Proc. nº 730/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 12 de Fevereiro de 2015
Descritores:
-Execução de decisão arbitral
-Juros de mora
SUMÁRIO:
I. Se os limites da execução da decisão do tribunal arbitral são iguais aos da execução de uma sentença dos tribunais judiciais, então, ao abrigo do art. 12º do CPC não pode na execução o exequente obter mais do que foi reconhecido e declarado na decisão exequenda.
II. Assim, se os juros de mora não foram arbitrados na decisão arbitral, não pode o exequente obtê-los por via da execução.
Proc. nº 730/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
Consórcio formado por “ B, s.a., C - estudos e projectos, s.a.” e “D s.a.s.”, com domicílio na Avenida da ......, n.º ..., Edifício ......, ....º andar, Sala ..., Macau,
veio por apenso à decisão arbitral registada no respectivo Livro de Registo de Decisões Arbitrais n.º 1, a fls. 1 a 130, instaurar no Tribunal Administrativo execução para pagamento de quantia certa contra a
A Região Administrativa Especial de Macau, da República Popular da China.
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Em dado momento dos autos, e sobre o pedido formulado na execução, foi proferido despacho com dispositividades várias, uma das quais foi a de indeferir o pedido executivo na parte à condenação da executada no pagamento dos juros legais vencidos e vincendos (fls. 363- 369).
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O Consórcio exequente formulou, então, um requerimento que tinha diversos objectivos (esclarecimento, arguição de nulidade, alteração de juros, pedido de emissão de precatório-cheque e recurso jurisdicional (fls. 377-386).
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Seguiu-se resposta da parte contrária, representada pelo digno Magistrado do M.P. posição (fls. 388-392).
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O juiz do processo lavrou então o despacho de fls. 393-396 vº, esclarecendo a anterior decisão, que manteve, admitindo simultaneamente o recurso jurisdicional interposto pela exequente.
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Nas alegações desse recurso, o Consórcio exequente apresentou as seguintes conclusões:
«a) As circunstâncias de a parte final da sentença arbitral em causa conter três pontos condenando cada um a Executada a pagar ao Exequente três diferentes quantias a três diferentes títulos, não decidindo nenhum desses a condenação no pagamento de juros, mas decidindo um deles que a condenação no respectivo montante é “sem juros”, suscita dúvidas sobre o âmbito ou os limites objectivos da decisão.
b) No mesmo sentido depõe a circunstância de os fundamentos da sentença arbitral estarem em parcial dessintonia com os mencionados pontos da “Decisão Final”.
c) As sentenças arbitrais não têm a mesma estrutura silogística das sentenças proferidas pelos tribunais estaduais, dividindo-se do ponto de vista do conteúdo formal em três partes autónomas e distintas, que são o relatório, os fundamentos e a decisão final, esta última decisória ou dispositiva, contendo autonomizadamente a decisão de condenação ou de absolvição.
d) No caso concreto, essa estrutura não é exigida pelas regras processuais de arbitragem da UNCITRAL, que por acordo das partes regem a arbitragem, especialmente o art. 36 nº 2, nem pela lei de Macau, aplicável subsidiariamente, especialmente o art 30º/4 e 5, do DL 29/96/M.
e) Por isso a contradição entre os fundamentos e a decisão não constitui causa de nulidade das sentenças dos tribunais arbitrais, como resulta dos arts. 37º e 38º do DL 29/96/M, ao contrário do que sucede com as sentenças dos tribunais estaduais, nos termos do art. 571º/1/c) do CPC)
f) Assim, a sentença dada à execução não tem os limites expostos nos pontos 1. a 3. da respectiva “Decisão Final”, mas sim os limites que resultam da totalidade do seu texto, devendo a mesma ser interpretada por referência quer à sua parte final quer aos seus fundamentos.
g) Quanto ao pagamento dos (outros) “Trabalhos Adicionais”, a que se refere o ponto 3. da “Decisão Final”, na acção arbitral o Exequente não pediu a condenação da Executada no pagamento de juros e por isso os nº 314 e 315º da sentença não lhes fazem referência.
h) Mas quanto ao pagamento dos “Trabalhos no Túnel”, a que se refere o ponto 1. da “Decisão Final”, e ao pagamento das “sanções aplicadas”, a que se refere o ponto 2., no articulado onde deduz as suas pretensões o Exequente pediu a condenação da Executada no pagamento de juros, respectivamente à taxa legal especial de 8% e à taxa legal supletiva de 9,75% .
i) Nos pontos 164 e 232, a sentença arbitral começa por definir em abstracto que os juros só são devidos a partir do momento em que o Demandado se constitui em mora, explicando que esse o momento é do vencimento da obrigação e que o não pagamento nesta última data constitui o devedor na obrigação de pagar juros, no ponto 165, já por concreta referência ao caso, decide que as propostas que o Demandante havia apresentado ao Demandado eram apenas propostas que este não aceitou e, por isso, foram insuficientes para tornar efectiva a obrigação de pagamento de juros e no ponto 233 decide muito explicitamente que a obrigação de o Demandado reembolsar ao Demandante o montante cobrado a título de sanção vence com a notificação da sentença, pelo que conjugado este ponto com o anterior ponto 232 não pode haver qualquer dúvida de que a sentença decidiu que vencida a obrigação com a notificação da sentença passam desde então a ser devidos juros, pois nenhum outro sentido pode ser assacado ao segmento “o montante cobrado a título de sanção vencerá com a notificação da sentença, após o que se torna res judicata”, sendo inócuos para este efeito o teor dos nºs 166 e 234, pois limitam-se a mencionar os montantes da condenação já definido, que era o montante do capital.
j) Ponderado que a parte final da sentença arbitral menciona que o montante indicado no respectivo ponto 2. é devido “sem juros”, nada referindo quanto a esta matéria nos pontos 1. e 3., que dos três pedidos a que se reportam os pontos 1., 2., e 3. da “Decisão Final”, a Exequente pediu a condenação no pagamento de juros relativamente aos constantes dos pontos 1. e 2, mas não relativamente ao ponto 3., pelo que este ponto é aquele em que mais necessária se tornaria a afirmação “sem juros” e que ao tratar dos pedidos correspondentes aos pontos 1. e 2. da “Decisão Final”, sentença afirma claramente na fundamentação que são devidos juros desde o vencimento das obrigações e informa expressamente ao tratar do ponto 2. que esse vencimento opera com a notificação da sentença, forçoso é reconhecer que existiu um lapso material na sentença.
k) Esta afirmou “sem juros” no ponto 2, quando o queria ter afirmado no ponto 3., e era necessário que o fizesse porque, ao tratar da pretensão correspondente a este ponto 3. nunca na fundamentação é feita qualquer referência a juros, e só por isso os Senhores Árbitros sentiram necessidade de o esclarecer na “Decisão Final” e quanto aos pontos 1. e 2. a “Decisão Final” não necessitava de fazer qualquer referência a juros, pois já na fundamentação havia sido decidido que estes seriam devidos desde a notificação da sentença.
l) Para que uma sentença possa servir de base à acção executiva, não é necessário que condene de forma expressa no cumprimento de uma obrigação, bastando que esta obrigação fique declarada ou constituída por essa sentença com imposição implícita do seu cumprimento.
m) Assim, de acordo com a sentença arbitral dada à execução são devidos juros de mora desde a notificação da sentença arbitral quanto ao montante de Mop 11,790,180.00 relativo aos “Trabalhos no Túnel” e ao montante de Mop 1,585,822.41 relativo às “sanções aplicadas”, contados à taxa legal especial de 8% quanto ao primeiro e à taxa legal supletiva de 9,75% quanto ao segundo.
NESTES TERMOS, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, SER O DESPACHO RECORRIDO REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE DECLARE QUE PELO TÍTULO DADO À EXECUÇÃO SÃO DEVIDOS PELA EXECUTADA JUROS DE MORA CONTADOS DESDE A NOTIFICAÇÃO À EXECUTADA DA SENTENÇA ARBITRAL, À TAXA DE 8% QUANTO AO MONTANTE DE Mop 11,790,180.00 RELATIVO AOS “TRABALHOS NO TÚNEL” E À TAXA DE 9,75% QUANTO AO MONTANTE DE Mop 1,585,822.41 RELATIVO ÀS “SANÇÕES APLICADAS”, O QUE CONSTITUI UMA DECISÃO DE JUSTIÇA.
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A RAEM respondeu ao recurso, cujas alegações sintetizou da seguinte maneira:
«1. A sentença arbitral, à semelhança das sentenças proferidas pelos tribunais judiciais, é constituída por relatório, parte da fundamentação e parte decisória (v. Art.º 30.º n.º 4 als a) b) c) e n.º 5 e Art.º 31.º n.º 1, parte final, do DL n.º 29/96/M, de 11 de Junho);
2. A parte decisória da sentença arbitral, “Decisão Final”, não condenou no pagamento de juros;
3. Aliás, na parte da fundamentação, quando o tribunal arbitral se refere aos pedidos de juros, é expressamente para não reconhecer ou rejeitar os pedidos a eles respeitantes (nºs 164, 165, 234);
4. O alcance de uma sentença condenatória, enquanto título executivo, identifica-se com os direitos nela expressamente declarados, não podendo o seu conteúdo ser expandido por raciocínio indutivo ou interpretação a contrario sensu;
5. O conteúdo decisório da sentença arbitral é perfeitamente claro designadamente no sentido de que não comporta qualquer imposição de pagamento de juros;
6. E ainda que o seu sentido não fosse claro, o que se não concede, ultrapassado que foi o prazo para pedir esclarecimentos ou corrigir eventuais lapsos, esgotou-se o poder dos árbitros.
Face ao exposto:
Deve ao recurso ser negado provimento, mantendo-se o douto despacho – recorrido».
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Cumpre decidir.
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II – Os factos
O despacho recorrido, na parte que ora está em impugnação, tem o seguinte teor:
“ …Em relação à parte da quantia exequenda baseada ao cálculo à taxa de 9,75% do montante condenado, reclamada pela exequente a título de juros legais vencidos e vincendos, a partir da data de transitada em julgado a decisão arbitral em causa até ao seu efectivo e integral pagamento, não se verifica no referido título executivo o assim decidido pelo tribunal arbitral e deve indeferir, nos termos do Art.º 12.º, n.º 1, do C.P.C., esta parte do pedido de execução (cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância do processo n.º 173/2006, de 11 de Maio de 2006).
Pelo que, e nos termos dos Art.º 175.º, n.º 4, e 178.º, n.º 1, do C.P.A.C, e art.º 589.º, n.º 4, 678.º, n.º 3, do CP.C, ex vi do Art.º 1.º do C.P.A.C., ordena-se a executada para depositar à ordem deste Tribunal na quantia no montante de MOP13.376.002,41 (treze milhões, trezentos e setenta e seis mil e duas patacas e quarenta e um avos), valor esse correspondente à parte da decisão arbitral impugnada nos autos da acção de anulação da decisão arbitral do processo n.º 228/14-ATA, no prazo de 10 dias, e proceder, no mesmo prazo, ao depósito da quantia no montante de MOP4.945.355,00 (quatro milhões, novecentos e quarenta e cinco mil e trezentos e cinquenta e cinco patacas), valor esse correspondente à parte da decisão arbitral não impugnada, a fim de ser paga à exequente.
Notifique e D.N” (fls. 368 a 369).
E o despacho de esclarecimento dessa decisão tem o seguinte teor:
“ Quanto à questão da legalidade e legitimidade dos juros respeitantes aos pontos 1 e 2 da parte decisória final da sentença arbitral exequenda, consta da sentença arbitral o seguinte1:
“ … … …
162. O Tribunal exerceria o seu poder discricionário ao abrigo da cláusula ex aequa et bono do Acordo de Arbitragem, com vista a atribuir ao Demandante o montante de MOP 11.790.180,00 (valor inicialmente proposto ao Demandado) para os Trabalhos do Túnel já executadas e a executar até ao mês 46 do Contrato.
163. Na que se refere ao pedido de pagamento de juros acrescidos relativos ao montante acima Indicado, a uma taxa de 8%, a contar de 1 de Junho de 2009 (data que o Demandante afirma ser a data de arranque da execução dos Trabalhos do Túnel), ao abrigo do Artigo 52.º (1) do DL 63/85/M, que estabelece que o concorrente vencedor do concurso tem direito a um juro de 8% ao ano, em caso de atraso nos pagamentos pela entidade adjudicante, o Tribunal determina o seguinte:
164. A obrigação do pagamento de juros resulta de atraso no pagamento (mora) de uma obrigação pecuniária. O momento em que o devedor incorre em mora, ou seja, em que se considera estar em atraso, é o dia em que a obrigação é devida. a não-pagamento até à data de vencimento resulta na obrigação de pagamento de juros, neste caso à taxa de 8% ao ano.
165. O Demandante apresentou diversas propostas para pagamentos adicionais ao Demandado, mas os montantes referidos eram apenas propostas que o Demandado não aceitou, pelo que, por conseguinte, a obrigação de pagamento do Demandado não se tornou efectiva.
166. Assim sendo, o Tribunal determina que ao Demandante seja atribuído o montante global de MOP 11.790.180,00 para os Trabalhos do Túnel.
… … …
231. O Demandante reclama também o pagamento de juros acumulados à taxa de 9,75% desde 1 de Abril de 2010, a data na qual o Demandado não efectuou o pagamento referente a Dezembro de 2009.
232. A obrigação do pagamento de juros resulta do pagamento em atraso (mora) de uma obrigação pecuniária (Art.º 795.º/1 C.C.). O momento em que o devedor incorre em “mora” (ou seja, é considerado como estando em atraso) é o dia em que vence a obrigação. O não pagamento na data de vencimento leva à obrigação do pagamento de juros, e, caso não seja aplicável nenhuma outra taxa, o pagamento em mora deverá ser efectuado à taxa legal de 9,75% ao ano (Art.º 552.º/1 C.C. e Despacho do Chefe do Executivo).
233. Neste caso, a obrigação de o Demandado reembolsar ao Demandante o montante cobrado a título de sanção vencerá com a notificação da sentença, após o que se torna res judicata.
234. Face ao acima exposto, o Tribunal rejeita o pedido do Demandante relativo ao pagamento de juros, conforme o ponto (x) da soc do Demandante.
… … …”
Daí se pode resultar inequivocamente o pedido da ora exequente da obrigação da executada no pagamento de juros sobre o valor atribuído, para os Trabalhos do Túnel já executados e a executar até ao mês 46 do Contrato, foi indeferido.
Foi também expressamente rejeitado o pedido relativo ao pagamento de juros, conforme o ponto (x) da SOC da exequente. Deste modo, nem do texto nem da parte decisória final da sentença arbitral exequenda se pode retirar a conclusão da condenação efectiva dos juros nos termos pretendidos pela exequente, e outra solução inexiste senão indeferir este pedido e o presente requerimento da alteração do pedido de juros.”.
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III – O Direito
1 - O que está em causa no presente recurso é saber se, no processo de execução da decisão do tribunal arbitral, haveria lugar a juros vencidos e vincendos.
O tribunal “a quo” indeferiu essa parte do pedido executivo, por entender que a decisão exequenda não os tinha arbitrado. O exequente entende o contrário.
Apreciemos.
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2 - Como se sabe, a “acção executiva tem como base um título, pelo qual se determinam o seu fim e os seus limites” (art. 12º, nº1, do CPC).
E sendo a questão do domínio do contencioso administrativo, dispõe o art. 174º, nº1, do CPAC que “1 – Excepto quando ocorra falta de verba ou cabimento orçamental ou causa legítima de inexecução, na ausência de normas específicas previstas no presente Código, as decisões dos tribunais em processos do contencioso, quando transitadas em julgado, devem ser espontaneamente cumpridas pelos órgãos administrativos no prazo máximo de 30 dias”.
Por outro lado, “As decisões proferidas por tribunal arbitral são exequíveis nos mesmos termos em que o são as decisões referidas no número anterior” (art. 679º, nº2, do CPC).
Sendo assim, se os limites da execução da decisão do tribunal arbitral são iguais aos da execução de uma sentença dos tribunais judiciais, o citado art. 12º do CPC constitui uma barreira intransponível. Isto é, não pode na execução o exequente obter mais do que foi reconhecido e declarado na decisão exequenda.
Isto mesmo, aliás, o tem reconhecido este mesmo TSI através, por exemplo, dos Acs. de 23/05/2002, Proc. nº 13/2002 e de 11/05/2006, Proc. nº 173/2006, para os quais - e, igualmente, para a jurisprudência e doutrina neles citadas - ora se remete por comodidade.
No direito comparado, a solução pode não ser esta que o Código de Macau estabelece. Assim sucede, por exemplo, em Portugal através do DL nº 38/2003 de 08.03, que ao nº2 do art. 46º do CPC introduziu a seguinte redacção:
«Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante».
Com esta redacção, ficou claro que os juros de mora ficam automaticamente abrangidos pelo título, qualquer que ele seja. Isto dito, significa que, mesmo que eles não sejam expressamente declarados na sentença, nem por isso deverão deixar de ser considerados na execução.
Porém, o CPCM não introduziu uma alteração equivalente à daquele preceito português, tornando-se significativo, desta forma, que quis manter o regime anterior.
Desta maneira, não se sufraga a tese da recorrente.
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3 - O recorrente, porém, traz ao presente recurso jurisdicional um discurso novo assente em vários argumentos, na tentativa esforçada de demonstrar que a 1ª instância andou mal na decisão recorrida.
Primeiro argumento: Se a decisão arbitral tomou decisão expressa quanto a um dos pedidos, dizendo não serem devidos os juros, deverá admitir-se que os aceita relativamente aos pedidos sobre os quais nada disse.
Segundo argumento: Se se entender que há dessintonia entre os fundamentos da decisão arbitral e a sua parte dispositiva, o problema não se resolve segundo as regras da estrutura de uma sentença judicial. Por isso, será de considerar que os limites objectivos da decisão arbitral não se esgotam na sua parte dispositiva, devendo abranger os seus fundamentos.
Terceiro argumento: haverá que concatenar a decisão arbitral com a pretensão individualizada por referência a cada um dos três trabalhos analisados nos pontos 1., 2. e 3. da “Decisão Final” da sentença exequenda.
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3.1 - O primeiro argumento não é sufragável.
Aceitá-lo, seria o mesmo que reconhecer que a deliberação arbitral se desviaria, na sua estrutura, de um modelo decisório autêntico. E isso não tem cabimento.
Também ela, com efeito, não pode deixar de obedecer a um rito formal que não escapa ao dever de enunciação do objecto do litígio, de uma fundamentação e de uma parte resolutória. Isso emerge do disposto no art. 30º do DL nº 29/96/M, de 11/06.
Depois, a aceitação daquela tese que o recorrente nos propõe redundaria na aceitação de resoluções tácitas ou, vamos lá, implícitas. E isso também é insustentável.
A este respeito, o recorrente faz apelo a um aresto deste TSI (Proc. nº 220/2013), como alegado suporte para a defesa dessa posição. Mas, uma observação atenta desse acórdão logo nos revela que ele não serve para subsidiar o caso em apreço. O que nele se aduz é que a condenação numa sentença, para que possa servir de base a uma execução, não carece de uma explicitação de pormenor na parte dispositiva, bastando que a condenação resulte verdadeiramente “constituída” pela sentença exequenda através dos seus fundamentos.
Ora, tal não é o que constatamos da sentença arbitral em análise. O que a recorrente quereria era que o tribunal da execução aceitasse esta numa dimensão maior do que a que resulta do título. Mais: era que o tribunal da execução fizesse um exercício de dedução ou, se se quiser, de inferência resolutória e dispositiva. Isso, contudo, seria extremamente perigoso e arriscado na medida em que levaria, em certos casos, a um limite que os autores da sentença nunca terão querido atingir, e por outro lado, pelo ataque que representaria a princípios fundamentais nesta matéria, como são os da certeza e segurança jurídicas.
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3.2 - O segundo argumento também carece de razoabilidade.
O problema da dessintonia, quando detectado nos tribunais, gera nulidade da decisão segundo os cânones dos ritos processuais das sentenças judiciais (art. 571º, nº1, al. c), do CPC). A nulidade funciona aí como uma solução de equidade, digamos assim. Isto é, a nulidade apaga o efeito da sentença e obriga a uma nova decisão que elimine a causa invalidante. Portanto, a nulidade não deixa ninguém indiferente, mas também não deixa nenhuma das partes numa posição de vantagem em relação à outra: atinge ambas por igual.
Por que razão, a contradição aqui haveria de ter um tratamento mais favorável aos interesses de uma das partes?
Que bom e fundado motivo haveríamos nós de perscrutar que nos levasse a relevar uma “falha” detectada no momento decisório e dispositivo que contradissesse o momento fundamentante da decisão?
Se essa falha existisse, onde iríamos nós descobrir sensatez - já para não apelar a critérios jurídicos - para ultrapassar a dúvida perdoando o momento fundamentante em desfavor do momento decisório? E porque não o contrário? Não vê o exequente que uma opção dessas não pode ficar no puro arbítrio do juiz da execução?
Em última análise, o tribunal de execução que pautasse a sua actuação pela preferência pelos fundamentos, mesmo que eles não tivessem expressão na parte dispositiva, estaria a atingir de forma flagrante o princípio da certeza e, portanto, um princípio de ordem pública.
Por conseguinte, esse argumento não convence, nem pode proceder, por não ter qualquer apoio legal.
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3.3 - No terceiro argumento, avança o recorrente para a consagração da sua tese iniciada no ponto anterior.
O seu raciocínio, reportado exclusivamente aos pontos 1., 2. e 3. da Decisão Final da arbitragem (cfr. fls. 182), é o que segue:
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3.3.1 - Sobre o ponto 1, alusivo aos “Trabalhos do Túnel”, acha o recorrente que são devidos juros. E isto por os ter pedido na acção arbitral e por a decisão arbitral lhes ter feito referência nos “fundamentos”.
Vejamos.
O que afirmou a decisão arbitral (fls. 119 dos autos)?
No parágrafo 164 consignou o seguinte:
«164. A obrigação do pagamento de juros resulta de atraso no pagamento (mora) de uma obrigação pecuniária. O momento em que o devedor incorre em mora, ou seja, em que se considera estar em atraso, é o dia em que a obrigação é devida. O não pagamento até à data de vencimento resulta na obrigação de pagamento de juros, neste caso à taxa de 8% ao ano».
E no parágrafo subsequente asseverou:
«165. O Demandante apresentou diversas propostas para pagamentos adicionais ao demandado, mas os montantes referidos eram apenas propostas que o demandado não aceitou, pelo que, por conseguinte, a obrigação de pagamento do demandado não se tornou efectiva».
E por fim, no parágrafo 166 concluiu:
«166. Assim sendo, o Tribunal determina que ao Demandante seja atribuído o montante global de MOP 11.790.180,00 para os Trabalhos do Túnel».
Esta foi a fundamentação.
Veja-se agora a parte dispositiva (fls. 182):
«1. O Demandado é condenado a pagar ao Demandante o montante de MOP 11.790.180,00 relativamente aos Trabalhos do Túnel, já realizadas e a realizar até ao mês 46 do Contrato».
Perante este quadro, nós não vemos que haja qualquer dessintonia entre “fundamentação” e “resolução”. Esta está em plena conformidade com aquela. A fundamentação não afirmou que havia lugar a juros. A decisão arbitral limitou-se a expor as regras próprias da mora. Mas, não disse que ela (mora) existia no caso.
E a razão para não concluir pela existência da mora não está no parágrafo 164, mas no seguinte 165. O tribunal arbitral achou em primeiro lugar que ela só existia a partir do dia em que o pagamento deveria ocorrer (164)! Contudo, não se verificava naquela circunstância, pelo simples facto de a demandante se ter limitado a apresentar “propostas”, que a demandada nunca aceitou. Razão pela qual, acentua a decisão arbitral “…por conseguinte, a obrigação de pagamento do demandado não se tornou efectiva”. Isto é, achou a decisão arbitral que não se alcançou uma data, não se fixou um momento, para a efectivação da obrigação (quer ela dizer, para o cumprimento da obrigação) por parte da demandada/executada/ora recorrida.
Significa isto que não há dessintonia entre “fundamentos” e “decisão”. A Decisão arbitral não quis realmente conferir juros e apontou a razão para tal.
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3.3.2 - Vamos agora ao ponto 2. da decisão arbitral.
Veja-se o que afirmou a decisão arbitral:
«232. A obrigação do pagamento de juros resulta do pagamento em atraso (mora) de uma obrigação pecuniária (art. 795º/1, C.C.). O momento em que o devedor incorre em “mora” (ou seja, é considerado como estando em atraso) é o dia em que vence a obrigação. O não pagamento na data de vencimento leva à obrigação do pagamento de juros e, caso não seja aplicável nenhuma outra taxa, o pagamento em mora deverá ser efectuado à taxa legal de 9,75% ao ano (art. 552º/1/C.C. e Despacho do Chefe do Executivo).»
No parágrafo imediato prosseguiu:
«233. Neste caso, a obrigação de o Demandado reembolsar ao Demandante o montante cobrado a título de sanção vencerá com a notificação da sentença, após o que se torna res judicata.»
E concluiu no parágrafo seguinte:
«234. Face ao acima exposto, o Tribunal rejeita o pedido do Demandante relativo ao pagamento dos juros, conforme o ponto (x) da SOC do Demandante».
Mais uma vez não é possível avistar neste grupo de fundamentos – tal como sucedeu no grupo anterior - mais do que a enunciação de um quadro jurídico abstracto. O tribunal não utilizou aquela fundamentação para justificar a decisão; fê-lo para descrever a premissa maior em que podia assentar uma decisão condenatória, não estando, porém, a afirmar que esta decisão concreta radicava naqueles normativos. E tanto é assim que no final, no parágrafo 234, acabou por ser afirmativo, assertivo e peremptório, quanto a não haver lugar a juros. Isto é, bem ou mal, acabou por justificar a razão pela qual a situação de facto não se inscrevia na previsão da premissa maior normativa e, portanto, o motivo pelo qual não condenava em juros.
O recorrente tinha o direito de permanecer com dúvidas acerca do assunto (é matéria de índole subjectiva). Mas, na ocasião não fez uso do disposto no art. 31º do DL nº 29/96/M, pedindo a rectificação ou a aclaração da decisão.
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3.3.1 – Rematando, sobre o ponto 3, diz ele: O demandante, na acção arbitral, não pediu a condenação da ora executada no pagamento dos juros referentes ao preço dos “Trabalhos Adicionais” e, assim, aceita que a decisão arbitral também lhe não tenha feito referência no ponto 3.
Sendo assim, não há litígio, pois, quanto a este tema no presente recurso.
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Dito isto, não vemos na decisão arbitral, nem sequer na sua fundamentação, nenhum traço de onde possa decorrer uma vontade condenatória em juros.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 5 UCs.
TSI, 12 de Fevereiro de 2015
José Cândido de Pinho (Relator)
Tong Hio Fong (Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong (Segundo Juiz-Adjunto)
1 Tradução fornecida pela exequente com pública-forma da versão original junta e constante das fls. 141 a 274 dos autos.
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730/2014 1