termos do artigo 506º do Código Civil de Macau, a solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes.
F) Sucede que no caso em apreço, não se verifica resultar da lei, nem da vontade das partes, nem sequer da decisão condenatória - a base do título executivo - que a obrigação decorrente para os executados seja a da solidariedade passiva.
G) Ora, dado que os RR. nos autos da acção de despejo, não foram condenados como devedores solidários, nem a Autora pediu a condenação dos mesmos corno devedores solidários, não pode vir agora a ora Recorrente alegar que existe solidariedade passiva entre os executados e exigir ao Recorrido o pagamento do valor global da dívida exequenda.
H) Sendo o regime regra o da conjunção, e não tendo a Recorrente determinado o montante exacto a pagar por cada um dos executados, antes da promoção da acção executiva, o Recorrido desconhece o valor da dívida exequenda que lhe compete regularizar.
I) Pelo exposto resulta não estarem reunidos todos os pressupostos processuais para o prosseguimento da acção executiva, porquanto a obrigação exequenda terá de ser certa, líquida e exigível.
J) Por conseguinte, deverá a Recorrente liquidar a responsabilidade de cada um dos executados na execução, para que se possa fazer a sua cobrança coerciva.
K) Assim, dever-se-á manter a douta decisão proferida nos autos dos Embargos à Execução.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer a V.ªs Ex.ªs que seja negado provimento ao Recurso interposto, mantendo-se na íntegra a douta decisão recorrida, como é de JUSTIÇA».
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença consignou a seguinte factualidade:
1- Por sentença transitada em julgado e proferida nos autos em apenso foram o embargante e C condenados a pagar à embargada as rendas vencidas e não pagas ao valor mensal de HKD11.500,00, desde Maio de 2001 a Março de 2002, no valor de HKD126.500,00, correspondentes a MOP130.548,00, acrescida dos juros moratórios desde a data da citação até efectiva e integral pagamento das rendas em dívida.
2- A embargada propôs por apenso à acção declarativa aludida em 1. uma execução para pagamento de quantia certa, sob a forma sumária, através da qual requer que o embargante e C paguem solidariamente os montantes constantes da douta sentença condenatória.
Acrescenta-se ainda a seguinte factualidade que dos autos emerge:
3 - A recorrente, B deu de arrendamento a A e D, em chinês romanizado “D”, a fracção R/C, designada “F/R/C”, para comércio, do prédio sito na XX, Lote XX, com os números XX, da Av. XX, nºs XX, da Av. XX, nºs XX da Av. XX e nºs XX da Rua XX, prédio inscrito na matriz predial da freguesia da Sé, sob o nº 7XXX3;
4 - A recorrente intentou no TJB uma acção de despejo contra aqueles arrendatários a que coube o nº CV1-02-0001-CPE;
5 - No decurso da acção, os RR restituíram o locado à autora, vindo a ser proferida sentença em 10/04/2008, que julgou a acção procedente e condenou os RR a pagar à autora as rendas vencidas e não pagas nos valores acima referidos.
***
III – O Direito
É do seguinte teor a fundamentação da decisão impugnada:
«O artigo 820.º, n.º 2 e 4 do Código de Processo Civil impõe ao executado que cumule com os embargos à execução a oposição que tenha a fazer às penhoras já realizadas.
São fundamentos dos embargos à execução baseada em sentença, entre outros, a incerteza, iliquidez ou inexigibilidade da obrigação exequenda, não suprida na fase preliminar da execução, tal como prevêem os artigos 697.º, e) ex vi do artigo 375.º, n.º 3 ambos do Código de Processo Civil.
É um único o fundamento destes embargos: o título executivo não prevê a solidariedade da dívida exequenda e, como tal, segundo defende o embargante deve a exequente/embargada liquidar a responsabilidade de cada um dos executados relativamente a tal obrigação.
A propositura da acção executiva pressupõe o incumprimento de uma obrigação que esteja qualitativamente determinada, seja exigível e líquida, sendo que quanto à liquidez englobará a definição da parte proporcional da obrigação que cabe suportar a cada um dos executados.
Posto isto, e ressalvando sempre melhor entendimento, cremos assistir razão ao embargante na tese que defende.
Tendo em conta a natureza do título dado à execução, para definir a natureza das obrigações contraídas pelos executados importa apenas analisar o segmento decisório da douta sentença, não sendo agora possível apurar a origem dessas obrigações por referência ao contrato de arrendamento comercial celebrado entre as partes.
Conforme se deu como assente em 1., os executados (ora embargante e C) foram condenados a pagar à embargada as rendas vencidas e não pagas ao valor mensal de HKD11.500,00, desde Maio de 2001 a Março de 2002, no valor de HKD126.500,00, correspondentes MOP130.548,00, acrescida dos juros moratórios desde a data da citação até efectiva e integral pagamento das rendas em dívida.
A sentença definiu claramente que existe uma obrigação plural do lado, passivo mas nada referiu, no entanto, quanto à sua natureza solidária, sendo certo que no âmbito do direito civil o regime regra é o das obrigações conjuntas, uma vez que a solidariedade só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes (artigo 506.º do Código Civil).
Antunes Varela1 explica que nas obrigações conjuntas a prestação debitória fracciona-se ou reparte-se entre os vários sujeitos da relação, cada um dos quais só tem que cumprir ou apenas tem o direito de exigir a respectiva fracção, dando o seguinte exemplo prático:
Se A, B e C deverem 300 contos a D, a quem tomaram de arrendamento um couto de caça, a obrigação for conjunta, cada um deles está obrigado a entregar 100 contos ao credor comum, e este apenas 100 contos pode exigir de cada um dos obrigados.
Ora, é exactamente este o caso dos autos, dado que os RR não foram condenados como devedores solidários, e nem o poderiam ter sido dado que a solidariedade passiva não foi sequer alegada na respectiva acção declarativa, nem a Autora pediu a condenação dos RR como devedores solidários, limitou-se a pedir a sua condenação no pagamento daquela que é a dívida exequenda.
Naturalmente que contendo o título executivo o acertamento da pretensão material da ora embargada, sobre essa pretensão não pode haver mais controvérsia, mais prova, não pode ser objecto da interpretação que a embargada agora propõe na sua resposta.
Em conclusão: era na acção declarativa, através da afirmação de que os RR eram responsáveis solidários pelo pagamento da dívida, que a ora embargada deveria ter caracterizado o seu direito, não sendo possível no processo executivo definir-se a obrigação como solidária.
Pelas razões expostas e sem necessidade de outras considerações, julgamos procedentes os presentes embargos de executado, devendo a embargada liquidar a responsabilidade de cada um dos executados na execução, para que desse modo se faça a sua cobrança coerciva.
Custas a cargo da embargada.
Notifique».
Face à fundamentação transcrita, entendemos que nada mais é preciso dizer. Isto é, a decisão recorrida contém os ingredientes jurídicos necessários e suficientes à decisão do litígio. Daí que façamos uso do dispositivo previsto no art. 631º, nº5, do CPC.
*
Limitar-nos-emos, somente, a acrescentar uns quantos aspectos em abono da solução alcançada:
Assim, por tópicos, diremos:
i) - A solidariedade de devedores só existe quando ela resulte da lei ou da vontade das partes (art. 506º, CC), sendo que tal vontade pode ser expressa ou tácita.
Neste sentido: Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, ed AAFDL 1º Vol, p. 378, 379; Pires de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 529; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág. 614.
Na falta de indicação em contrário, entende-se que a pluralidade fica estabelecida conjuntamente; estaremos então perante obrigações parciárias: haverá tantos vínculos quantos forem os sujeitos do lado plural da obrigação.
Neste sentido: Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 7ªed., pág.168; José Carlos Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, pág. 105; José Alberto González, in Código Civil anotado, Vol. II, pág. 262; Almeida Costa, ob. cit., pág. 610.
.
ii) Aliás, no âmbito da responsabilidade contratual (e é disso que se trata) o regime-regra é a conjunção: cada um dos obrigados responde para com o credor por uma parte proporcional da prestação devida, salvo se o contrário estiver estipulado entre as partes, expressa ou tacitamente, ou se tal resultar da lei.
Neste sentido: no direito comparado, ver Acs. do STJ, de 15/11/2002, Proc,. nº 246/10 e de 29/05/2007, Proc. nº 07A1159, 29/06/2010, Proc. nº 2933/05, entre outros).
.
iii) Assim é, também, no regime do arrendamento urbano, segundo Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 1999, pág. 321, para quem, fora dos casos de arrendatários unidos pelo casamento, “Se não se estabelecer a solidariedade na obrigação da renda, os arrendatários só poderão ser responsabilizados por ela conjuntamente (art. 513º, CC)” (sublinhado nosso).
.
Ora, aplicando estas orientações doutrinais e jurisprudenciais ao caso em apreço, logo se vê que, nem a lei determina um regime de solidariedade dos arrendatários, nem as partes estabeleceram expressamente esse regime no contrato em causa (nem tal foi invocado, sequer).
Por outro lado, também nada nos autos existe que nos permita inferir que alguma vez as partes tenham querido, ou o tenham induzido através de acções ou omissões, uma solidariedade passiva no contrato de arrendamento celebrado ao ponto de assumirem solidariamente a responsabilidade pelo pagamento destas rendas.
E nem podemos aceitar, sequer, que o pedido formulado na acção pela recorrente - de condenação dos RR no pagamento nas rendas vencidas e não pagas – tenha ínsita essa ideia de solidariedade.
Sendo assim, andou bem a sentença recorrida.
***
IV - Decidindo
Face ao exposto, e sem mais formalidades, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 05 / 03 / 2015

_________________________
José Cândido de Pinho
_________________________
Tong Hio Fong
_________________________
Lai Kin Hong
1 In Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, pág. 742.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------



573/2014 11