Processo nº 846/2014 Data: 23.04.2015
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “falsificação de documentos”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Contradição insanável da fundamentação.
In dubio pro reo.
SUMÁRIO
1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.
2. Só ocorre o vício de “contradição insanável” quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”.
3. Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
Porém, importa atentar que o referido princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva.
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
O relator,
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Processo nº 846/2014
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença prolatada pelo Mmo Juiz do T.J.B. decidiu-se condenar A, com os restantes sinais dos autos, como autor da prática de 1 crime de “falsificação de documento” p. e p. pelo art. 244°, n.° 1, al. b) do C.P.M., na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de MOP$150.000,00, perfazendo a multa global de MOP$18.000,00, ou 80 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 261 a 270, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu para, em sede das conclusões produzidas a final da sua motivação de recurso imputar à sentença recorrida os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “violação do princípio in dubio pro reo”; (cfr., fls. 279 a 287).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 289 a 291).
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Admitido o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Acompanham-se, na íntegra, as doutas considerações expendidas pela Exma Colega junto do tribunal "a quo ", as quais demonstram à saciedade a falta de razão do recorrente, em qualquer das vertentes adiantadas.
Na verdade, tendo-se comprovado suficientemente nos autos que o recorrente, em 14/5/10, escreveu pelo seu punho uma nota em português, na fotocópia de declaração para efeitos de aposentação e sobrevivência, na qual, apondo a data de 30/9/12, declara que cancela a anterior declaração, datada de 28/9/12 em que mencionara não desejar proceder a descontos para aqueles efeitos, pedindo, de seguida, certidão, toma-se evidente o seu intuito de criar facto falso relativo ao cancelamento da primitiva expressão de vontade dois dias após a mesma, com o fim de poder pedir ao Fundo de Pensões que os descontos não efectuados pudessem ser compensados com débitos, obtendo, consequentemente, mais tempo de serviço a ser contado para efeitos de aposentação, tomando-se, pois, evidente que a declaração assim produzida é juridicamente relevante, porque apta a produzir efeitos modificativos na relação jurídica estabelecida entre o visado e o Fundo de Pensões, mostrando-se, pois, integralmente preenchido o tipo de ilícito por que o recorrente foi punido.
Por outra banda, não se topa que o facto (diga-se que essencial) relativo à conduta delituosa do arguido e vertido no ponto 21 dos factos provados conflitue ou contradiga qualquer outra matéria, quer provada, quer não provada, apresentando-se com normalidade que, com a pressa e nervosismos naturais de quem sabe estar a prevaricar, se mostre a caligrafia sujeita a exame não totalmente idêntica à produzida em condições normais de calma e sossego e que, não obstante a "vigilância" da testemunha B, a mesma pudesse perfeitamente não ter visto o que, a propósito da conduta do arguido, viu a testemunha C (ponto 22).
De modo que se vê bem que, ao invocar pretensa contradição insanável da fundamentação, pretende verdadeiramente o recorrente questionar a apreciação da prova, quando não se vislumbra que do teor da decisão sob escrutínio, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte patente ou ostensivo que o julgador errou ao apreciar como apreciou, não se divisando que tenham sido dados como provados factos incompatíveis entre si, ou que se tenham retirado desses factos conclusões logicamente inaceitáveis.
Donde, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, sermos a entender não merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 378 a 379).
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 266 a 268-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Resulta do que se deixou relatado que tem o presente recurso como objecto a sentença do Mmo Juiz do T.J.B. que condenou o arguido dos autos como autor da prática de 1 crime de “falsificação de documento” p. e p. pelo art. 244°, n.° 1, al. b) do C.P.M., na pena de 120 dias de multa à taxa diária de MOP$150.000,00, perfazendo a multa global de MOP$18.000,00 ou 80 dias de prisão subsidiária, considerando o arguido que a decisão recorrida padece dos vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “violação do princíio in dubio pro reo”.
Da reflexão que sobre tais suscitadas questões pudemos efectuar, cremos que não se pode reconhecer razão ao arguido ora recorrente, sendo antes de subscrever as considerações sobre o recurso tecidas no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, que dão clara e cabal resposta às pretensões do recorrente, e que aqui, por uma questão de economia processual se dão por reproduzidas.
Seja como for, não se deixa de consignar o seguinte.
Vejamos.
Repetidamente tem este T.S.I. considerado que:
“O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 23.01.2014, Proc. 756/2013, e mais recentemente, de 12.02.2015, Proc n.° 103/2015).
Por sua vez, que só ocorre o vício de “contradição insanável” quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. no Acórdão deste T.S.I. de 24.10.2013, Proc. n° 645/2013, e de 20.03.2014, Proc. n.° 67/2014).
E, quanto ao princípio “in dubio pro reo”, que “o mesmo identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”: perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. o Ac. de 06.04.2000, Proc. n.° 44/2000, e mais recentemente, de 12.02.2015, Proc. n.° 103/2015).
Como igualmente entende a doutrina, segundo o princípio “in dubio pro reo” «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo - quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615) .
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do STJ de 29-4-2003, proc. n.º 3566/03, in “www.dgsi.pt”).
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias; (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 9-5-2005, proc. n.º 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
Dito isto, à vista está a solução que atrás se deixou adiantada.
–– Com efeito, inexiste (qualquer) “insuficiência”, pois que o Tribunal a quo emitiu pronúncia sobre “toda a matéria objecto do processo”, elencando a que resultou provada, identificando a que resultou não provada, e fundamentando esta sua decisão em termos adequados, nenhuma censura merecendo no ponto em questão.
–– Quanto à alegada “contradição”, idêntica é a solução.
De facto, (e como de forma clara se demonstra no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto), com a invocação do aludido vício pretende é o recorrente controverter a matéria de facto dada como provada, tentando impor outra – a sua – versão dos factos, afrontando, sem motivos válidos ou justificados, a convicção do Tribunal a quo, o que, como é óbvio, não pode merecer a nossa concordância.
Há que ter em conta que na sua decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo não violou nenhuma norma sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, mais não se mostrando de consignar sobre a questão para se confirmar, in totum, a decisão da matéria de facto.
–– Por fim, é-nos também evidente que não se incorreu em violação do princípio “in dubio pro reo”.
Na verdade, como se deixou exposto e cremos ser dado adquirido, tal violação tão só ocorre quando o Tribunal, não obstante estar com dúvidas (insanáveis) quanto à autoria (participação) ou culpabilidade do arguido, decidir, (mesmo assim), “contra” o mesmo.
Ora, no caso, e percorrendo toda a decisão recorrida, não se vislumbra que em momento algum – onde, quando e como – teve o Tribunal as supra referidas dúvidas, decidindo, mesmo assim, em prejuízo do arguido.
Perante isto, constituindo o presente recurso uma mera tentativa – embora legítima – de inverter ou alterar o decidido sem que mérito tenham os fundamentos para tal apresentados, sendo de se confirmar tanto a decisão da matéria de facto recorrida como o seu enquadramento jurídico-penal, e outras questões não havendo a apreciar, imperativa é a decisão da sua improcedência.
Decisão
4. Em face do que se exposto, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.
Macau, aos 23 de Abril de 2015
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
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