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Processo n.º 656/2014
(Recurso Laboral)
    
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 26/Março/2015


ASSUNTOS:
- Comodato e mútuo
- Prejuízos; liquidação em execução de sentença
    
    SUMÁRIO :
    1. Se A empresta a B certas jóias, devidamente descritas, quantificadas e avaliadas, e este, interpelado, não as restitui, incorre em responsabilidade civil, presumindo-se que incumpriu culposamente o contrato de comodato.
    
    2. Se A, na acção, se limita a pedir a condenação de B no pagamento do valor das jóias, em função do ouro e do feitio, não se pode considerar que se está a formular um pedido com base num contrato de mútuo inexistente, baseado num empréstimo de coisas fungíveis, e, por, isso denegar o pedido de A, importando sempre identificar a causa de pedir em que se baseia o pedido.
    
    3. Se não se apura o montante dos prejuízos, sabendo-se até que as jóias foram vendidas no penhorista, entende-se por bem relegar para execução de sentença o apuramento dos danos, verificados os outros pressupostos da responsabilidade, como seja o incumprimento culposo e o nexo causal.
    
              O Relator,




























Processo n.º 656/2014
(Recurso Civil)
Data : 26/Março/2015

Recorrente : A

Recorrido : B

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    
    I – RELATÓRIO
    A, autora nos autos supra referenciados, inconformada com a decisão dos autos proferida em 30/4/2014, vem recorrer para este Tribunal de Segunda Instância e apresentar a sua motivação, o que faz, em síntese:

A. Em primeiro lugar, quanto à parte dizendo respeito às seis jóias emprestadas, tendo a meritíssima juiz a quo considerado que: “Quanto ao alegado empréstimo ao réu dos colares e das pulseiras de ouro descritos no artigo 7º da petição inicial, embora ficou provado que a autora chegou a emprestar ao réu os colares e pulseiras de ouro, de quantidade indeterminada, a autora não conseguiu provar, através de prova, que tinha emprestado ao réu os colares e pulseiras indicados no artigo 7º da petição inicial, nem conseguiu confirmar a característica e peso das referidas jóias por si emprestadas. Isto é, não é possível confirmar quais os colares e pulseiras de ouro que tinham sido emprestados pela autora ao réu.”
B. Contudo, de acordo com o artigo 6º da decisão dos factos provados, já foi provado que em Julho de 2010, a pedido do réu, a autora emprestou-lhe os colares e pulseiras de ouro cuja quantidade não se apura.
C. Pelo que, indubitavelmente o Tribunal a quo confirmou a relação de empréstimo existente entre a autora e o réu.
D. Além disso, de acordo com a decisão dos factos provados, os seguintes factos também foram provados:
i. Artigo 8º: Foi provado que até à presente data o réu ainda não devolveu as jóias emprestadas.
ii. Artigo 9º: Foi provado que a autora, por várias vezes, exigiu ao réu que devolvesse as jóias emprestadas, não tendo, contudo, o réu feito caso disso.
iii. Artigo 13º: Foi provado.
ix. Artigo 14º: Foi provado.
E. Segundo os supracitados factos provados, foi provado o incumprimento do réu.
F. Pelo que, também foram provados a existência da relação de empréstimo entre a autora e o réu e o incumprimento do réu.
G. Nos autos só falta provar o único facto que é o objecto na relação de empréstimo entre a autora e o réu, ou seja, a quantidade e o peso das jóias emprestadas pela autora ao réu.
H. Contudo, mesmo que não se consiga provar a quantidade e o peso das jóias emprestadas pela autora ao réu, o Tribunal a quo também não deve rejeitar os pedidos da autora.
I. Dado que nos termos do art.º 564.º do Código de Processo Civil, se não houver elementos para fixar o objecto, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença.
J. Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida (art.º 564.º do CPC)
Por exemplo, numa acção de prestação de indemnização por facto ilícito, caso se consiga provar apenas todos os pressupostos cíveis mas não seja possível apurar a quantia por danos, assim só se pode condenar no que se liquidar em execução de sentença. Contudo, caso não se consiga provar a existência de danos, deve ser rejeitado o pedido, uma vez que nos autos já não é possível condenar o réu a liquidar na execução da sentença.”
K. Pelo que, após realizado o julgamento, já ficaram provados nos autos a existência da relação de empréstimo e o incumprimento do réu, estando verificada assim a situação prevista no art.º 564.º, n.º2 do Código de Processo Penal, assim sendo, deve-se julgar que se proceda à liquidação na execução da sentença.

Pelo acima exposto deve-se julgar procedente a motivação do recurso e em consequência, revogar a decisão proferida e declarar a existência da relação de empréstimo entre a autora e o réu e julgar a restituição da respectiva quantia a liquidar na execução da sentença.


Foram colhidos os vistos legais.
   II – FACTOS
   Vêm provados os factos seguintes:

- Em Julho de 2010, a pedido do réu, a autora emprestou-lhe os colares e pulseiras de ouro cuja quantidade não se apura.
   - Até à presente data o réu ainda não devolveu as jóias emprestadas.
   - A autora, por várias vezes, exigiu ao réu que devolvesse as jóias emprestadas, não tendo, contudo, o réu feito caso disso.
   - No dia 12 de Novembro de 2010, a autora apresentou queixa junto da Polícia Judiciária, esperando que pudesse recuperar a quantia e as jóias por si emprestadas, através da autoridade policial.
   - Por causa disso, foi instaurado inquérito pelo Ministério Público com referência 2240/2011, tendo sido contactado ainda o réu.
   - O Ministério Público apurou que o réu tinha empenhado as jóias nas casas de penhores “C”(C) e “D”(D), respectivamente.
   - Mas já decorreu o prazo de remição e os supracitados penhores já foram vendidos.
   - No dia 10 de Julho de 2010, o preço do ouro era cerca de HK$12.160,00 por tael.
    III – FUNDAMENTOS
    O caso
    A A. diz ter feito um empréstimo ao R. de HKD100.000,00 e de umas tantas jóias, três pulseiras e três colares de ouro, dizendo valerem MOP 100.000,00 (valor do ouro e feitio).
    A pedido deste, em hora de aflição, e que logo lhe devolveria, à noitinha do mesmo dia, o dinheiro.
    Não devolveu.
    Passada uma semana, volta a pedir dinheiro à A. e, como esta não tivesse, empresta-lhe as jóias.
    A A. tem insistido pela devolução do dinheiro e das jóias, mas nada.
    Prova-se: do dinheiro, nada; das jóias, que lhe emprestou colares e pulseiras de ouro, cuja quantidade e outra descrição nada se sabe.
    O R. empenhou as jóias e já passou o prazo de remissão.
    O que pretende a A.?
    O pedido formulado, sabemo-lo bem: quer o pagamento de HKD 100.000,00 e o equivalente ao valor das seis peças de ouro no montante de MOP 100.000,00.
    Como, na sentença, a Mma Juíza considerou que a A. não conseguiu provar que emprestara coisa fungível ao R., não havendo uma relação de mútuo, tendo sido o pedido julgado improcedente, recorre aquela, dizendo que, como se provou alguma coisa, que houve empréstimo de jóias, não restituídas, se deve condenar no que se venha a liquidar em execução de sentença.
    Terá razão a A.?
    O pecado que se assume como original, na sentença recorrida, no sentido de que o problema resulta, desde logo, ab origine, da forma como o pedido foi formulado, partindo-se do pressuposto de que se pediu a restituição de coisas fungíveis, talvez não seja bem assim.
    Não basta apenas formular um pedido; há que dizer porque é que se formula um dado pedido, em que causa de pedir ele radica.
    Ora, a A. - vamos falar apenas das jóias, pois foi apenas esse o empréstimo provado -, ao mesmo tempo que configura uma relação de comodato - e bem -, acaba por formular um pedido de condenação no pagamento de um montante de valor equivalente à das jóias, parecendo basear-se num contrato de mútuo, na leitura que se fez na douta sentença.
    “Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir. “ – art. 1057º do CC.
    “Mútuo é o contrato pelo qual uma parte empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.” – art- 1070º do CC.
    Ainda que vulgarmente se fale de empréstimo, num e noutro caso, estamos perante situações contratuais completamente distintas com regimes bem diferentes.
    A. A. configura o contrato como comodato. As jóias eram aquelas e não outras. O valor peticionado correspondia ao peso do ouro e ao feitio. Eram aquelas jóias que o R. devia entregar e não quaisquer outras ou o correspondente valor em ouro.
    A falta de restituição das coisas comodatadas, interpelado o R., como foi, gera incumprimento e quem incumpre presume-se culpado. Sendo culpado, tem a obrigação de indemnizar (artigos 787º e 788º do CC).
     O R. não restituiu as jóias que, empenhadas, foram entretanto vendidas, sem possibilidade de ser remidas.
    A A. não detalha um pedido indemnizatório, dizendo apenas no artigo 21º da p.i. :“O réu é obrigado a restituir as acima referidas seis peças de ouro, no entanto, dado que já foram empenhadas e vendidas, este não poderá restituir as mesmas seis peças de ouro, pelo que, deve restituir um montante igual ao valor dessas peças, ou seja um montante não inferior a MOP 100.000,00.”
    É certo que é menos feliz na formulação do pedido e da causa de pedir. Mas dá para entender, pois vamos considerar que esta formulação corresponde a um ressarcimento dos prejuízos pela não restituição, calculados em função do valor dos mesmos e da medida do empobrecimento da A.
    A A. descreve as jóias já vendidas e pede um valor que não corresponde a uma mero valor de troca. Podia pedir indemnização por outros prejuízos, por uma valor afectivo, particular estima, especial valor artístico, etc., Não, limita-se ao prejuízo que decorre do valor das jóias, resultante do valor do ouro e do feitio.
    Embora descrevendo as peças, não logrou provar quantas, quais e como se aparentam essas peças.
    Mas que houve prejuízo isso houve. Também se comprovam os restantes elementos, pressuposto da obrigação de indemnizar: ilicitude em face do incumprimento culposo e nexo causal.
     Assim sendo, não se vê razão para que face ao disposto no art. 564º do CPC, n.º 2 do CPC, não se tendo apurado o objecto e a quantidade, para que o tribunal não condene no que se venha a liquidar em execução de sentença.
    E nem seria difícil, à partida, tendo-se apurado que as peças foram vendidas no penhorista, apurar qual o seu valor, pelo menos, de referência.
    Questão que se poderia colocar a esta configuração seria a leitura de que a lei não permite que se faça uma segunda liquidação, ainda que em sede executiva. A A. teve já oportunidade de proceder à liquidação dos prejuízos e não os conseguiu comprovar na acção, ainda que tenha provado que eles existiram.
    Mas essa é outra questão e não tem sido esse o entendimento deste Tribunal em situações paralelas em que se não comprovam na acção declarativa o montante dos danos sofridos.
    Pelo que somos a considerar procedente o pedido da A., não obstante imperfeitamente formulado, na sua materialidade e no seu fundamento, mas considerando que ela emprestou certas jóias ao R, viu-se desapossada delas, por outro lado, o R. não as restituiu, ficou com o dinheiro provindo do penhor das mesmas, terá ele de indemnizar aquela, na medida dos valores que se venham a encontrar para os prejuízos que comprovadamente não deixaram de existir.
    Nesta conformidade, não se deixará de julgar parcialmente procedente o pedido formulado na acção, dando provimento ao recurso.
    Não decidir desta forma, afigura-se-nos que, por excessivo rigor formal, seria deixar sem tutela o direito da A.
    
    IV – DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam dar provimento ao recurso e, em consequência, revogando parcialmente o decidido, condenam o R. a pagar à A. o valor dos bens que foram objecto do comodato entre ambos celebrado, em conformidade com o que se venha a apurar em sede de liquidação da sentença.
    Custas pelas partes em ambas as instâncias na proporção do decaimento, sem prejuízo do que vier a apurar-se em sede de execução de sentença.
    À Exmª Defensora, a título de honorários, fixo, nesta instância, a quantia de MOP$1.800,00
Macau, 26 de Março de 2015,

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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira

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Ho Wai Neng

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José Cândido de Pinho
656/2014 12/12