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Proc. nº 787/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 12 de Março de 2015
Descritores:
-Execução
-Título executivo
-Legitimidade activa

SUMÁRIO:

I. É titulo executivo o documento particular em que uma pessoa reconhece ser devedora a outra (ambas identificadas) de determinada obrigação pecuniária, nos termos do art. 677º, al. c), do CPC.

II. Se o nome do credor existente nos títulos é apresentado de forma simplificada como sendo C, e se a exequente, detentora dos títulos dados à execução, inclui essa identidade no seu nome, não pode essa simples circunstância específica de identidade levar ao indeferimento liminar - com o fundamento de que tal nome é muito comum na população chinesa e que, assim, ela não goza de legitimidade activa, face ao disposto nos arts. 58º, 68º, 394º, nº1, al. c), 677º, al. c), 695º, nº1, todos do CPC - devendo dar-se à executada a possibilidade de suscitar a ilegitimidade, dizendo, por exemplo, que não a reconhece como sua credora, que não a conhece sequer pessoalmente, que nunca lhe pediu dinheiro emprestado, etc., etc.

Proc. nº 787/2014

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, casada, residente em Macau, na XXX, titular de BIR nº XXX, moveu acção executiva no Tribunal Judicial de Base (Proc. nº CV3-14-0019-CEO) contra B, residente em Macau, na XXX, Taipa.
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Por despacho do 24/02/2014, foi o requerimento inicial da execução indeferido liminarmente com fundamento na insuficiente identificação do credor nos títulos dados à execução.
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Contra esse despacho foi pela exequente interposto recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A) Está a Recorrente convicta, ressalvado o devido respeito, que a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que indeferiu liminarmente a petição inicial, está ferida do vício de nulidade, por ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento (cfr. alínea d) do n.º 1 do art.º 571.º CPC).
B) O Tribunal a quo parece considerar, porque efectivamente o não diz, que a Recorrente não tem legitimidade para intentar a acção, pois o seu nome completo não consta dos títulos executivos.
C) Determina a alínea c) do art.º 677.º que, podem servir de base à execução, os documentos particulares assinados pelo devedor;
D) Pelo que, na acção executiva, as questões relativas à legitimidade das partes depende da vontade das partes, apenas sendo discutidas em sede de embargos de executado;
E) não sendo, portanto, matéria que pudesse, ab initio, ser oficiosamente apreciada pelo douto Tribunal a quo, consistindo tal apreciação numa violação do princípio do dispositivo.
Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Exªs., deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência serem os autos devolvidos ao douto Tribunal a quo para que a acção prossiga os demais trâmites legais, assim se fazendo a mais esperada e sã, JUSTIÇA!».
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A executada, por seu turno, respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões alegatórias:
«I - A legitimidade das partes numa acção executiva fundamenta-se na identificação das pessoas que, no título executivo, figurem como credor e devedor, respectivamente.
II - É isso mesmo que determina o artº 68º, nº 1, do C.P.C.
III - A inexistência, ou insuficiência, de identificação do credor - ou do devedor - no documento que titula a dívida, retira a esse documento a natureza de título executivo.
IV - Na situação em apreço, os documentos juntos à petição de execução apresentados pela ora recorrente não podem ser considerados títulos executivos, uma vez que neles não está inequivocamente identificado o respectivo credor.
V - Bem andou o Tribunal a quo ao indeferir liminarmente a petição de execução apresentada pela ora recorrente.
VI - Tal indeferimento, como bem resulta do elemento literal da decisão sub judice, resulta da aplicação conjugada dos artºs. 68º, nº 1, e 394º, nº 1, alíneas c) e d) - a ilegitimidade do exequente e, consequentemente, não poder proceder a sua pretensão.
VII - O recurso em apreço não deverá, assim, merecer provimento, mantendo-se, pois, in totum, a decisão recorrida.
Nestes termos,
Nos mais de Direito aplicáveis, mas sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela exequente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
Assim decidindo, estarão Vossas Excelências fazendo, para além de boa interpretação e aplicação do Direito, a administração da esperada e habitual JUSTIÇA!».
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 - A fls. 7 dos autos consta o seguinte documento nº1/frente (tradução a fls. 2 do apenso “traduções”):
«DECLARAÇÃO DE EMPRÉSTIMO
Eu, B, peço emprestado a C um montante de 45.000,00.
Aos 15 de Fevereiro de 2012
Já devolvi o montante de HKD$ 15.000,00 no dia 19 de Setembro».
2 - A fls. 7 dos autos consta o seguinte documento nº1/verso (tradução a fls. 3 do apenso “traduções”):
«Eu, B, peço emprestado a C um montante de RMB$ 20.000,00 e outro montante de MOP$ 50.000,00, com (prazo de três meses.
01/03/2013-30/05/2013
No total: 70.000,00».
3 - A fls. 8 dos autos consta o seguinte documento nº2 (tradução a fls. 4 do apenso “traduções”):
«Eu, B, peço emprestado a C um montante de 5.000,00.
Aos 4 de Março de 2012
Já devolvi o montante de 5.000,00 no dia 22 de Outubro de 2012».
4 - A fls. 9 dos autos consta o seguinte documento nº3 (tradução a fls. 5 do apenso “traduções”):
«DECLARAÇÃO DE EMPRÉSTIMO
Eu, B, peço emprestado a C um montante de RMB$ 20.000,00.
B
Ass.: vide o original
Aos 23 de Maio de 2012».
5 - A fls. 10 dos autos consta o seguinte documento nº4 (tradução a fls. 6 do apenso “traduções”):
«DECLARAÇÃO DE EMPRÉSTIMO
Eu, B, peço emprestado a C um montante de MOP$ 20.000,00, até ao dia 25 de Dezembro de 2012.
B
Ass.: vide o original
Aos de 4 de Outubro de 2012».
6 - A fls. 17 dos autos, foi proferido o despacho recorrido, que tem o seguinte teor:
«In casu, o exequente intentou a presente acção com fundamento dos documentos particulares constantes das fls. 7 a 10 dos autos, como título executivo, os quais constam nomeadamente as palavras de “B pediu emprestado a C”, de facto, tanto “C” como “C” são alcunhas muitos comuns, por outro lado, não negamos que o nome do exequente A também tem um carácter “C”, mas o que não é suficiente para reconhecer que o exequente neste caso é aquele credor que consta dos vários títulos executivos, portanto, salvo devido respeito, entendo que o nome do credor constante dos títulos executivos apresentados pelo exequente falta de suficiente valor de identificação, assim, não é bastante para determinar que os créditos constantes dos títulos executivos pertencem ao exequente, daí possa indeferir liminarmente o requerimento inicial do exequente nos termos do art.º 677.º al. c) e do art.º 695.º n.º 1 (a contrario sensu) do Código de Processo Civil.
Custas pelo exequente (sem prejuízo da eficácia de apoio judiciário concedido).
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Notifique e tome diligências necessárias.
Registe».
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III – O Direito
1 - O que aparentemente desencadeou a execução foi uma dívida resultante de um empréstimo feito pela exequente à executada em quatro tranches, cujo total teria atingido o valor de MOP 96.790,00, e de que esta teria apenas pago MOP 30.000,00.
A execução instaurada no TJB teve como base fundamentante os documentos particulares acima referidos, que se encontram assinados pelo devedor.
O despacho em crise, porém, indeferiu liminarmente a petição executiva por entender que o nome do credor (mutuante) inscrito nos referidos documentos não é suficientemente identificativo da pessoa que teria emprestado o dinheiro à executada.
E isto, porquê? Porque alegadamente o nome de C aludido nos referidos documentos constitui alcunha muito comum, ficando o tribunal sem saber se esse nome se reporta à verdadeira identidade da exequente ou a outra qualquer pessoa.
Estará certa esta decisão?
Não, em nossa opinião.
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2 - Os títulos executivos que podem servir de base à execução são os que vêm alinhados no art. 677º do CPC. Entre eles, avultam os “documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689º, ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto” (al. c)).
É verdade que o despacho acometido apelou ao art. 677º, nº1, al. c), do CPC, parecendo querer dizer que o indeferimento (que disse ser baseado a contrario sensu no art. 695º, nº1, al. c), do mesmo Código) se baseava na falta de título constitutivo.
Ora, o despacho impugnado não pôs a tónica do fundamento para o indeferimento na circunstância da falta de assinatura do devedor, nem sequer no da sua identificação. Ou seja, aceitou que a executada, de seu nome B, pudesse ser demandada em execução com base naqueles documentos particulares.
Não vemos, portanto, naquele normativo legal qualquer outro abrigo para justificar a decisão sob recurso, se tanto a pessoa do devedor, como a do credor constam dos títulos.
Por conseguinte, a fundamentação utilizada não cabe na previsão da referida alínea. Neste sentido e nesse pressuposto, o despacho não poderá manter-se.
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3 – Em todo o caso, o despacho sob censura também pode encobrir ou validar a ideia de que o que está em jogo é a ilegitimidade do credor/exequente por não haver necessariamente coincidência entre a identidade do exequente e a do credor referido em cada um dos títulos.
Todavia, se esse tiver sido o pensamento subjacente no despacho ora criticado, então nem por via dessa justificação se acolheria a decisão tomada.
É que ao aceitar que o apelido “C” é tão lato e comum que pode abranger muitas pessoas com C no nome, então está o próprio despacho a admitir que a exequente possa ser uma delas. Ou seja, a fundamentação utilizada no despacho, em vez de ser excludente do nome da executada, também pode ser inclusiva, no sentido de a poder abranger.
Ora, basta que esta possibilidade esteja em cima da mesa, para não ser aceitável que o tribunal exclua, à partida, a legitimidade à exequente para a instauração da execução.
É que, como bem se sabe, a legitimidade activa não é considerada condição substantiva da acção. Dito de outra maneira, a legitimidade não é encarada legitimidade-condição, ligada ao fundo ou mérito da causa, mas mero pressuposto processual. O que importa é olhar para a forma como se encontra configurada a causa de pedir, isto é, como a relação material controvertida é configurada, independentemente da titularidade da posição jurídica substantiva.
E isso, se já resulta da noção de legitimidade plasmada no art. 58º do CPC, não está posto em causa na determinação da legitimidade prevista no art. 68º, especificamente dedicado à legitimidade activa e passiva na execução.
Portanto, se o nome inscrito nos títulos cobre o nome da exequente e se esta deles é possuidora - tanto assim que os deu à presente execução – então não se vê razão para o tribunal negar desde logo legitimidade activa àquela, em vez de dar a voz e a palavra à executada para pessoalmente se defender dizendo, por exemplo, que, na realidade, não a reconhece como sua credora, que não a conhece sequer pessoalmente ou que nunca lhe pediu dinheiro emprestado, etc., etc. (coisa que, inclusive, podia ter feito na resposta ao recurso, mas que não foi capaz de fazer, preferindo abrigar-se à sombra de uma questão de ordem formal, dando até a impressão de com isso se querer eximir de uma aparente responsabilidade).
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4 - Serve isto para dizer que, qualquer que seja a perspectiva por que se encare a fundamentação ínsita na decisão recorrida, o tribunal não aplicou correctamente o disposto nos arts. 58º, 68º, 394º, nº1, al. c), 677º, al. c), 695º, nº1, todos do CPC.
Logo, o despacho em apreço não pode manter-se, o que tem por efeito o prosseguimento normal da execução, a não ser que alguma outra causa a tal obste.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga a decisão impugnada e se determina a sua substituição por outra que determine o prosseguimento da execução, a menos que outra causa tanto o impeça.
Custas pela parte vencida a final.
TSI, 12 de Março de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong



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