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   ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
   
   I – Relatório
   O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 22 de Maio de 2006, condenou o arguido A, como cúmplice, na forma consumada, de três crimes de burla, previstos e puníveis pelo art. 211.º, n.os 1 e 4, alínea a), 196.º, alínea a) , 26.º, n.º 2 e 67.º, n.º 1 do Código Penal, respectivamente, nas penas de três anos de prisão, dois anos e seis meses de prisão e um ano e seis meses de prisão e como autor, na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punível pelo art. 340.º, n.º 1 do Código Penal na pena de dois anos e seis meses de prisão.
   Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de seis anos de prisão.
   O mencionado arguido foi ainda condenado, juntamente com os co-arguidos B, C, D, solidariamente, a pagar o montante MOP$11352000.00 (onze milhões, trezentos e cinquenta e duas mil patacas), à assistente E e juros legais a contar da citação (sic).
   O assistente F interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por não ter sido declarada a nulidade dos actos notariais, com base em documentos falsificados, pelo qual foi vendido o domínio útil de um imóvel de que era titular sua falecida mulher, G, bem como o cancelamento dos respectivos registos.
   O Ministério Público e o arguido A interpuseram, igualmente, recurso para o TSI.
   O TSI, por Acórdão de 12 de Abril de 2007, deu provimento ao recurso do Ministério Público e condenou o arguido A, como autor, na forma consumada, de três crimes de burla, previstos e puníveis pelo art. 211.º, n.os 1 e 4, alínea a) e 196.º, alínea a) do Código Penal, respectivamente, nas penas de cinco anos de prisão, quatro anos de prisão e dois anos de prisão.
   Pelo mesmo Acórdão, o TSI deu parcial provimento ao recurso do arguido A e condenou-o, como autor, na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punível pelo art. 340.º, n.º 1 do Código Penal na pena de um ano e três meses de prisão.
   Em cúmulo jurídico, foi o arguido A condenado na pena única de oito anos e seis meses de prisão.
   E o TSI negou provimento ao recurso do assistente F.
   Novamente inconformado assistente F interpõe recurso para este Tribunal de Última Instância (TUI), formulando as seguintes conclusões úteis:
   - O TSI deveria ter declarado a nulidade das escrituras públicas de compra e venda e o cancelamento dos registos, por se tratar de actos nulos, de conhecimento oficioso;
   - Foram, assim, violados os princípios da economia processual e da aquisição processual e o art. 279.º do Código Civil;
   - Não tem de se respeitar o princípio do contraditório, relativamente aos terceiros que compraram o imóvel, já que, verificados os pressupostos do art. 284.º do Código Civil, esses terceiros não poderão ver os seus direitos reconhecidos.
   O arguido A interpõe também recurso para o TUI.
   Para tanto, formulou as seguintes conclusões:
   1. O acórdão recorrido indicou nas fls. 48 a 54 que se confirmaram os fundamentos legais e doutrinais de que o recorrente foi um co-autor e não o cúmplice. Por palavras simples, o acórdão recorrido entendeu que o recorrente não apenas prestou auxílio a outros, mas também participou directamente na falsificação de procurações e cometendo, em conjunto com outros arguidos, os crimes de burla.
   2. Salvo o devido respeito, o recorrente não concordou com isso, na medida em que o recorrente, como adjunto da Conservatória do Registo Predial, nos trabalhos quotidianos, tem obrigações de emitir por escrito informações e certidões do registo predial, a pedido oral ou por escrito de qualquer pessoa, no sentido de deixar os interessados tomarem conhecimento do estado da propriedade.
   3. Sem os actos praticados pelo recorrente, os outros arguidos também podiam dirigir-se à Conservatória para obter tais informações. Pelo que, os actos praticados pelo recorrente apenas ajudaram os arguidos em causa a pedir informações sem a necessidade da presença e deslocação dos mesmos para o local (ou melhor dizendo, os quais não precisaram de aguardar nas filas para serem atendidos, podendo poupar tempo e não precisando de procurar o parque de estacionamento para estacionar o seu carro). Tais informações, depois de solicitadas e obtidas pelo recorrente, foram entregues posteriormente pelo mesmo aos arguidos em causa.
   4. Igualmente, qualquer pessoa pode solicitar tanto ao notário privado como ao notário público certidão da escritura de compra e venda (vulgarmente designada por cópia autenticada de escritura) de acordo com a lei e segundo as informações da certidão do registo predial, no sentido de tomar conhecimento dos dados de identificação das partes de compra e venda.
   5. Mediante as informações confirmadas na escritura pública de compra e venda, qualquer pessoa pode presumir ainda outras informações.
   6. Qualquer pessoa pode também solicitar ao serviço competente a obtenção dos dados de cartografia e cadastro de acordo com a lei e segundo as informações da certidão do registo predial.
   7. Em termos doutrinais e de jurisprudência, a distinção entre autor e cúmplice baseia-se em vários critérios. Porém, podemos fazer, de modo animado, uma distinção como se segue: a autoria é o elemento necessário para a prática dos factos criminosos, sem o qual, é impossível consumar-se o crime; a cumplicidade reside em que o crime continua a chegar a consumar-se mesmo sem a sua participação, a participação apenas dá conveniência para a concretização do crime.
   8. Ora bem, podemos fazer uma análise de que, os 1.º e 2.º arguidos pretendiam praticar o crime de burla para proceder a transmissão do direito de utilização de terreno através das procurações falsificadas. Para tal fim, eles podiam conduzir um carro para buscar e verificar os terrenos não utilizados em Macau, registar os nomes das ruas desses terrenos e dirigir-se à Conservatória do Registo Predial, à Conservatória do Registo Comercial, aos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, ao Cartório Notarial, entre outros serviços, para requerer os documentos em causa, e posteriormente falsificar as procurações, sendo desnecessária a intervenção do recorrente.
   9. Em relação à análise de dado “não se procede nenhuma transmissão desde a data de registo até agora”, dado esse que igualmente é presumível através dos documentos acima referidos.
   10. Pelo exposto, quanto aos crimes de burla praticados pelo recorrente, não sendo indispensáveis os actos do recorrente, que porém podia prestar o auxílio. Neste contexto, mesmo que o recorrente fosse confirmado ter praticado os actos criminosos, limitando-se apenas aos actos praticados na forma de cumplicidade, e não na forma de co-autoria material. Pelo que o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 25.º e 26.º do Código Penal.
   A Ex.ma Procuradora-Adjunta pronuncia-se pela improcedência dos recursos.
   No seu parecer, a Ex.ma Procuradora-Adjunta manteve a posição assumida na resposta à motivação dos recursos.
   
   II – Os factos
   Os factos que as instâncias deram como provados são os seguintes:
   O 1.º arguido B, o 2.º arguido C, juntamente com outros indivíduos não identificados, actuaram em conjunto, cada arguido tendo o seu papel na execução, com o objectivo de se apropriarem de prédios ou terrenos registados em nome de outras pessoas, por via de falsificação de procurações passadas em nome destes titulares cujo corpus era desempenhado por outros indivíduos cuja identificação foi verificado por abonação por dois abonadores ou com documento de identificação da República Popular da China.
   Conforme plano previamente acordado entre os cinco arguidos acima referenciados, o arguido A, aproveitando a sua profissão de ser ajudante da Conservatória do Registo Predial, durante as horas de serviços, fez pesquisa no sistema informático do serviço onde se guardava todas as informações sobre os registos dos terrenos e prédios da R.A.E.M.
   O arguido A assim fez para saber quais os registos cuja última alteração foi feita há já muito tempo, isto é, desde a respectiva data de registo até presente não foram feitas nenhum outras transmissões, nomeadamente sucessão por mortes, porque os arguidos tinham a intenção de aproveitar da situação de inexistência de herdeiros dos respectivos terrenos e prédios.
   Depois de encontrar, no computador, registos úteis para os arguidos, o arguido A entrou no arquivo onde se guardavam os respectivos documentos de registos e tomou notas dos dados de identidade dos proprietários dos terrenos ou prédios.
   Sendo embora funcionário da 1.ª Secção da Conservatória do Registo Predial, o arguido A ainda podia ter acesso aos referidos documentos cujos termos corriam noutra Secção, visto que os documentos estão todos centralmente guardados no arquivo e todos os funcionários de cada secção podem ter acesso ao arquivo.
   Confrontados os dados, o arguido A apropriou-se, para si ou para outros arguidos, das certidões de registo predial de terrenos e prédios que entendessem úteis, (cfr. fls. 328 a 512) e documentos autênticos (cfr. fls. 512) que deviam ser guardados no arquivo da Conservatória e, estes documentos serviam de base para registo (cfr. fls. 330 a 544).
   O arguido A assim o fez para fazer análise das identidades dos proprietários, ajudando os 1.º e 2.º arguidos fixar o alvo de burla.
   Assim, os arguidos B, C, e A descobriram que os registos dos seguintes terrenos e prédios correspondiam as condições acima referidas :
   - o terreno rústico descrito sob n.º XXXXX, no Livro X-XX, fls. XXXX, situado na Taipa, na Povoação de Sam Ka, omisso na matriz predial, inscrito em nome de H;
   - o terreno urbano descrito sob n.º XXXXX, no Livro X-XX, fls. XX, com área de 7000 m2, situado no [Endereço (1)], omisso na matriz predial, cujo concessionário é de nome de I;
   - o terreno resultante da demolição do prédio urbano, situado no [Endereço (2)], descrito sob n.º XXXX, no Livro X-XX, fls. XXX, omisso na matriz predial, inscrito em nome de G.
   Com a sua participação no plano acima referido, o arguido A conseguiu a sua recompensação através dos cheques sacados pela J, a favor de K, esta é namorada do arguido A, posteriormente, esta namorada do arguido A levantou o dinheiro e entregou-o a arguido (cfr. fls. 1699 e fls. 1712).
   Os arguidos B e D são os únicos dois sócios da J, em chinês “癸” (cfr. fls. 210).
   Conforme plano previamente acordado entre os 1.º e 2.º arguidos e baseando nas informações fornecidas pelo arguido A, os 1.º e 2.º arguidos conseguiram encontrar uma pessoa, cuja identidade ainda não apurada, para fingir I, o verdadeiro concessionário do terreno descrito sob n.º XXXXX.
   Assim, no dia 1 de Novembro de 2004, o arguido B, o arguido D e o arguido L, acompanharam o referido “I” fingido a deslocar-se ao cartório da notária privada M.
   Na realidade, o verdadeiro concessionário do terreno referido I já faleceu em 2 de Outubro de 1984 (cfr. fls. 141).
   Nesse dia, o referido “I” fingido conferiu, através de uma procuração, os poderes necessários para administração plena do terreno descrito sob n.º XXXXX ao arguido B (cfr. fls. 990 a 991 verso).
   Na respectiva procuração, a identidade de “I” fingido foi aprovada por dois testemunhas : o arguido B e o arguido D.
   Quando o arguido L assinou a respectiva procuração na qualidade de testemunha, ele sabia muito bem que não conhecia o referido “I”, não sabendo se esse indivíduo era na realidade “I” ou não, mas o arguido L ainda o fez para ganhar a remuneração de MOP500,00 dada pelo arguido D.
   Quando o arguido D assinou a respectiva procuração na qualidade de testemunha, ele sabia muito bem que o referido “I” fingido não era a verdadeira I, mas o arguido D ainda o fez para cumprir o referido plano acordado com os outros arguidos.
   Assim, o arguido B passou a ter o poder de vender o terreno descrito sob n. º XXXXX a terceiro.
   No dia 24 de Novembro, perante o notário privado N, o arguido O, em representação da J, comprou o referido terreno descrito sob n.º XXXXX junto do procurador (ou seja, o arguido B) de I, concessionário do terreno, (cfr. fls. 36 a 39). De facto, a J, não efectuou nenhuma prestação para efeito de aquisição do referido terreno.
   Posteriormente, o arguido O pagou a respectiva sisa (cfr. fls. 2276 verso).
   Com este modus operandi, os arguidos conseguiram a aquisição do terreno registado em nome de I, por via de uma procuração falsificada a favor do arguido B, posteriormente, o arguido B “vendeu” o terreno aos arguidos, causando assim um prejuízo elevado ao verdadeiro proprietário do terreno descrito sob n.º XXXXX.
   Os 1.º e 2.º arguidos sabiam perfeitamente que não têm direito legítimo de vender o terreno a terceiro por o terreno descrito sob n.º XXXXX ter sido adquirido através da maneira acima referida.
   Conforme plano previamente acordado entre os 1.º e 2.º arguidos, o arguido B e o arguido C, no fim do ano de 2004, propuseram que P e Q comprariam o terreno descrito sob n.º XXXXX.
   Para ganhar a confiança de P e de Q, o arguido C aproveitou a profissão de ser engenheiro do seu irmão, ora arguido O, de ser um engenheiro da J, prometeu-lhes que o projecto sobre o terreno descrito sob n.º XXXXX poderia ser aprovado pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes.
   Aceite a proposta, P e Q pagaram juntamente em total ao arguido B, representante da J, a quantia de HKD$20.000.000,00 (vinte milhões de dólares de Hong Kong) a título de sinal.
   P pagou à J, a sua parte da quantia de HKD$10.000.000,00 através de 3 cheques (a fls. 1456 e fls. 1464).
   Q pagou à J, a sua parte da quantia de HKD$10.000.000,00 através de 2 cheques (a fls. 1454 e fls. 1458).
   Afinal, como a procuração arranjada pelos 1.º e 2.º arguidos era falsa, P e Q, por um lado, não conseguiram adquirir o terreno descrito sob n.º XXXXX, por outro lado, os dois perderam uma quantia total de HKD$20.000.000,00.
   Conforme plano previamente acordado entre os 1.º e 2.º arguidos e baseando nas informações fornecidas pelo arguido A, os 1.º e 2.º arguido conseguiram encontrar uma pessoa, cuja identidade ainda não apurada, para fingir o verdadeiro proprietário do terreno descrito sob n.º XXXXX “H”.
   Assim, no dia 15 de Novembro de 2004, o arguido B, o arguido R e o arguido L acompanharam o referido “H” fingido a deslocar-se ao cartório da notária privada M.
   Nesse dia, o referido “H” fingido através de uma procuração conferiu os poderes necessários para administração plena do terreno descrito sob n.º XXXXX ao B (cfr. fls. 992 a 993 verso).
   Na respectiva procuração, a identidade do “H” fingido foi aprovada por dois testemunhas : o arguido L e o arguido R.
   Quando o arguido L assinou a respectiva procuração na qualidade de testemunha, ele sabia muito bem que não conhecia o referido “H”, não sabendo se esse indivíduo era na realidade “H” ou não, mas o arguido L ainda o fez para ganhar a remuneração de MOP500,00 dada pelo arguido D.
   Quando o arguido R assinou a respectiva procuração na qualidade de testemunha, ele sabia muito bem que não conhecia o referido “H”, não sabendo se esse indivíduo era na realidade “H” ou não, mas o arguido R ainda o fez para ganhar a remuneração de MOP400,00 dada pelo arguido D.
   Assim, o B passou a ter o poder de vender o terreno descrito sob n.º XXXXX a terceiro.
   No dia 19 de Novembro, perante o notário privado N, o arguido B, na qualidade do procurador do “H”, vendeu o terreno descrito sob n.º XXXXX à J, que na altura foi também representada pelo arguido B (cfr. fls. 994 a 995). De facto, a J não efectuou nenhuma prestação para aquisição do referido terreno.
   Com este modus operandi, os 1.º e 2.º arguidos conseguiram a aquisição do terreno registado em nome de H, por via de uma procuração falsificada a favor do arguido B e este posteriormente “vendeu” o respectivo terreno a terceiro, causando assim um prejuízo elevado ao verdadeiro proprietário do terreno descrito sob n.º XXXXX.
   Sabendo perfeitamente que o terreno descrito sob n.º XXXXX foi adquirido através da maneira acima referida, os 1.º e 2.º arguidos não têm direito legítimo de vender o terreno a terceiro.
   Conforme plano previamente acordado entre os 1.º e 2.º arguidos, o arguido C, no fim de Agosto de 2004, propôs que E adquiria, por meio de contrato de “Joint-Venture” (共同投資合約), um terreno sito na Povoação de Sam Ka Chun, Taipa, descrito na C.R.P. sob o n.º XXXXX.
   No dia 13 de Setembro de 2004, o arguido C e E elaboraram um contrato de “Joint-Venture” (共同投資合約) (cfr. fls. 1822).
   Nesse dia, E pagou ao arguido C a quantia de HKD$700.000,00 (setecentos mil dólares de Hong Kong), a título de pagamento adiantado para o investimento (cfr. fls. 1823).
   No dia 15 de Novembro de 2004, o arguido C mostrou a E uma procuração, mentindo que essa tivesse sido outorgado pelo proprietário do referido terreno a favor do arguido B, conferindo todos os poderes de administração e de disposição relativos ao referido imóvel.
   No dia 21 de Novembro de 2004, o arguido C exibiu a E uma cópia de escritura pública de compra e venda, celebrada no cartório do Notário Privado Dr. N, segundo o conteúdo desta escritura pública, B em representação do proprietário do referido terreno H, vendeu o referido terreno à J, pelo preço de MOP5.000.000,00 (cinco milhões de patacas).
   Assim E entregou ao arguido C a quantia de HKD300.000,00 (trezentos mil dólares de Hong Kong) a título de pagamento adiantado para a aquisição do referido terreno (cfr. fls. 1824).
   No dia 24 de Novembro de 2004, foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda do referido terreno (cfr. fls. 1825 e verso).
   Neste contrato, consta que o arguido B na qualidade administrador e de representante da J, prometeu vender o respectivo terreno a E e ao arguido C, e estes dois prometeram comprar pelo preço de HKD$16.500.000,00 (dezasseis milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong), na proporção de 2/3 para E e 1/3 para o arguido C.
   Nesse dia, E pagou à J, a quantia de HKD$3.000.000,00 (três milhões de dólares de Hong Kong) a título de sinal (cfr. fls. 1838).
   O arguido B recebeu a respectiva quantia e deu quitação na qualidade de representante da J (cfr. fls. 1838).
   Nesse dia, o arguido B entregou ao arguido C um recibo comprovativo do pagamento por parte deste último, da quantia de HKD$1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil dólares de Hong Kong), a título de sinal e da parte que cabia ao arguido C.
   Contudo, na realidade, entre o arguido B e o arguido C, não houve nenhuma transmissão da referida quantia de HKD$1.500.000,00. Estes dois fizeram-no para fazer E acreditar em estar fazer um negócio verdadeiro e válido.
   No dia 16 de Dezembro de 2004, E entregou a quantia de HKD$1.250.000,00 (um milhão e duzentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong) ao arguido C, por este ter exibir um certidão emitido pela C.R.P. de Macau, na qual constatava que o referido imóvel já se encontrava a favor da J.
   Nesse dia, o arguido C entregou a E uma procuração, na qual constatava que a J ter conferido a E todos os poderes de administração e disposição do referido terreno (cfr. fls. 1827).
   No dia 21 de Dezembro de 2004, E entregou ao arguido B a quantia de HKD1.250,000,00, tendo este recebido e dado quitação.
   No dia 21 de Janeiro de 2005, conforme as cláusulas do contrato de promessa de compra e venda, E pagou ao arguido B o remanescente de HKD$5.500,000,00 (cinco milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong).
   Apesar do pagamento integral do preço pela E, o arguido C usou sempre várias desculpas infundadas para não celebrar a respectiva escritura pública.
   No fim, o arguido C e o arguido B fugiram para lugar incerto, assim E perdeu desde então contacto com os dois arguidos, não podendo adquirir o terreno em causa.
   E sofreu o prejuízo total de HKD$11.000.000,00 (onze milhões de dólares de Hong Kong).
   Conforme plano previamente acordado entre os 1.º e 2.º arguidos e baseando nas informações fornecidas pelo arguido A, os arguido conseguiram encontrar uma pessoa, cuja identidade ainda não apurada, para fingir a verdadeira proprietária do terreno descrito sob n.º XXXX “G”.
   Contudo, na realidade, a verdadeira proprietária do terreno descrito sob n.º XXXX “G” já faleceu no dia 30 de Janeiro de 1994 em Hong Kong (cfr. fls. 1027).
   Assim, no dia 24 de Novembro de 2004, o arguido B acompanhou a referida “G” fingida a deslocar-se ao cartório da notária privada S
   Nesse dia, a referida “G” fingida através de uma procuração conferiu os poderes necessários para administração plena do terreno descrito sob n.º XXXX ao arguido B (cfr. fls. 1170 a 1172).
   Na respectiva procuração, a identidade da “G” fingida foi aprovada com simples exibição do Bilhete de Identidade de Cidadão Nacional da República Popular da China n.º XXXXXXXXXXXXXXXXXX.
   Assim, o arguido B passou a ter o poder de vender o terreno descrito sob n.º XXXX a terceiro.
   No dia 14 de Janeiro de 2005, perante a notária privada S o arguido B, na qualidade do procurador de “G”, vendeu o terreno descrito sob n.º XXXX a um indivíduo de nome “T” (甲癸), portador do Bilhete de Identidade de Hong Kong n.º XXXXXXX(X), pelo preço de MOP1.000.000,00 (um milhão de patacas) (cfr. fls. 1168 a 1169 verso).
   Com este modus operandi, os 1.º e 2.º arguidos conseguiram a aquisição do terreno registado em nome de G, por via de uma procuração falsificada a favor do arguido B e este posteriormente “vendeu” o respectivo terreno a terceiro. Assim, os 1.º e 2.º arguidos conseguiram um “benefício ilegítimo”, causando assim um prejuízo consideravelmente elevado ao verdadeiro proprietário do terreno descrito sob n.º XXXX.
   Com a sua participação no plano acima referido, o arguido O conseguiu a sua recompensação através de dois cheques sacados pela J a favor do seu próprio nome (cfr. fls. 1714) e outra recompensação não apurada.
   Com a sua participação no plano acima referido, o arguido C conseguiu a sua recompensação através dos cheques sacados pela J (cfr. fls. 1718 e 1725) e outra recompensação não apurada.
   Os arguidos B, C, juntamente com outros indivíduos não identificados estavam agrupados entre si, de livre vontade e perfeitamente conscientes, com intenção por todos partilhada de darem concretização a um plano, que foi engendrado por estes arguidos, todos agindo, na concretização desse projecto de forma articulada, estruturada e continuada no tempo.
   Com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, por meio de engano sobre factos que astuciosamente provocou, os 1.º e 2.º arguidos determinaram outrem à prática de actos que causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.
   Os 1.º, 2.º, 3.º, 6.º e 7º arguidos falsificaram as referidas procurações com intenção de causar prejuízo a outras pessoas e à R.A.E.M., obtendo assim para si benefício ilegítimo.
   O arguido D tinha perfeito conhecimento sobre o plano dos 1.º e 2.º arguidos, ajudando-os deliberadamente através da falsificação da procuração para exercer os actos de burla.
   O arguido A tinha perfeito conhecimento sobre o plano dos 1.º e 2.º arguidos, fazendo dolosamente análise das identidades dos proprietários, ajudando os 1.º e 2.º arguidos a fixar o alvo de burla.
   O arguido A era funcionário da Conservatória do Registo Predial, aproveitando a sua profissão e o acesso do arquivo da Conservatória, apropriou-se, em proveito próprio e de outra pessoa, dos documentos autênticos no arquivo que servia de base do registo para fixar o alvo da burla de terreno.
   Os 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 6.º e 7.º arguidos agiram livre, deliberada e voluntariamente.
   Os 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 6.º e 7.º tinham perfeito conhecimento que as suas condutas não eram permitidas.
   Na realidade, o arguido O recebeu um cheque sacado pela J, mas, este cheque foi pago ao arguido a título de recompensação do procedimento de estudo efectuado pela U (o arguido é sócio), a qual foi solicitado posteriormente para fazer o respectivo estudo.
   O trabalho supra citado foi procedido no gabinete da referida U, esta U apresentou a solicitação de concessão do arrendamento de um terreno sito no [Endereço (3)] e, o respectivo plano foi apresentado à Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes no dia 14 de Dezembro de 2004.
   Segundo o certidão de registo criminal, os 1.º e 2.º arguidos são primários.
   Antes de ser preso, o 3.º arguido era comerciante, auferindo mensalmente MOP10.000,00 a 20.000,00.
   O arguido é divorciado, tendo a seu cargo um filho.
   O arguido não confessou os respectivos factos, não é primário.
   Antes de ser preso, o 4.º arguido era ajudante da Conservatória do Registo Predial, o salário é de 400 índices constantes da tabela indiciaria de vencimento.
   O arguido é casado, tendo a seu cargo a sua mulher e uma filha.
   O arguido não confessou os respectivos factos, sendo primário.
   Antes de ser preso, o 5.º arguido era engenheiro, auferindo mensalmente MOP48.000,00.
   O arguido é casado, tendo a seu cargo a sua mãe e dois filhos.
   O arguido não confessou os respectivos factos, sendo primário
   Antes de ser preso, o 6.º arguido era cabeleireiro, auferindo mensalmente MOP1.500,00.
   O arguido é casado, não tendo a seu cargo a ninguém.
   O arguido confessou os respectivos factos, sendo primário
   Antes de ser preso, o 7.º arguido era bartender, auferindo mensalmente MOP6.000,00.
   O arguido é solteiro, tendo a seu cargo ao seu pai.
   O arguido confessou os respectivos factos, não sendo primário.
   Factos não provados:
   Os restantes factos importantes da acusação da contestação que não correspondem aos factos provados são os seguintes :
   Com a sua participação no plano acima referido, o arguido A conseguiu a sua recompensação através dos cheques sacados pela J, a favor de K, esta é namorada do arguido A, posteriormente, esta namorada do arguido A levantou o dinheiro e entregou-o a arguido (cfr. fls. 1699 e fls. 1712).
   Com a sua participação no plano acima referido, o arguido O conseguiu a sua recompensação através de dois cheques sacados pela J a favor do seu próprio nome (cfr. fls. 1714) e outra recompensação não apurada.
   O arguido O juntamente com outros indivíduos não identificados estavam agrupados entre si, de livre vontade e perfeitamente conscientes, com intenção por todos partilhada de darem concretização a um plano, que foi engendrado por este arguido, todos agindo, na concretização desse projecto de forma articulada, estruturada e continuada no tempo.
   O arguido O falsificou as respectivas procurações com intenção de causar prejuízo a outras pessoas e à R.A.E.M., obtendo assim para si benefício ilegítimo.
   O arguido O agiu livre, deliberada e voluntariamente.
   O arguido O tinha perfeito conhecimento que as suas condutas não eram permitidas.
   
   III - O Direito
   1. As questões a resolver
   No recurso do arguido A a questão a resolver é a de saber se ele deve ser condenado como autor dos três crimes de burla, como decidiu o TSI, ou como mero cúmplice desse crimes, como entendeu o Tribunal Judicial de Base.
   No recurso do assistente F importa decidir se o Tribunal deveria ter declarado a nulidade dos contratos de compra e venda do imóvel, e determinado o cancelamento dos respectivos registos ou se tais decisões só podem ser tomadas, se for caso disso, em processo cível, ao qual sejam chamados os terceiros que compraram o imóvel e que não intervieram no processo crime.
   
   2. Recurso do arguido A. Autoria. Cumplicidade.
   Dispõe o art. 25.º do Código Penal que:
“Artigo 25.º
(Autoria)
   É punível como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
   Por sua vez, o art. 26.º do mesmo Código estatui:
“Artigo 26.º
(Cumplicidade)
   1. É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.
   2. É aplicável ao cúmplice a pena prevista para o autor, especialmente atenuada”.
   Face aos conceitos do Código, relativamente à autoria, podemos dizer, com CAVALEIRO DE FERREIRA1, “que as formas que reveste são fundamentalmente duas: autoria material, singular, ou co-autoria material, e autoria e co-autoria moral, também denominada intelectual ou psíquica, que compreende a determinação ao crime de executores inimputáveis, ou sem culpa, e a determinação ao crime do executor imputável e com culpa, isto é, a instigação em sentido estrito”.
   Autoria e cumplicidade são, como se sabe, duas formas de participação criminosa. O autor é um participante principal, enquanto que o cúmplice é um participante secundário.
   Segundo determinada teoria, o cúmplice é um participante secundário porque a sua participação na prática do crime não é essencial, no sentido que sem a sua acção o crime seria na mesma cometido, embora em tempo, lugar ou circunstâncias diversos.
   “Sendo assim, - escreve EDUARDO CORREIA2 - para saber se uma certa comparticipação pode enquadrar-se ou não no conceito de autoria, é antes de tudo necessário averiguar se, sem ela, o facto deixaria ou não de ser cometido. É mister, por outro lado, que o agente represente a necessidade da sua actuação moral ou material para a realização do crime: se o agente não conhece as circunstâncias que fazem com que, sem o seu auxílio, o crime não tivesse sido praticado, estaremos tão-só em face de um caso de cumplicidade ou de uma autoria por negligência”.
   Para outra teoria, autor é o que tem o domínio do facto, o comando de um certo processo.
   Ora, apreciando os factos, afigura-se-nos que a participação do arguido A foi essencial no plano criminoso.
   De acordo com este plano, concebido pelos arguidos B e C – mas a que aderiu o A – tratava-se de encontrar imóveis, edificados ou meros terrenos, cujos proprietários tivessem falecido e não tivessem herdeiros, a fim de, usurpando a identidade dos proprietários por meio de documentos de identificação e procurações falsos, os vender a terceiros.
   Como indícios da inexistência de herdeiros dos proprietários, procuraram imóveis que há longo tempo não tivessem registado transmissões.
   É aqui que entra o arguido A, que trabalhava na Conservatória do Registo Predial e que tinha acesso aos registos dos imóveis e aos documentos utilizados para a efectivação dos mesmos.
   E foi assim que ele escolheu os três imóveis em causa e se apropriou dos documentos pertinentes.
   Ora, os restantes arguidos, como qualquer outra pessoa, não tinham acesso aos registos prediais. Como se sabe, qualquer pessoa pode requerer a certidão dos registos de um determinado imóvel identificado, mas não pode pedir à Conservatória os registos dos imóveis sem registos há muito tempo e muito menos ter acesso aos documentos utilizados para a efectivação dos últimos registos.
   Os restantes arguidos, sem a actividade concreta do A, não tinham acesso aos registos dos três imóveis em causa, nem a quaisquer outros registos de imóveis com transmissões registadas há longo tempo.
   A participação do A foi, assim, essencial, na prática das três burlas em questão.
   É isto que explica FARIA COSTA3: “É claro que o auxílio que a cumplicidade pressupõe tem que ver pelo menos na sua forma material com a teoria dos bens escassos, correctamente entendida dentro deste contexto. Efectivamente se A cede a B uma chave-mestra para este ir furtar a casa de C algumas porcelanas, o auxílio de A corresponde à entrega de um meio que facilita a acção de B, sendo certo que a sua não cedência não obstacularia em definitivo a conduta criminosa de B. É dizer, B sempre poderia sem grandes canseiras conseguir uma outra chave, utilizar o escalamento, o arrombamento, etc. - a chave-mestra não era para aquela finalidade um bem raro ou escasso. No entanto, imaginemos que D mero operador de consola pretende fazer uma burla por meio do computador da empresa onde trabalha, sendo indiscutível que para isso precisa de saber certas passagens da programação. E a «chave» desta só é conhecida por dois administradores e pelo próprio programador E, que não se coíbe de «dar» a D tudo o que este pretendia. Julgamos a esta luz que transmissão dolosa dos conhecimentos não pode ser vista como mera cumplicidade já que aqueles dados eram na circunstância bens «raros». E a sua escassez tão intensa que determina uma alteração qualitativa na primitiva cedência-auxílio. Esta deixa de o ser para ser vista como essencial, o que retira o carácter de cumplicidade ao comportamento e o atira provavelmente para a co-autoria”.
   A actividade do A filia-se, manifestamente, no 2.º exemplo dado por FARIA COSTA. O seu conhecimento e acesso aos registos prediais e documentos constituía o bem escasso de que necessitavam os restantes arguidos.
   Admite-se que, sem a participação do A, os restantes arguidos poderiam ter feito vendas de imóveis que lhes não pertenciam, mas não seguramente dos três imóveis em causa.
   As burlas dos autos – consistentes nas vendas dos prédios registados em nome de H, I e G - não poderiam ter sido feitas sem o trabalho do A. Logo, a sua participação nos factos criminosos foi essencial e foi, portanto, autor material dos mencionados crimes de burla.
   Improcede o recurso interposto.
   
   3. Recurso do assistente F.
   Pedido de indemnização civil em processo penal. Princípio do contraditório.
   Um imóvel que pertencia ao falecido cônjuge do assistente foi vendido por arguidos dos autos, para tal utilizando documentos de identidade e procurações falsas. E, posteriormente, os terceiros compradores do imóvel, aparentemente de boa fé, registaram a seu favor as compras sucessivas do mesmo imóvel.
   O assistente pretende que o Tribunal declare nulos os negócios jurídicos e os registos efectuados.
   Mas parece não ter atentado na natureza do presente processo.
   Este processo tem natureza criminal. Foi instaurado para perseguir criminalmente vários agentes a quem foram imputados a prática de crimes, pelos quais alguns vieram a ser condenados.
   O processo penal visa julgar um ou mais agentes pela prática de crime(s).
   Como explica GERMANO MARQUES DA SILVA, 4”a função essencial do processo penal cumpre-se na decisão sobre se foi cometido algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e sua execução”
   No processo penal podem resolver-se questões de outra natureza, como civis, comerciais ou administrativas, mas apenas que relevarem para a decisão da causa crime5(art. 7.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). Ou seja, podem resolver-se questões de qualquer natureza, que interessarem para a perseguição criminal dos agentes a quem forem imputados crimes.
   Não é o caso da questão suscitada pelo assistente.
   É certo que, igualmente, em processo penal, se pode e deve deduzir pedidos de indemnização fundados na prática do crime que é conhecido em determinado processo penal (art. 60.º do Código de Processo Penal).
   O art. 62.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que se refere à legitimidade para o pedido de indemnização, ajuda a compreender que tipo de pedidos cíveis podem ser deduzidos em processo penal. Dispõe tal norma que “O pedido de indemnização civil é deduzido no processo penal pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime...”.
   Em processo penal, pode, por conseguinte, o lesado que sofreu danos ocasionados pelo crime pedir o respectivo ressarcimento.
   Estamos, assim, no domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos.
   Ora, o facto ilícito culposo extracontratual gera obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação do direito de outrem (art. 477.º do Código Civil).
   A propósito da obrigação de indemnização, dispõe o art. 556.º do Código Civil que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
   A nossa lei civil prefere a reconstituição natural à indemnização em dinheiro, como se retira do disposto no n.º 1 do art. 560.º do Código Civil.
   Ora, a declaração de nulidade de um negócio, que é o que o assistente pretende, ou a declaração de inexistência do mesmo, constituem uma forma de reconstituição natural do dano, de ordem jurídica6, pois se trata de remover directamente o dano.
   Assim, afigura-se-nos nada obstar a que, em processo penal, possa ser deduzido um pedido de declaração de nulidade de um negócio, desde que a pretensão constitua a reconstituição natural do dano provocado pelo crime de cuja punição se trata no processo.
   Simplesmente, no caso dos autos, o assistente não deduziu tal pedido no momento e pela forma própria no processo.
   Ora, tal omissão inibiu a possibilidade de serem chamados ao processo os terceiros que adquiriram o imóvel, nos termos do n.º 2 do art. 62.º do Código de Processo Penal.
   E sem os interessados que compraram o prédio e que registaram a compra a seu favor serem ouvidos e ser-lhes dada a possibilidade de se oporem à pretensão do assistente, não é possível tomar uma decisão que os pode afectar.
   E nem se diga, como faz o assistente, que não tem de se respeitar o princípio do contraditório, relativamente aos terceiros que compraram o imóvel, já que, verificados os pressupostos do art. 284.º do Código Civil, esses terceiros não poderão ver os seus direitos reconhecidos.
   Trata-se de visão completamente deturpada do princípio do contraditório. Este não constitui um princípio meramente formal, de cumprimento tabelar de uma decisão que já está tomada. O princípio do contraditório visa dar a possibilidade de os interessados serem ouvidos e poderem trazer ao conhecimento do Tribunal factos que não foram alegados pelo peticionante ou fundamentos jurídicos que foram omitidos por este. Visa dar ao tribunal um conhecimento mais alargado e completo da situação em causa, a fim de que a decisão a tomar seja a mais justa.
   Claro que não está em causa o princípio da economia processual. Este tem de ser entendido em articulação com os demais princípios, designadamente com o mencionado princípio do contraditório. Se aquele princípio tivesse o conteúdo pretendido pelo assistente, deixava de haver necessidade de chamar ao processo as pessoas contra as quais se pretende tomar medidas: o juiz tomaria a decisão logo após o peticionante ter deduzido a sua pretensão. Seria o princípio da economia processual no seu estado mais puro...
   Ora, sem os terceiros terem sido chamados a contestar o pedido de declaração de nulidade dos negócios e respectivos registos não é possível ao Tribunal decidir a questão.
   E o recurso não é o momento próprio para tal convocação, que teria necessariamente de ter sido feita na 1.ª instância.
   Eis porque o recurso do assistente tem de ser julgado improcedente.
   
   IV – Decisão
   Face ao expendido, negam provimento aos recursos.
   Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC. Ao defensor oficioso do arguido A fixam-se os honorários em mil e duzentas patacas.
   Passe mandados de captura dos arguidos A e D.
   Transitado em julgado, envie certidão à Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça.
   Macau, 18 de Julho de 2007.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
   1 CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral I, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 4.ª ed., 1992, p. 485.
2 EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Coimbra, Almedina, 1968, II Vol., p. 260.
3 FARIA COSTA, Formas do crime, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, CEJ, 1983, p. 174 e 175.
   4 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 3.ª ed., I Vol., 1996, p. 19.
5 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso..., I vol., p. 99.
6 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, 10.ª ed, Vol I, 2003, p. 905 e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 4.ª ed., Vol. I, p. 582.
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Processo n.º 31/2007