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Processo n.º 764/2014 Data do acórdão: 2015-3-19 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– consumo ilícito de estupefacientes
– art.o 14.o da Lei n.o 17/2009
– condução sob influência de estupefacientes
– art.o 90.o, n.o 2, da Lei do Trânsito Rodoviário
S U M Á R I O
1. O tipo legal de consumo ilícito de estupefacientes do art.º 14.º da Lei n.º 17/2009 pretende evitar que o seu agente tenha a sua própria saúde prejudicada pelo efeito consabidamente nocivo decorrente de todo o consumo ilegal de substância estupefaciente, enquanto o tipo legal de condução sob influência de estupefacientes do art.º 90.º, n.º 2, da Lei do Trânsito Rodoviário procura evitar o compreensível grande perigo de ofensa a acarretar pela conduta de condução do agente à vida e/ou à integridade física e/ou aos bens de outras pessoas.
2. Tutelando esses dois tipos legais de crime interesses eminentemente distintos, só há concurso efectivo real entre os dois tipos, e não concurso aparente, nem qualquer relação de absorção do primeiro pelo segundo.
O Primeiro Juiz-Adjunto,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 764/2014
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguido recorrido: A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida em 30 de Setembro de 2014 a fls. 67 a 70v dos autos de Processo Comum Singular n.° CR4-14-0291-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte relativa à absolvição do arguido A, já aí melhor identificado, da também inicialmente acusada prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (doravante abreviada como Lei de droga), veio o Ministério Público acusador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a condenação directa do arguido no dito crime, por, no seu entender, este crime não dever ser considerado absorvido pelo crime de condução sob influência de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 90.o, n.o 2, da Lei n.o 3/2007, de 7 de Maio (Lei do Trânsito Rodoviário, abreviada como LTR) (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 78 a 81 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso não respondeu o arguido.
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer (a fls. 91 a 91v), pugnando pelo provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro juiz-adjunto nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do Código de Processo Penal (CPP).
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos com pertinência à solução do recurso:
1. O Tribunal a quo decidiu absolver, na sentença ora recorrida, o arguido do inicialmente também imputado crime de consumo ilícito de estupefacientes, por entender estar este crime absorvido pelo crime de condução sob influência de estupefacientes.
2. No texto da mesma sentença, deu-se por provado, na sua essência, o seguinte:
– em 27 de Março de 2014, às 04:40 horas, numa operação policial de STOP junto ao Hotel Fortuna de Macau, foi mandado parar o ciclomotor na altura conduzido pelo arguido, na sequência do que este foi levado ao Centro Hospitalar Conde de São Januário para se submeter a teste laboratorial, do qual saiu confirmado que o corpo do arguido apresentava reacção positiva à substância estupefaciente de Ketamina;
– cerca das 02:00 horas desse dia 27 de Março de 2014, o arguido tomou Ketamina num estabelecimento de karaoke em Macau.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Do teor da sua motivação, resulta que o Ministério Público ora recorrente pretende que seja condenado o arguido também no crime de consumo ilícito de estupefacientes.
E para este Tribunal ad quem, há que proceder esse desejo do Ministério Público, porquanto, tal como já se explicou no acórdão de 10 de Abril de 2014 no Processo n.o 122/2014 deste TSI, na esteira, aliás, da igual tese jurídica já veiculada num outro acórdão deste Tribunal, de 12 de Dezembro de 2013, proferido no Processo n.o 689/2013:
– o tipo legal de consumo ilícito de estupefaciente do art.º 14.º da Lei de droga pretende evitar que o seu agente tenha a sua própria saúde prejudicada pelo efeito consabidamente nocivo decorrente de todo o consumo ilegal de substância estupefaciente, enquanto o tipo legal de condução sob influência de estupefaciente do art.º 90.º, n.º 2, da LTR procura evitar o compreensível grande perigo de ofensa a acarretar pela conduta de condução do agente à vida e/ou à integridade física e/ou aos bens de outras pessoas; tutelando assim esses dois tipos legais de crime interesses eminentemente distintos, só há concurso efectivo real entre os dois tipos, e não concurso aparente, nem qualquer relação de absorção do primeiro pelo segundo.
Portanto, é de passar realmente a condenar o arguido também como autor material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes do art.o 14.o da Lei de droga, como tal já vinha inicialmente também acusado pelo Ministério Público.
Entretanto, para assegurar ao arguido o segundo (e último) grau de jurisdição quanto à questão da medida da pena, há que ordenar ao mesmo Tribunal Singular recorrido que venha a aplicar concretamente a sanção legal ao crime de consumo ilícto de estupefacientes do arguido, tida por adequada em função de todas as circunstâncias fácticas já dadas por provadas na sentença ora recorrida, e, depois, a punir o arguido em sede do art.o 71.o do Código Penal.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, condenando o arguido A também como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, 10 de Agosto, cabendo ao mesmo Tribunal Singular ora recorrido a tarefa de proceder à medida concreta da pena deste crime e ao cúmulo jurídico das sanções em sede do art.o 71.o do Código Penal.
Custas do recurso pelo arguido, com duas UC de taxa de justiça, e oitocentas patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Comunique o presente acórdão ao Instituto de Acção Social, e ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, para efeitos tidos por convenientes.
Macau, 19 de Março de 2015.
________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
________________________
Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
________________________
José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
(Segue declaração)

Processo nº 764/2014
(Autos de recurso penal)



Declaração de voto


Vencido. Embora se me mostre de considerar verificado o crime de “consumo ilícito de estupefaciente”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, pelo qual foi o arguido absolvido, entendo que incorrecta foi a decisão da sua condenação pelo crime de “condução sob influência de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 90°, n.° 2, da Lei n.° 3/2007, dando aqui como integralmente reproduzido o entendimento que tenho vindo a assumir nas declarações de voto que anexei aos Ac. deste T.S.I. de 28.01.2014 e 15.05.2014, Proc. n°. 717/2011 e 219/2014.

De facto, (e ao inverso do que sucede com a “fiscalização da condução sob influência de álcool”), regulamentada ainda não estando a matéria dos “exames, métodos e materiais a utilizar para a determinação do estado de influenciado por estupefacientes ou substâncias psicotrópicas” – cfr., art. 119°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 3/2007 e a Portaria n.° 274/95/M de 16.10 – e notando-se que no próprio Parecer da Comissão da Assembleia Legislativa sobre a então proposta de “Lei do Trânsito Rodoviário” com a qual (após aprovação) se criminalizou a “condução sob influência de estupefacientes” se consignou que “a norma do art. 90°, n.° 2 não podia ser aplicada enquanto não estivesse legalmente regulamentada a matéria dos exames, métodos… para determinar o estado de influenciado por estupefacientes”, (cfr., Parecer n.° 1/III/2007, no site da A.L.M.), possível não me parece a decisão condenatória dos presentes autos.

Macau, aos 19 Março de 2015
José Maria Dias Azedo



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