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Processo nº 666/2014
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 16 de Abril de 2015

ASSUNTO:
- Impugnação da decisão da matéria de facto
- Posse

SUMÁRIO:
- A posse dos recibos de quitação faz presumir que o seu possuidor efectuou o respectivo pagamento.
- Considerar-se ser ou não dono da fracção autónoma é um elemento subjectivo íntimo da própria pessoa, pelo que a sua aprovação não pode limitar-se simplesmente à prova testemunhal, tem de ser analisada tendo em conta a prova na sua globalidade e os demais factos assentes e provados.
- Uma pessoa pode muito bem saber que não é o proprietário jurídico porque não pagou ainda integralmente o preço da compra e que o contrato definitivo de compra e venda ainda não se encontra realizado, contudo, tais factos nada impede que essa pessoa possa agir como um proprietário de facto, tratando a coisa que lhe foi entregue como sua, tudo dependendo da factualidade alegada e provada.
- A procura do proprietário jurídico para formalizar a escritura pública de compra e venda pode entender-se como uma tentativa de transformar a sua posição de proprietário de facto para a de jurídico, o que realça ainda mais o seu animus de possuidor.
- Para haver posse, é necessário reunir simultaneamente dois elementos: o corpus e o animus, isto é, tem de praticar actos materiais de facto correspondentes ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, na convicção de que está a agir como verdadeiro titular do direito.
O Relator



















Processo nº 666/2014
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 16 de Abril de 2015
Recorrente: A (Autora)
Recorrido: B (Réu)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sentença de 31/03/2014, julgou-se procedente a acção de usucapião instaurada por B contra C e A e declarou-se B como proprietário da fracção autónoma “DD3” correspondente ao 3º andar “DD”, denominado por “Edifício XX”, situada na Rua XX, nº XX, em Macau, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 2XXX3 a fls. XX do Livro XX e inscrita na matriz predial sob o nº 03XXX8. Mais se julgou improcedente a acção de revindicação instaurada por A com intervenção principal de C contra B.
Dessa decisão vem recorrer A, Autora da acção de revindicação e Ré na acção de usucapião, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. Vem o presente recurso interposto da parte da sentença proferida nos autos, pela qual o Tribunal a quo decidiu "julgar procedente a acção de usucapião proposta por B, declarando-o proprietário da fracção autónoma objecto dos autos.
B. Entende a Recorrente que a decisão recorrida viola elementares princípios de direito e de justiça, subvertendo os princípios basilares da aquisição do direito de propriedade por usucapião, bem como a lógica inerente à celebração de um contrato-promessa, porquanto não é suposto - e tal facto é susceptível de gerar grande insegurança - que a aquisição do direito de propriedade por usucapião possa ter por base a celebração de um contrato promessa, tanto mais quando se trata de um contrato que não foi integralmente cumprido, nem contou com a intervenção dos dois proprietários e legítimos titulares inscritos do imóvel.
C. A Recorrente não ignora que, em determinadas (e excepcionais) circunstâncias, um contrato-promessa pode ser fonte de aquisição do direito de propriedade por usucapião. Nesse sentido já se vem pronunciando parte da doutrina e a jurisprudência, sendo no entanto unânimes que, para que tal aconteça, é necessária a verificação e demonstração do momento em que se verificou a inversão do título e, sobretudo, a demonstração do pressuposto relativo ao necessário "anímus" possessório, requisitos esses que, manifestamente, não se verificam no caso em apreço.
D. O do Ac. S.T.J. de 09.11.2012 mencionado e transcrito na sentença recorrida não tem aplicação ao caso em apreço.
E. Analisado o Acórdão com resposta à matéria de facto e a sentença recorrida, logo se pode concluir que, na sentença recorrida, os fundamentos estão em oposição com a decisão, em termos que bem evidenciam o "animus" do Recorrido na ocupação do imóvel em apreço nos autos.
F. Ao ter dado os quesitos 11.º e 13.º como provados e ao considerar, na fundamentação da sentença recorrida, que o Réu bem sabia que tinha de pagar o remanescente do preço e de realizar a escritura pública de compra e venda, logo se retira que o Recorrido tem animus de promitente comprador, não de possuidor, situação que logo inviabiliza a aquisição por usucapião nos termos expressamente previstos pelo art. 1215.º do Código Civil.
G. Com efeito, ao considerar os referidos quesitos 11.º e 13.º como provados e, em coerência, ao fazer consignar na fundamentação da sentença que o Recorrido bem sabia que tinha de pagar o remanescente do preço e de celebrar a escritura pública de compra e venda é inescapável a conclusão de que o Recorrido agiu e age com animus de promitente comprador, não de proprietário do imóvel.
H. Tais factos e respectivos fundamentos são totalmente incompatíveis com a afirmação de que o Recorrido tem animus de possuidor, afirmação essa que surge assim sem qualquer sustentação.
I. Pelo exposto, ao dar os quesitos 11.º e 13.º como provados e ao considerar na fundamentação que o Recorrido bem sabia que tinha de pagar o remanescente do preço e realizar a escritura pública de compra e venda, padece a sentença recorrida de nulidade o contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, na medida em os factos dados como provados sob os quesitos 11.° e 13.° e a fundamentação da sentença ("...o réu sabia que tinha de pagar o remanescente do preço e que tinha de realizar a escritura pública de compra e venda...") é totalmente incompatível com a aquisição por usucapião, na medida em que tais factos infirmam imediatamente a asserção de que o Recorrido tenha animus de possuidor do imóvel.
J. Pelo que, nos termos do art. 571.°, n.º 1, al. c) do C.P.C., padece a sentença recorrida de nulidade uma vez que os fundamentos estão em oposição com a decisão, nulidade essa que desde já se suscita e cuja apreciação e declaração se requer a V. Ex.ªs.
K. Sem prejuízo do acima exposto e também do recurso da matéria de direito nos termos que infra se expõem, entende ainda a Recorrente, que, analisadas as provas produzidas e carreadas para os autos pelo Recorrido, não entende a Recorrente como pôde o Tribunal a quo considerar como provados os factos com a extensão que lhes foi dada na resposta à matéria de facto.
L. Do que resulta dos autos (factos alegados pelo Recorrido e documentos juntos pelo mesmo) a par das declarações prestadas pelas testemunhas em sede de audiência de julgamento, o que se retira é que o Recorrido ocupou e ocupa o imóvel objecto dos presentes autos, tendo plena noção de que é um promitente -comprador do mesmo.
M. Nos termos do art. 599.°, n.º 1, al. a) do C.P.C., entende a Recorrente que foram indevidamente considerados provados os quesitos 7.°, 8.°, 14.º, 16.° e 17.º da base instrutória.
N. Nos termos do art. 599.°, n.º1, als. b) e n.º 2 do C.P.C., os elementos de prova que impõem decisão diversa da recorrida são os seguintes: declarações de D, 1.ª testemunha do Réu, ouvida na sessão de julgamento de 10.02.2014, às 12h14.02 gravação (1$6GAQ1G06611270), minuto 00.00 a 15.46 e às 12h29.52, gravação (1$6GVSBW06611270), minuto 00.00 a 22.26; declarações de E, 2.ª testemunha do Réu, ouvida na sessão de julgamento de 11.02.2014, às 15h29.15 gravação (1$7{U})w06611270), minuto 00.00 a 14.50 e declarações de F, 3.ª testemunha do Réu, ouvida na sessão de julgamento de 11.02.2014, às 15h29.15 gravação (1$7{U})w06611270), minuto 15.30 a 25.55, declarações de G, ouvida na sessão de julgamento de 10.02.2014, às 10h56.49 gravação (1$6DP#EG06611270), minuto 01.45 a 29.44, declarações de H, ouvida na sessão de julgamento de 10.02.2014, às 10h56.49 gravação (1$6DP#EG06611270), minuto 33.00 A 34.37 e às 11h31.32 gravação (1$6EY12W06611270), minuto 00.00 a 11.39, bem como pela ausência de apresentação de prova documental pelo Recorrido apta a demonstrar a prática de actos materiais sobre o imóvel susceptíveis de o fazer ver como "proprietário do imóvel."
O. O Tribunal a quo, em resposta ao quesito 7.°, ao ter respondido também ... "e este passou a dispor da mesma" extravasou a matéria quesitada, fez constar da resposta um conceito de direito, além de que nenhuma das testemunhas arroladas pelo Réu referiu o que quer que fosse no sentido de que o Réu tenha passado a dispor do imóvel.
P. Quanto à resposta ao quesito 8.°, pese embora a Recorrente registe e concorde que o Tribunal a quo apenas tenha considerado parcialmente provado tal quesito (não resultou provado que lia partir dessa data e até ao presente o R. B passou a considerar esta fracção autónoma como de sua propriedade e, em virtude desse facto..."), a Recorrente considera que tal quesito devia ter sido integralmente dado como não provado.
Q. Com efeito, dos documentos 4 a 10 juntos com a petição inicial apenas se retira que o imóvel se encontra inscrito em nome da Recorrente e de C e que, de 2004 a 2010, não foi devida contribuição predial; dos documentos 11 a 20 juntos com a petição inicial, mais uma vez se retira que o imóvel se encontra inscrito a favor dos Recorrente e de C e que de 2005 a 2011 e de 1995 a 1997 foi devido o pagamento da renda ao Governo da RAEM, nada resultando, no entanto, que tais pagamentos tenham sido suportados pelo Recorrido.
R. Em consonância com a resposta aos quesitos 11° e 13.° da base instrutória, bem como a resposta parcialmente negativa ao quesito 8.° (o Tribunal a quo não considerou provado que "a partir dessa data e até ao presente o R. B passou a considerar esta fracção autónoma como de sua propriedade e, em virtude desse facto...", entende a Recorrente que o quesito 14.° só podia ter sido dado como não provado.
S. Acresce que dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Recorrido apenas resultou que o Recorrido ocupou a fracção ao abrigo da celebração do contrato-promessa. Nada mais.
T. Entende a Recorrente que o quesito n.º 16 devia ter sido dado como não provado, desde logo porquanto é o que resulta da própria resposta do Tribunal a quo ao quesito 18.° (provado apenas que o Réu é conhecido por alguns amigos como sendo o dono da fracção referida em A). Acresce que houve oposição, a Recorrente tentou reaver o imóvel, sendo que o Recorrido bem sabia que o contrato-promessa não tinha sido assinado por um dos titulares do imóvel (conferir quesito 13.°).
U. Apesar de o Tribunal a quo não ter dado como provado que o Recorrido fez benfeitorias necessárias, entende a Recorrente que o quesito 17.° devia ter sido dado como não provado, pois o Recorrido tinha de ter junto prova documental que demonstrasse que espécie de reparações fez.
V. Pelo exposto, perante a prova produzida em audiência e referida nas alegações, bem como da análise dos documentos juntos aos autos, na ausência de outra prova documental, o Tribunal a quo não podia ter dado como provados os factos n.ºs 7.° (apenas na parte final), 8.°, 14.°, 16.° e 17.° da base instrutória, requerendo-se assim a Vossas Excelências que seja modificada a matéria de facto no sentido de tais factos passarem a ser dados como NÃO PROVADOS.
W. Sem prejuízo da análise das questões acima identificadas, entende a Recorrente que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, o presente recurso poderá ser declarado procedente, apenas com base na análise da questão de direito objecto dos presentes autos.
X. Com efeito, o presente recurso versa sobre uma vexata quaestio: a de saber se o contrato-promessa com tradição da coisa para o Promitente-comprador, o ora Recorrido será, por si só, suficiente para transferir a "posse efectiva", em termos que o habilitem a adquirir a fracção autónoma objecto dos presentes autos por usucapião.
Y. Na senda do Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do processo n.º 425/2012, 12.01.2012) onde se conclui "ser necessário apurar as circunstâncias concretas para aquilatar das características da posse (...)" logo se conclui que o título em que o Recorrido se suporta para sustentar a aquisição do direito de propriedade por usucapião é um contrato-promessa que, tal como resulta dos quesitos 5. e 6. confessados nos autos, não foi cumprido pelo mesmo, na medida em que do preço convencionado de HKD$210.000,00, o Recorrido admitiu expressamente que apenas pagou à Recorrente o valor de HKD$100,000.00.
Z. Contrariamente ao que se consigna na sentença recorrida o não pagamento integral do preço não é questão de somenos, mas um sinal evidente de que o Recorrido sabe estar a ocupar um imóvel que ainda não lhe pertence, no âmbito de um negócio (de cariz meramente obrigacional) que ainda não foi cumprido.
AA. Acresce que, com o devido respeito, a análise efectuada pelo Tribunal a quo quanto à pretensa validade de um contrato de compra e venda em que o preço foi apenas parcialmente pago é totalmente à margem, não tem qualquer relação com a questão da análise do "animus" que nesta sede cumpre analisar.
BB. Quem quer que seja que apenas cumpra parcialmente um contrato, tem plena noção de que está a lesar os interesses de terceiro e que o contrato não foi integralmente cumprido. Se o Requerido tivesse pago o preço na íntegra, sempre poderia vir alegar que a ausência de celebração da escritura pública era uma mera formalidade, na medida em que o interesse imediato do promitente-vendedor já fora satisfeito, mediante o pagamento, nos termos então convencionados.
CC. Acresce que, tal como acima invocado, o próprio Recorrido alegou na sua petição inicial - conferir artigos 10° e 12° (quesitos 11.° e 13° da base instrutória) que, ao longo dos anos, procurou contactar a Recorrente e C para a outorga da necessária escritura pública de compra e venda. Desse facto, logo se retira que o Recorrido sabia que tinha de celebrar a escritura pública de compra e venda, tendo assim plena noção da sua qualidade de promitente-comprador do imóvel em apreço nos autos.
DD. Acresce que o contrato-promessa em apreço nos autos apenas foi assinado por um dos titulares do imóvel, pela ora Recorrente, e não também por C.
EE. Contrariamente ao que se consigna na sentença recorrida, o facto de o contrato não ter sido assinado pelos dois titulares não é questão despicienda, sendo que - mais uma vez contrariamente ao que se consigna na sentença recorrida - o Recorrido tem e tinha plena noção de que o contrato-promessa não foi assinado conjuntamente pelos dois titulares do imóvel.
FF. É o que resulta das regras da experiência comum, que o promitente-comprador saiba a quem pertence o imóvel objecto do contrato-promessa, tanto mais quando esse contrato foi efectuado por intermédio de escritório de advogados, e o que resulta do facto alegado pelo próprio Recorrido no artigo 12.º da petição inicial (cfr. quesito 13.º da base instrutória), donde resulta que o mesmo "não conseguiu contactar com a Recorrente, nem com o seu ex-marido C."
GG. Pelas razões expostas, no entender da Recorrente, dúvidas não podem existir de que não se verificam os pressupostos para a aquisição do direito de propriedade por usucapião, porquanto o Recorrido tinha perfeita consciência de que era uma mero promitente-comprador da fracção autónoma em apreço nos autos e que o negócio não estava concluído.
HH. Não pode confundir-se o mero exercício de poderes de facto com o exercício da posse.
II. No caso, não existe animus possidendi
JJ. Não houve inversão do título de posse ou mesmo factos tendentes a determinar a data em que tal inversão, - a ter ocorrido - se iniciou, não sendo possível afirmar o preenchimento do pressuposto temporal necessário ao reconhecimento da usucapião.
KK. O momento do cômputo dos prazos previstos no art. 1221.° do Código Civil não pode sequer ser percepcionado porquanto não houve alegação e, por maioria de razão, prova da data de inversão do título da posse.
LL. Acresce que, ainda que existisse posse - hipótese que por mera cautela de patrocínio se pondera, sem conceder -, a mesma sempre seria não titulada e de má fé, tendo em conta que se basearia num contrato promessa de compra e venda de um imóvel celebrado sem intervenção de um dos seus legítimos proprietários.
MM. Sendo uma posse oculta no que diz respeito ao titular C.
NN. Além de que não poder igualmente ser considerada pública e pacífica, tendo em conta que o próprio Tribunal a quo, em resposta ao quesito 18.°: "Provado que o Réu é conhecido por alguns amigos como sendo o dono da fracção referida em A).
OO. Pelas razões expostas, entende a Recorrente que a sentença recorrida viola o disposto nos arts. 1212.°, 1215.°, 1221.°, 1222.° e 1225.° do Código Civil, bem como o disposto no art. 571.°, n.º1, al. c) do Código de Processo Civil.
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A parte contrária respondeu à motivação do recurso supra referido, nos termos constantes a fls. 270 a 287 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso ora interposto.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
a) Relativamente à fracção autónoma “DD3” correspondente ao 3º andar “DD”, denominado por “Edifício XX”, situada na Rua XX, nº XX, em Macau, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 2XXX3 a fls. XX do Livro XX e inscrita na matriz predial sob o nº 03XXX8 foi inscrito no Registo Predial a aquisição a favor de A e de C, casados entre si sobre o regime supletivo da lei chinesa, sendo metade do cônjuge mulher como bem próprio – cf. fls. 12 -.
b) Em 26 de Novembro de 1993, a Autora A celebrou com o Réu B um contrato de promessa de compra e venda, através do qual lhe prometeu vender e o Réu lhe prometeu comprar a fracção autónoma referida em a) pelo preço total de HKD$210.000,00, tendo nessa altura o Réu B entregue à Autora A o sinal no montante de HKD$100.000,00 tendo ficado acordado que o remanescente do preço seria pago com a outorga da correspondente escritura de compra e venda.
c) Após a assinatura do contrato de promessa de compra e venda referido em b) a Autora entregou ao Réu as chaves da fracção autónoma referida em a) e este passou a dispor da mesma.
d) O Réu procedeu ao pagamento ao Serviço de Finanças das rendas referentes à fracção autónoma referida em a) relativas a 1995 a 1997 e 2005 a 2011.
e) Em Maio de 1994 o Réu contratou o fornecimento de energia eléctrica para a fracção referida em a).
f) O Réu tentou contactar com a Autora sem sucesso.
g) Da certidão do registo predial consta que a Autora é casada com C.
h) O Réu desde que recebeu a fracção considerou ser o dono da mesma.
i) O Réu B e a sua família ainda hoje ali residem.
j) O Réu B actua nos termos referidos em h) à vista de todos e sem oposição.
k) Desde que vive na fracção referida em a) o Réu procedeu às reparações necessárias.
l) O Réu é reconhecido por alguns amigos como sendo o dono da fracção referida em a).
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III – Fundamentação
1. Da impugnação da decisão da matéria de facto
Entende a Autora que foram indevidamente julgados os quesitos 7.°, 8.°, 14.º, 16.° e 17.º da Base Instrutória.
Vamos analisar se lhe assiste razão.
Quesito 7º
   “No dia em que assinou o contrato promessa de compra e venda, isto é, em 26 de Novembro de 1993, a 1.ª A. A entregou imediatamente ao R. B as chaves da fracção autónoma e o R. tomou imediatamente posse desta, ali passando a residir com a sua família?”
O Tribunal a quo respondeu pela forma seguinte:
   “Provado que após a assinatura do contrato de promessa de compra e venda referido em 5.° e 6.°, a Autora entregou ao Réu as chaves da fracção autónoma referida em A) e este passou a dispor da mesma.”
Para a Autora, o Tribunal a quo, ao ter respondido “...e este passou a dispor da mesma”, extravasou a matéria quesitada, fez constar da resposta um conceito de direito, além de que nenhuma das testemunhas arroladas pelo Réu referiu o que quer que fosse no sentido de que este passou a dispor do imóvel.
A palavra “dispor” pode ter um sentido jurídico associado com a ideia de posse, mas também pode ter outro significado vulgar no sentido de “utilizar livremente”.
Comparando o texto inicial do referido quesito e da resposta dada, cremos que o Tribunal a quo queria através da palavra “dispor” referir que o Réu passou a “utilizar livremente” o imóvel a partir da celebração do contrato de compra e venda.
Nesta conformidade, não nos parece ter necessidade de se alterar a resposta ao quesito em causa, bastando limitar o seu sentido nos termos acima consignados.
Em relação ao quesito 8º, foi perguntado:
   “A partir dessa data e até ao presente o R. B passou a considerar esta fracção autónoma como de sua propriedade e, em virtude desse facto, tem pago todas as contribuições e impostos devidos pela mesma?”
 O Tribunal a quo respondeu que:
   “Provado apenas que o Réu procedeu ao pagamento ao Serviço de Finanças das rendas referentes à fracção autónoma referida em A) relativas a 1995 a 1997 e 2005 a 2011.”
Na óptica da Autora, tal quesito deveria ter sido integralmente dado como não provado, já que “dos documentos 4 a 10 juntos com a petição inicial apenas se retira que o imóvel se encontra inscrito em nome da Recorrente e de C e que, de 2004 a 2010, não foi devida contribuição predial; dos documentos 11 a 20 juntos com a petição inicial, mais uma vez se retira que o imóvel se encontra inscrito a favor dos Recorrente e de C e que de 2005 a 2011 e de 1995 a 1997 foi devido o pagamento da renda ao Governo da RAEM, nada resultando, no entanto, que tais pagamentos tenham sido suportados pelo Recorrido”.
Segundo as regras da experiência comum da vida, o recibo da quitação é emitido e entregue a quem efectuou o pagamento.
Portanto, a posse dos recibos de quitação faz presumir que o seu possuidor efectuou o respectivo pagamento.
Nesta conformidade, é correcto e legítimo para o Tribunal a quo, com base nos recibos de quitação juntos pelo Réu e não tendo outros elementos probatórios no sentido contrário, retirar a ilação de que foi ele quem pagou as rendas em causa.
Improcede, assim, esta parte do recurso.
No que respeita ao quesito 14º, questionou-se o seguinte:
   “O R. B considerou sempre desde o dia em que ali passou a residir que este apartamento era, e é, de sua propriedade? ”
O Tribunal a quo julgou:
   “Provado apenas que o Réu desde que recebeu a fracção considerou ser o dono da mesma.”
No entendimento da Autora, “em consonância com a resposta aos quesitos 11° e 13.° da base instrutória, bem como a resposta parcialmente negativa ao quesito 8.° (o Tribunal a quo não considerou provado que "a partir dessa data e até ao presente o R. B passou a considerar esta fracção autónoma como de sua propriedade e, em virtude desse facto..."”, este quesito 14.° deveria ser considerado como não provado.
Por outro lado, alega ainda que “dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Recorrido apenas resultou que o Recorrido ocupou a fracção ao abrigo da celebração do contrato-promessa”.
Não lhe assiste razão.
Considerar-se ser ou não dono da fracção autónoma é um elemento subjectivo íntimo da própria pessoa, pelo que a sua aprovação não pode limitar-se simplesmente à prova testemunhal, tem de ser analisada tendo em conta a prova na sua globalidade e os demais factos assentes e provados.
No caso em apreço, ficaram provados que:
- O Réu tomou conta da fracção autónoma em referência após a celebração do contrato promessa de compra e venda e que a partir da qual passou ali a residir com a sua família;
- Praticou os actos materiais próprios de um proprietário, tais como o pagamento das rendas do terreno onde se situa a fracção autónoma em causa.
Ora, a conjugação destes dois factos, para nós, é suficiente para demonstrar o referido elemento subjectivo íntimo do Réu.
Em relação ao quesito 16º, foi inquirido:
   “O R. B sempre agiu e age, como proprietário da fracção autónoma, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém?”
A resposta do Tribunal a quo foi a seguinte:
   “Provado que o Réu actua nos termos referidos na resposta do item 14.° à vista de todos e sem oposição.”
Entende a Autora que este quesito “devia ter sido dado como não provado, desde logo porquanto é o que resulta da própria resposta do Tribunal a quo ao quesito 18.° (provado apenas que o Réu é conhecido por alguns amigos como sendo o dono da fracção referida em A)”.
Além disso, alega ainda que houve oposição, na medida em que tentou reaver o imóvel, uma vez que o Réu bem sabia que o contrato-promessa não tinha sido assinado por um dos titulares do imóvel.
Também aqui não tem razão a Autora.
Em primeiro lugar, não constam do elenco dos factos assentes e provados que:
- a Autora tentou reaver o imóvel antes da propositura da acção de revindicação (em 14/07/2011); e
- o Réu bem sabia que o contrato-promessa não tinha sido assinado por um dos titulares do imóvel.
Por outro lado, provado ficou que o Réu era conhecido por alguns amigos como sendo o dono da fracção autónoma, mas tal não significa que não tenha exercido a sua posse de forma pública. Uma coisa é exercer a posse à vista de todos, isto é, sem ocultar o exercício da posse, outra é o reconhecimento por outros como dono da fracção. Por exemplo, o Réu pode utilizar a fracção autónoma à vista de todos, sem que todas estas pessoas saibam a que título ele está a utilizá-la.
Por último, temos o quesito 17º, onde foi perguntado:
   “Durante os 18 anos, o R. B vive na fracção autónoma, às reparações e benfeitorias necessárias?”
O Tribunal a quo considerou que:
   “Provado apenas que desde que vive na fracção referida em A) o Réu procedeu às reparações necessárias.”
No entendimento da Autora, “apesar de o Tribunal a quo não ter dado como provado que o Recorrido fez benfeitorias necessárias, entende a Recorrente que o quesito 17.° devia ter sido dado como não provado, pois o Recorrido tinha de ter junto prova documental que demonstrasse que espécie de reparações fez.”
Trata-se duma impugnação irrelevante na medida em que não está em causa alguma condenação de pagamento a título de benfeitorias, daí que não é necessário qualquer “prova documental que demonstrasse que espécie de reparações fez” para se considerar que o Réu fez reparações na fracção autónoma.
Pelo exposto, não deixará de se negar provimento ao recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto.
2. Da nulidade da sentença por contradição insanável
Para a Autora, a sentença recorrida é nula por existir contradição insanável, já que afirmou, por um lado, que o Réu (Autor na acção de usucapião) B tinha animus de possuidor e, por outro, disse que ele “sabia que tinha de pagar o remanescente do preço e que tinha de realizar a escritura pública de compra e venda” e que tentou contactar a Autora para o efeito mas não a encontrou.
Na óptica da Autora, aquelas duas afirmações em si são incompatíveis, visto que não é possível ter o animus de possuidor uma pessoa que “sabia que tinha de pagar o remanescente do preço e que tinha de realizar a escritura pública de compra e venda” e que tentou contactar o proprietário para o efeito.
Quid iuris?
Adiantamos desde já que não lhe assiste razão.
Uma pessoa pode muito bem saber que não é o proprietário jurídico porque não pagou ainda integralmente o preço da compra e que o contrato definitivo de compra e venda ainda não se encontra realizado, contudo, tais factos nada impede que essa pessoa possa agir como um proprietário de facto, tratando a coisa que lhe foi entregue como sua, tudo dependendo da factualidade alegada e provada.
A procura do proprietário jurídico para formalizar a escritura pública de compra e venda pode entender-se como uma tentativa de transformar a sua posição de proprietário de facto para a de jurídico, o que realça ainda mais o seu animus de possuidor.
No caso em apreço, tendo em conta as respostas aos quesitos 7º, 8º, 14º, 16º e 17º da Base Instrutória, cuja impugnação foi já negada por razões acima expostas, não temos qualquer margem de dúvida em afirmar que não se verifica a alegada contradição insanável.
Improcede, portanto, este argumento de recurso.
3. Do mérito da causa
Vamos agora analisar se estão reunidos todos os requisitos da usucapião.
Para haver posse, é necessário reunir simultaneamente dois elementos: o corpus e o animus, isto é, tem de praticar actos materiais de facto correspondentes ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, na convicção de que está a agir como verdadeiro titular do direito.
Ficaram provados que:
- Após a assinatura do contrato de promessa de compra e venda da fracção autónoma em referência a Autora entregou ao Réu as chaves da fracção autónoma e este passou a dispor da mesma (no sentido de utilizar livremente a mesma).
- O Réu procedeu ao pagamento ao Serviço de Finanças das rendas referentes à aludida fracção autónoma relativas a 1995 a 1997 e 2005 a 2011.
- Em Maio de 1994 o Réu contratou o fornecimento de energia eléctrica para a fracção autónoma em causa.
- O Réu desde que recebeu a fracção considerou ser o dono da mesma.
- O Réu B actua nos termos acima referidos à vista de todos e sem oposição.
- O Réu B e a sua família ainda hoje ali residem.
- Desde que vive na fracção referida o Réu procedeu às reparações necessárias.
- O Réu é reconhecido por alguns amigos como sendo o dono da fracção referida.
Perante este quadro fáctico, não temos qualquer dúvida em afirmar que o ora Recorrido exerce a posse da fracção autónoma em causa, de forma pacífica e pública, uma que vez que a mesma foi adquirida sem violência e exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados. (cfr. artºs 1185º e 1186º do CCM).
Dispõe o artº 1221º do CCM que “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa-fé, e de 20 anos, se for de má-fé, independentemente do carácter titulado ou não da posse.”.
A posse do Réu durou mais de 15 anos.
Trata-se de uma posse de boa-fé ou de má-fé?
Para a Autora, ainda que existisse a posse, a mesma é de má-fé, visto que o Réu bem sabia que era simplesmente um promitente-comprador, daí que ao agir como proprietário, não podia ignorar que estava a lesar o direito do seu verdadeiro proprietário.
Como já referimos anteriormente, uma pessoa pode bem saber que não é o proprietário jurídico porque não pagou ainda integralmente o preço da compra e o respectivo contrato definitivo de compra e venda ainda não se encontra realizado, contudo, tais factos nada impede que essa pessoa possa agir como um proprietário de facto, tratando a coisa que lhe foi entregue como sua.
Tal conduta não implica necessariamente que o possuidor agiu de má-fé, isto é, com conhecimento de que estava a lesar o direito do proprietário jurídico, uma vez que o proprietário jurídico, após a entrega da coisa, se desinteressou completamente dela.
Pelo exposto, é de concluir pela boa-fé da posse do Réu.
Por terem sido preenchidos todos os requisitos legais da usucapião, a decisão que julgou procedente a acção de usucapião não merece qualquer censura ou reparação.
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Tudo visto, resta decidir.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
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Custas do recurso pela Autora.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 16 de Abril de 2015.

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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong



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666/2014