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Processo nº 126/2015

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

No âmbito dos autos da acção de processo do trabalho nº LB1-13-0033-LAC, do Juízo Laboral do Tribunal Judicial de Base, proposta por A, devidamente id. nos autos, contra a B (MACAU) – Serviços e Sistemas de Segurança Limitada, foi proferida a seguinte sentença julgando parcialmente procedente a acção:

I – RELATÓRIO
  A, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente n.º 1XXXXX7(9), emitido pela Direcção dos Serviços de Identificação da Região Administrativa, em 6 de Setembro de 2006, residente habitualmente na Praça das XX, n.º, XX, Edifício “Jardim XX”, XX.º andar “XX”, Macau, veio intentar a presente
  Acção de Processo Comum do Trabalho contra
  B(MACAU) - SERVIÇOS E SISTEMAS DE SEGURANÇA - LIMITADA, com sede na Avenida XX, s/n, Edifício XX, Fase XX, XX.º Andar XX, Macau.
  Concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada a presente acção e, em consequência ser a Ré condenada a pagar à Autora:
  a) A quantia de MOP$94,824.00, pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal;
  b) A quantia de MOP$47,412.00, por falta de um dia de descanso compensatório pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal.
  c) Em custas e procuradoria condigna.
  Juntou os documentos constantes de fls. 9.
*
  Realizada a tentativa de conciliação pelo MP, não chegou a acordo entre as partes.
*
  A Ré contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 31 a 35 dos autos.
  Concluiu pedindo que sejam julgados improcedentes os pedidos da Autora.
*
  Realiza-se a audiência de discussão e de julgamento com observação de todo o formalismo legal.
*
II – PRESSSPOSTOS PROCESSUAIS
  O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e internacional.
  O processo é próprio.
  As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e são legítimas.
  Não existem excepções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
III – FACTO
  Discutida a causa, resultam provados os seguintes factos:
- Entre 1 de Janeiro de 1999 e 30 de Setembro de 2004, o Autor prestou para a Ré funções de "guarda de segurança". (alínea A) dos factos assentes)
- Trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré. (alínea B) dos factos assentes)
- A Ré sempre fixou o local, o período e o horário de trabalho do Autor de acordo com as necessidades. (alínea C) dos factos assentes)
- O Autor sempre respeitou os períodos e horários de trabalho fixados pela Ré, e sempre prestou trabalho nos locais indicados pela Ré. (alínea D) dos factos assentes)
- Ao longo de toda a relação laboral a Ré pagou ao Autor uma quantia fixa mensal, acrescida de uma quantia variável determinada em função do número de horas de trabalho extraordinário efectivamente prestadas pelo Autor. (alínea E) dos factos assentes)
­ Para os presentes efeitos, durante a relação de trabalho o Autor auferiu da Ré a título de salário anual e de salário normal diário, as quantias que abaixo se discrimina (Cfr. fls.9, Certidão de Rendimentos - Imposto Profissional, que se junta e se dá por reproduzido para todos os legais efeitos):
Ano
Salário anual
Salário diário
1999
64774
180
2000
55384
154
2001
52716
146
2002
52286
145
2003
61822
172
2004
61390
171
(alínea F) dos factos assentes)
- Entre 1 de Janeiro de 1999 a 30 de Setembro de 2004, a Ré nunca atribuiu ao Autor um qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal. (alínea G) dos factos assentes)
- Entre 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2000, a Ré nunca fixou ao Autor, em cada período de sete dias, um período de descanso de vinte e quatro horas consecutivas, sem prejuízo da correspondente retribuição. (Resposta ao quesito 1° da base instrutória)
- Por solicitação da Ré, o Autor prestou trabalho todos os dias da semana entre 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2000, de modo a garantir o contínuo e diário funcionamento da actividade da Ré. (Resposta ao quesito 2° da base instrutória)
- Entre 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2000, a Ré nunca fixou ou conferiu ao Autor em outro dia de descanso compensatório, em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal. (Resposta ao quesito 3° da base instrutória)
- O trabalho que prestou em dias de descanso semanal foi remunerado pela R. com o valor de um salário diário, em singelo. (Quesito 8° da base instrutória, aceite pelas partes)
*
IV – FUNDAMENTO DE DIREITO
  Cumpre analisar os factos e aplicar o Direito.
  Atentas as posições tomadas pelas partes, são seguintes questões essenciais a decidir nos presentes autos:
a) Caracterização do contrato celebrado entre a Autora e a Ré;
b) Regime aplicável à presente relação laboral;
c) Compensação pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal;
d) Compensação dum outro dia de descanso compensatório;
e) Juros de mora.
*
  Caracterização do contrato celebrado entre o Autor e a Ré
  Nos termos do art. 1079º, n 1º do Código Civil, “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.”
  Desse preceito resulta que são três elementos do contrato de trabalho:
1) A prestação da actividade;
2) A retribuição;
3) A subordinação jurídica.
  No contrato de trabalho, a uma parte (trabalhador) incumbe a prestação duma actividade quer intelectual quer manual, bem como a sua disponibilidade junto de outra parte (empregador), por forma a que esta possa obter o resultado pretendido com outros meios de produção.
  Em contrapartida, o trabalhador ganha retribuição como preço do trabalho prestado por ele, sendo essa retribuição paga normalmente em dinheiro.
  A subordinação jurídica é característica mais importante do contrato de trabalho, que se traduz numa relação de dependência do trabalhador face às ordens, directivas e instruções do empregador na prestação da actividade daquele.
  Conforme os factos provados, ficou demonstrado que, o Autor esteve, entre 1 de Janeiro de 1999 e 30 de Setembro de 2004, ao serviço da Ré para, sob as suas ordens, direcção, instruções e fiscalização, exercer funções de guarda de segurança, ganhando remuneração paga pela Ré como preço de trabalho seu.
  Nestes termos, dúvidas não restam em qualificar como relação laboral, a relação existente entre a Autora e a Ré.
*
  Regime aplicável à presente relação laboral
  Nos termos do art. 1079°, n 2° do Código Civil, "o contrato de trabalho está sujeito a legislação especial."
  Quanto a isso, encontram-se no ordenamento jurídico de Macau regimes diferentes consoante o caso de trabalhadores-residentes e o de não residentes.
  No caso sub judice, o Autor é trabalhador não-residente, aplicando-se-lhe o respectivo regime.
  Como se sabe, a legislação especial relativa à relação laboral não residente é actualmente a Lei nº 7/2008, que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2009.
  No entanto, conforme os factos provados nos autos, a Autora trabalhou junto da Ré entre 1999 e 2004, período em que ainda se vigorava a lei antiga, isto é, o DL nº 24/89/M.
  De acordo com o art. 11º do Código Civil, “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.” “2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos;...” À relação laboral entre a Autora e a Ré aplica-se sem dúvida o DL nº 24/89/M.
*
  Compensação pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal
  Quanto ao problema sobre compensação pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal durante a vigência do DL nº' 24/89/M, pedida pelo Autor, encontram-se os doutos arestos do TUI de que resulta que o trabalhador recebe o dobro da retribuição normal, mas como os Autores nos respectivos casos já receberam o salário normal correspondente ao trabalho nesses dias de descanso, só têm direito a outro tanto (conforme os Ac. do TUI n.os 28/2007, 29/2007, 58/2007 e 40/2009).
  Aqui, vale a pena citar essa parte do douto Acórdão n. 28/2007 do Venerando TUI:
  "Na redacção original do n.º 6 do art. 17.° do RJRL o trabalho prestado em dia de descanso semanal dava sempre direito a ser pago pelo dobro da retribuição normal.
  O n.º 6 do art. 17.° do RJRL, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 32/90/M, de 9 de Julho, dispõe:
  “6. O trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser pago:
  a) Aos trabalhadores que auferem salário mensal, pelo dobro da retribuição normal;
  b) Aos trabalhadores que auferem salário determinado em função do resultado efectivamente produzido ou do período de trabalho efectivamente prestado, pelo montante acordado com os empregadores, com observância dos limites estabelecidos nos usos e costumes”.
  Ao caso aplica-se a alínea b), dado que o autor era remunerado, não em função do mês, mas ao dia (salário determinado em função do período de trabalho efectivamente prestado).
  O pagamento do trabalho prestado em dia de descanso semanal é pago pelo montante acordado com os empregadores.
  Não tendo havido acordo entre autor e ré sobre a forma de remunerar o trabalho em dia de descanso semanal, existe uma lacuna quanto à forma de determinar tal pagamento.
  É que a referência, na parte final da alínea b) aos “usos e costumes”, não tem por finalidade substituir o acordo entre as partes, nem pode constituir nenhum acordo tácito entre as partes, que não se vislumbra a partir dos factos provados. Os usos e costumes são apenas um limite para o montante acordado pelas partes.
  Ora, não tendo havido qualquer acordo entre as partes, há falta de previsão legal sobre o pagamento prestado em dia de descanso semanal, para aqueles que não auferem salário mensal.
  Há que integrar a lacuna, por meio da norma aplicável aos casos análogos (art. 9.°, n.º 1, do Código Civil, correspondendo ao art. 10.°, n.º 1 do Código Civil de 1966).
  Ora a norma aplicável aos casos análogos é, manifestamente, a da alínea a) do mesmo n.º 6 do art. 17.°, que se refere à remuneração em dia de descanso semanal, para os que recebem em função do mês, ou seja o dobro da retribuição, no caso, diária.
  Por outro lado, para haver lugar à remuneração do trabalho prestado em dia de descanso semanal não é necessário que o empregador tenha impedido o trabalhador de gozar tal descanso. Basta que tenha havido uma conduta do empregador a determinar o trabalho nesses dias, como não pode ter deixado de ser, pois é a ré que alega que o descanso dos trabalhadores poria em causa o funcionamento dos casinos.
  Estas considerações aplicam-se também ao trabalho nos dias feriados.
  Mas já tem razão a ré ao dizer que o autor já recebeu o salário normal correspondente ao trabalho nesses dias de descanso, pelo que, agora, só tem direito a outro tanto, e não em dobro, como se decidiu no Acórdão recorrido, que não explica, aliás, porque não levou em conta o salário já pago. É que está em causa o pagamento do trabalho em dia de descanso semanal, pelo dobro da retribuição normal, mas o autor foi pago já em singelo.”
  Salvo melhor opinião, entendo ser um bom entendimento para a resolução da presente causa.
  Com efeito, segundo os factos considerados como provados nos autos, sendo ao Autor já pago salário diário em singelo referente à prestação do trabalho nos dias de descanso semanal, ela tem direito receber a outro tanto, também em singelo:
Período
N.os do dia de trabalho em descanso semanal (A)
Salário diário
(B)
Compensaçãoes
(A x B x 1)
1999
Jan. a Dez.
52
180
9,360.00
2000
Jan. a Dez.
52
154
8,008.00
  Em suma, a Autora tem direito a receber o montante de MOP$17,368.00, a título de compensação de descanso semanal.
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  Compensação dum outro dia de descanso compensatório
  Por outro lado, nos termos do art. 17°, n 4° do DL n. 24/89/M, "nos casos de prestação de trabalho em período de descanso semanal, o trabalhador tem direito a um outro dia de descanso compensatório a gozar dentro dos trinta dias seguintes ao da prestação de trabalho e que será imediatamente fixado."
  No caso vertente, sendo provado que o Autor não foi concedido nenhum dia de descanso compensatório pelo facto de ter prestado trabalho nos dias de descanso semanal acima referidos, tem ela direito a compensações correspondentes aos dias de descanso compensatório não gozados. Assim,
Período
N.os do dia de trabalho em descanso semanal (A)
Salário diário
(B)
Compensaçãoes
(A x B x 1)
1999
Jan. a Dez.
52
180
9,360.00
2000
Jan. a Dez.
52
154
8,008.00
  Em suma, o Autor tem direito a receber o montante de MOP$17,368.00, a título de compensação dos dias de descanso compensatório não gozados.
*
  Juros de mora
  Sendo os créditos supra mencionados ilíquidos, às quantias a eles referentes acrescerão, nos termos do art. 794°, n 4° do Código Civil que se conjuga com a jurisprudência fixada no Douto Acórdão do TUI, de 2 de Março de 2011, no processo n. 69/2010, juros a partir da data da decisão judicial que fixa o respectivo montante.
*

V - DECISÃO
  Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e em consequência condena-se, absolvendo dos restantes pedidos, a Ré a pagar ao Autor as seguintes quantias:
a) MOP$17,368.00, a título de compensação de descanso semanal;
b) MOP$17,368.00, a título de compensação dos outros dias de descanso compensatório não gozados;
c) Juros de mora sobre cada uma das aludidas quantias, à taxa legal a contar da data da presente sentença até o efectivo e integral pagamento.
  As custas serão a cargo do Autor e da Ré na proporção do decaimento.
  Registe e notifique.

Não se conformando com essa sentença, veio o Autor recorrer dela para este Tribunal de Segunda Instância.

Alegou concluindo e pedindo:

  1. Versa o presente recurso sobre a parte da Sentença na qual o Tribunal a quo procedeu a um julgamento incorrecto quanto à matéria de facto e, em consequência, julgou parcialmente improcedente a favor do Recorrente a atribuição de uma determinada compensação devida a título de trabalho prestado em dia de descanso semanal, e falta de gozo de dia de descanso compensatório, em violação ao disposto nos artigos 17.° n.º 4 e 6 do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
  2. Salvo o devido respeito, no entender do Recorrente, o julgamento de facto que incidiu sobre os quesitos 1.° a 3.° mostra-se equivocado, porquanto uma correcta ponderação da prova testemunhal será apta a conduzir a uma outra decisão,
  3. Devendo o Tribunal a quo ter considerado como integralmente provada a matéria constante dos referidos quesitos, com as devidas consequências quanto aos concretos pedidos formulados pelo Recorrente a tal respeito.
  4. Em concreto, acreditando que a matéria constante dos quesitos 1.° a 3.° será objecto de apreciação e de correcção, deve a Recorrida ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de Mop$94,824.00, pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, acrescida da quantia de Mop$47,412.00, pela falta de marcação e gozo de um dia de descanso compensatório em consequência do trabalho prestado em dia de descanso semanal, tal qual formulado na Petição Inicial.
  5. Se assim se não entender, deve a Recorrida ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de Mop$34,736.00 - e não tão só de Mop$17,368,00conforme resulta da decisão ora posta em crise - pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal e nos termos do disposto na a) do n.º 6 do artigo 17.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, em respeito à fórmula de cálculo pacificamente seguida pelo Tribunal de Segunda Instância e da qual o Tribunal a quo se afastou, acrescida da quantia de Mop$47,412.00 - e não tão só de Mop$17,368.00 - porquanto ficou expressamente demonstrado que até 2007 a Ré não conferiu aos seus trabalhadores um dia de descanso compensatório.
  6. Ao não proceder deste modo, o Tribunal a quo terá procedido a uma errada aplicação do disposto na al. a) do n.º 6 e do n.º 4 do artigo 17.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, razão pela qual, nesta parte, a douta decisão deve ser julgada nula e substituída por outra que condene a Recorrida em conformidade com o disposto na referida Lei Laboral.
  Nestes termos e nos de mais de Direito que V. Exas. encarregar-se-ão de suprir, deve a Sentença ora posta em crise ser substituída por outra que atenda aos pedidos formulados pelo Recorrente, assim se fazendo a já acostumada JUSTIÇA!

Notificada, a Ré respondeu pugnando pela improcedência do recurso.
II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Em face das conclusões tecidas na petição dos recursos, constituem o objecto da nossa apreciação as seguintes questões:


1. Do erro do julgamento da matéria de facto; e

2. Do multiplicador para o cálculo do trabalho prestado nos dias de descanso semanal.



Então apreciemos.


1. Do erro do julgamento da matéria de facto

A recorrente entende que a matéria dos quesitos 1º a 3º deve ser julgada integralmente provada e não apenas parcialmente provada.

Ora, foi levado aos primeiros três quesitos da base instrutória o seguinte:


Entre 1 de Janeiro de 1999 e 30 de Setembro de 2004, a Ré nunca fixou ao Autor, em cada período de sete dias, um período de descanso de vinte e quatro horas consecutivas, sem prejuízo da correspondente retribuição?


Por solicitação da Ré, o Autor prestou trabalho todos os dias da semana, de modo a garantir o contínuo e diário funcionamento da actividade da Ré?


Entre 1 de Janeiro de 1999 e 30 de Setembro de 2004, a Ré nunca fixou ou conferiu ao Autor um outro dia de descanso compensatório, em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal?

Submetida ao julgamento, esta matéria quesitada ficou parcialmente provada nos termos seguintes:

Entre 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2000, a Ré nunca fixou ao Autor, em cada período de sete dias, um período de descanso de vinte e quatro horas consecutivas, sem prejuízo da correspondente retribuição.

Por solicitação da Ré, o Autor prestou trabalho todos os dias da semana entre 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2000, de modo a garantir o contínuo e diário funcionamento da actividade da Ré.

Entre 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2000, a Ré nunca fixou ou conferiu ao Autor em outro dia de descanso compensatório, em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal.

Ou seja, só ficou provado um período mais curto em que a Autora não gozava nenhum dia de descanso semanal.

Ora, se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.

Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:

1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º

No caso dos autos, houve gravação dos depoimentos.

O meio probatório que, na óptica do recorrente, impunha decisão diversa é o depoimento testemunhal.

E foram indicadas as passagens da gravação do depoimento.

Satisfeitas assim as exigências processuais para a viabilização da reapreciação da matéria de facto com vista à eventual modificação por este Tribunal de Segunda Instância da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, passemos então a apreciar se se verifica o alegado erro na apreciação da prova pelo tribunal a quo.

Estão em causa as respostas parcialmente positivas dadas aos quesitos 1º a 3º da base instrutória.

Para o recorrente, face às provas testemunhais produzidas na audiência de julgamento, o período de tempo em que foram ocorridos os factos comprovados não deve limitar-se ao período compreendido entre 01JAN1999 e 31DEZ2000, mas sim entre entre 01JAN1999 e 30SET2004, tal como foi quesitado.

Ora, as provas que na óptica do recorrente impunham a decisão diversa do decidido na primeira instância são os depoimentos das duas testemunhas C e D.

Auscultadas e analisadas, não só as passagens da gravação identificadas pelo recorrente, como também as passagens da gravação que documentaram as perguntas e declarações em línguas de partida, ou seja, em inglês e em português, e não só em traduções, referentes aos depoimentos prestados pelas testemunhas C e D, na audiência de julgamento, sobre a matéria em causa, verificamos que o recorrente não tem razão.

Pois o que captamos da audição das gravações é que, ambas as testemunhas se limitaram a afirmar que os seus ex-colegas, incluindo o aqui Autor A, não tinham gozado descanso semanal só até ao ano de 2001 e que a partir de 2001, dada a abundância dos guardas contratados pela Ré para prestar serviço, pelo menos alguns deles gozaram descanso semanal, apesar de terem de avisar previamente a Ré para o efeito e, às vezes, poderem ter estado sujeitos a ser chamados para prestar serviço quando estavam a gozar descanso semanal.

Cremos que, se colocados perante essas respostas dadas em face de tais perguntas naquele contexto todo, formaríamos a mesma convicção que formou o Julgador a quo, portanto, não se vê em que termos o Tribunal a quo andou mal na apreciação da prova.

Globalmente interpretados os testemunhos, cremos que bem andou o Tribunal ao dar como parcialmente provada a matéria quesitada nos primeiros três quesitos, isto é, os tais factos só se comprovaram no período compreendido entre 01JAN1999 e 31DEZ2000.

Assim, improcede a impugnação da matéria de facto.

2. Do multiplicador para o cálculo do trabalho prestado nos dias de descanso semanal

Aqui já tem razão o recorrente.

Pois no âmbito do Decreto-Lei nº 24/89/M, a lei regula as condições do trabalho prestado em dias de descanso semanal e as diferentes formas de compensações desse trabalho consoante as variadas circunstâncias que o justificam.

Diz o artº 17º deste diploma que:

1. Todos os trabalhadores têm direito a gozar, em cada período de descanso de vinte e quatro horas consecutivas, sem prejuízo da correspondente retribuição, calculada nos termos do disposto sob o artigo 26º.
2. O período de descanso semanal de cada trabalhador será fixado pelo empregador, com devida antecedência, de acordo com as exigências do funcionamento da empresa.
3. Os trabalhadores só poderão ser chamados a prestar trabalho nos respectivos períodos de descanso semanal:
a) Quando os empregadores estejam em eminência de prejuízos importantes ou se verifiquem casos de força maior;
b) Quando os empregadores tenham de fazer face a acréscimos de trabalho não previsíveis ou não atendíveis pela admissão de outros trabalhadores;
c) Quando a prestação de trabalho seja indispensável e insubstituível para garantir a continuidade do funcionamento da empresa.

4. Nos casos de prestação de trabalho em período de descanso semanal, o trabalhador tem direito a um outro dia de descanso compensatório a gozar dentro dos trinta dias seguintes ao da prestação de trabalho e que será imediatamente fixado.
5. A observância do direito consagrado no nº 1 não prejudica a faculdade de o trabalhador prestar serviço voluntário em dias de descanso semanal, não podendo, no entanto, a isso ser obrigado.
6. O trabalho prestado nos termos do número anterior dá ao trabalhador o direito a ser pago pelo dobro da retribuição normal.

Em face dos factos que ficaram provados nos presentes autos, não se mostrando que o trabalho em dias de descanso semanal foi prestado em qualquer das situações previstas no nº 3 e na falta de outros elementos fácticos, a compensação deve processar-se nos termos consagrados no nº 6, isto é, o trabalhador tem direito a ser pago pelo dobro da retribuição normal.

Assim, no âmbito do Decreto-Lei nº 24/89/M, para cálculo de quantia a pagar ao trabalho prestado em dias de descanso semanal, a fórmula é:

2 X o salário diário médio X número de dias de prestação de trabalho em descanso semanal, fora das situações previstas no artº 17º/3, nem para tal constrangido pela entidade patronal.

Como, por um lado, a sentença recorrida adoptou o multiplicador X 1 para o cálculo da quantia a pagar ao trabalho prestado em dias de descanso semanal, em vez de o multiplicador X 2 que defendemos, e por outro lado não foram objecto da impugnação quer o número dos dias de descanso semanal em que trabalhou quer o quantitativo diário do salário, é de alterar a sentença recorrida e passar a aplicar nela o multiplicador X 2 para o cálculo da compensação pelo trabalho prestado nos descansos semanais, o que nos leva a atribuir ao Autor, a título da compensação pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, o valor de MOP$34.736,00, correspondente ao dobro de MOP$17.368,00, quantia fixada na sentença recorrida.

Tudo visto resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Autor A:


* julgando improcedente a impugnação da matéria de facto;

* revogando a sentença recorrida na parte que diz respeito à compensação pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal;

* passando a atribuir ao Autor, a título da compensação pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, o valor de MOP$34.736,00; e

* mantendo a condenação da Ré no pagamento ao Autor a título da compensação pelo não gozo dos descansos compensatórios, assim como a forma de cálculo de juros.

Custas pelo recorrente na parte referente à improcedência da impugnação da matéria de facto.

Custas a cargo da Ré pelo decaimento da acção na parte tratada neste recurso – artº 376º do CPC e artº 2º/1-i) do RCT, a contrario.

Registe e notifique.

RAEM, 26MAR2015


_________________________
Lai Kin Hong
_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
_________________________
Ho Wai Neng

Ac. 126/2015-21