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Processo nº 216/2015 Data: 23.04.2015
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “desobediência”.
Entrega de carta de condução.
Erro notório na apreciação da prova.



SUMÁRIO

1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.

O relator,

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Processo nº 216/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por sentença prolatada pelo Mmo Juiz do T.J.B., decidiu-se condenar A, com os sinais dos autos, como autora da prática de 1 crime de “desobediência”, p. e p. pelo art. 312°, n.° 1, al. a) do C.P.M. e art. 121°, n.° 7 da Lei n.° 3/2007, na pena de 75 dias de multa, a taxa de MOP$100,00 por dia, perfazendo uma multa de MOP$7,500.00 ou 50 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 49 a 52, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou para, em conclusões, imputar à sentença recorrida os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 59 a 68).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 70 a 73).

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Neste T.S.I. juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação do recurso (fls.60 a 68 dos autos), a recorrente assacou à douta sentença sob sindicância os vícios consignados nas alíneas a) e c) do n.°1 do art.400° do CPP, alegando:
- Que a Acta de Audiência de Julgamento lavrada no Processo n.°CR2-13-0211-PCT não consta da assinatura da recorrente, pelo que não é incontroverso a recorrente ter conhecimento do seu conteúdo;
- Que é duvidosa e dubitável se tiver sido devidamente traduzida ou não à recorrente a advertência de incorrer no crime de desobediência no caso de não entregar a carta de condução à autoridade policial dentro do prazo de 10 dias, contado a partir do trânsito em julgado da sentença;
- Que a recorrente não compreendia o conteúdo da notificação de fls.48 dos autos por não saber português;
- Que a qualificação pelo MM° Juiz a quo da culpa da recorrente no dolo infringe a regra de experiência, em virtude de inexistir prova e de ser incompatível com o atraso de meros 39 minutos.
Antes de mais, sufragamos inteiramente as criteriosas explanações do Exmo. Colega na douta Resposta (fls.70 a 73 dos autos), na qual se encontrou à cabal impugnação.
Ora, a aludida Acta de Audiência de Julgamento consta da seguinte menção sublinhada mediante negra: Tal pena conta-se a partir da data de trânsito em julgado, devendo a transgressora entregar à P.S.P., no prazo de 10 dias após trânsito, a carta de condução e os respectivos documentos, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência (……).
Note-se que a mesma Acta refere expressamente que a infractora foi informada do prazo de 10 dias para interpor recurso perante o T.S.I. e que «a contar do dia seguinte ao da leitura da sentença e de que, ser recorrer, é obrigatório a assistência do defensor.»
Deste modo, e visto que tal Acta preenche, sem nenhuma margem para dúvida, todos os requisitos consagrados no art.343° do CPP, temos certeza de que a falta da assinatura da recorrente na dita Acta não afecta nem a validade nem a eficácia da mesma.
Na nossa óptica, é irrefutável, com efeito, que não podem deixar de ser manifestamente infundadas e insubsistentes a dúvida e a desconfiança da recorrente sobre a fidelidade e exactidão da tradução respeitante à referida advertência e à notificação de fls.48 dos autos.
Recorde-se que interrogada no M.°P.°, a recorrente declarou «嫌犯聲稱其有出席CR2-13-0211-PCT庭審程序,並由法院職員親自通知及解釋有關法官的判決內容,並清楚知道有關停牌手續及期限,但基於其本人懶惰心態,有種想法是今天沒去還有明天,就這樣拖到過了期才去處理停牌手續». O que revela que a recorrente reconheceu que tinha tomado pleno conhecimento da mencionada advertência.
Ponderada à luz da regra de experiência comum, a declaração supra transcrita dá, ainda, a entender que ela aceitava, devido à sua inércia, a consequência do eventual decurso do dito prazo de 10 dias para entregar a carta de condução à P. S.P..
Em homenagem da doutrina mais autorizativa no que respeite à modalidade da culpa, entendemos ser mais razoável e lógico que a sua conduta inerte da recorrente - não entregar a carta de condução dentro daquele prazo – era dominada com dolo eventual.
Nestes termos, e em consonância com as ricas jurisprudências dos Venerandos TSI e TUI relativas aos vícios previstos nas alíneas a) e c) do n.°1 do art.400° do CPP, cremos tranquilamente que a douta sentença recorrida é impecável e inatacável, não enfermando de nenhum dos vícios invocados pela recorrente.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 82 a 83).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 49 a 50, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. O presente recurso tem como objecto a sentença pelo Mmo Juiz do T.J.B. proferida que condenou a arguida dos presentes autos como autora da prática de 1 crime de “desobediência”, p. e p. pelo art. 312°, n.° 1, al. a) do C.P.M. e art. 121°, n.° 7 da Lei n.° 3/2007, na pena de 75 dias de multa, a taxa de MOP$100,00 por dia, perfazendo uma multa de MOP$7,500.00 ou 50 dias de prisão subsidiária.

Entende a arguida ora recorrente que a aludida sentença condenatória padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”.

Vejamos se assim é.

Pois bem, como é sabido, e repetidamente tem este T.S.I. afirmado, o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 23.01.2014, Proc. 756/2013, e mais recentemente, de 12.02.2015, Proc n.° 103/2015).

Por sua vez, temos igualmente considerado que “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015 do ora relator).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015).

Aqui chegados, sem esforço se conclui que inexiste qualquer “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, pois que o Tribunal a quo emitiu pronúncia sobre “toda a matéria objecto do processo”, elencando a que resultou provada, identificando a que resultou não provada e fundamentando, adequadamente, esta sua decisão.

Dest’arte, e em relação a este vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, evidente é a improcedência do presente recurso.

Quanto ao “erro”, vejamos.

Aqui, a questão põe-se em relação ao “dolo” da arguida ora recorrente, considerando a mesma que agiu sem dolo, e que o Tribunal não devia (podia) dar como verificado (provado) o dito elemento subjectivo.

Importa, precisar a questão. O crime de “desobediência” em questão ocorre em virtude da não entrega atempada da carta de condução da ora recorrente em consequência de sua anterior condenação em pena acessória de inibição de condução.

E, no presente recurso, sobre a questão apresenta (essencialmente) a recorrente 2 argumentos.

O primeiro, alegando não ter compreendido a anterior decisão que lhe decretou a inibição de condução e que lhe determinou a entrega da sua carta de condução.

Ora, como – bem – observa o Ilustre Procurador Adjunto, constando da acta em questão que a ora recorrente foi sobre tal matéria “informada”, tendo também sido “notificada da sentença” proferida, e (constando expressamente) que “da mesma ficou ciente”, mais não vale a pena dizer.

O segundo argumento, prende-se com o facto de o atraso na entrega da carta ter sido de apenas “39 minutos”.

Que dizer?

Compreende-se o inconformismo da ora recorrente.

Porém, não nos parece que possa este T.S.I. alterar a convicção e decisão do T.J.B..

É verdade que o “reduzido atraso” pode inculcar um “descuido”, e constituir assim uma (mera) negligência.

Todavia, e da mesma forma, assim pode não ser, nada garantindo ou impondo a convicção no sentido de que se tenha (efectivamente) tratado de uma “mera desatenção”, e não um acto deliberado e voluntário.

E, como temos vindo a entender e atrás se deixou consignado, não constituindo “erro” uma mera “probabilidade” ou “possibilidade”, não pode este T.S.I. declarar a existência do alegado “erro”, (com base num juízo de mera probabilidade), outra solução não havendo que não seja a improcedência do recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expendidos, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará a recorrente a taxa de justiça de 5 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$1.800,00.

Macau, aos 23 de Abril de 2015
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa


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