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Proc. nº 352/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 22 de Janeiro de 2015
Descritores:
   -Depoimento de parte
- Litisconsórcio necessário
- Doação
- Consentimento dos cônjuges
- Abuso do direito
- Simulação
- Colação

SUMÁRIO:

I - O depoimento de parte tem por objectivo fundamental obter a confissão judicial de factos desfavoráveis ao depoente e à parte a que pertence e o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária.

II - No caso de litisconsórcio necessário, o depoimento de parte é ineficaz no que respeita á confissão que tiver feito, nos termos do art. 346º, nº2, do CC.

III - Por detrás de um contrato de compra e venda pode estar uma doação (indirecta). Se o imóvel ou o direito a ele pertencer a ambos os cônjuges, a falta de consentimento escrito na doação de um deles importará a sua nulidade, nos termos dos arts. 287º e 941º do CC.

IV - Todavia, se a autora deu o consentimento, embora não escrito, então não pode vir alegar na acção (inalegabilidade) a falta de forma, por abuso do direito na vertente do venire contra factum proprium.

V - Na simulação não é necessária a intenção de prejudicar, mas não se dispensa o requisito do intuito de enganar terceiros.

VI - Se na doação do direito à aquisição do imóvel não for manifestada expressamente a intenção de dispensa de colação, nem ela se inferir tacitamente, e se, pelo contrário, a doação tiver sido feita a um filho como modo de o compensar pelas liberalidades em dinheiro feitas aos outros três irmãos, fica claro que a intenção do doador não foi a de dar preferência ao donatário, mas de equilibrar a posição de todos os filhos.
Nesse sentido, o donatário deve restituir o direito à herança, nos termos dos arts. 1945º, nº1, 1946º e 1947º, do CC (colação).

VII - Se o tribunal manda desentranhar documentos juntos por uma parte e em seu lugar determina que fique cópia apenas para mera referência e, portanto, para não ser utilizada, a permanência nos autos dessa cópia não configura a nulidade do art. 147º, nº1, do CPC (prática de um acto que a lei não prevê), por não exercer qualquer influência no exame e decisão da causa.
Proc. nº 352/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, viúva, de nacionalidade chinesa e residente em ......, Hong Kong, por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito B, intentou no TJB (Proc. nº CV2-07-0013-CAO) contra C comerciante, solteiro, maior, residente em Macau, na Rua de ......, em Macau acção declarativa de condenação com processo ordinário, formulando vários pedidos, concernentes a uma fracção imobiliária “IR/C” do rés-do-chão “I” com os demais sinais dos autos.
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A fls. 328 dos autos, o Tribunal a quo admitiu o depoimento de parte de chamado D a alguns artigos da Base Instrutória requerido pelo réu C a fls. 326.
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1º recurso da autora (interlocutório)
A autora recorreu desse despacho, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. O depoimento de parte visa obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente (art.º 345.º e 349.º, n.º 2 do CCM), pautando-se a sua admissibilidade por essa limitação, sob pena de se transformar o depoimento de parte em testemunho de parte, à revelia da proibição estabelecida no art.º 518.º do CPCM.
B. Mas, conforme resulta do despacho de fls. 180 e ss., já transitado em julgado, e do despacho de fls. 194 que incidiu sobre o requerimento de fls. 186 e ss., a Autora e os chamados para com ela se associarem, designadamente o D, encontram-se em litisconsórcio necessário activo nos termos do disposto no art.º 61.º, n.º 1 do CPCM, aplicável no caso “sub judice” por força do disposto no art.º 1929.º, n.º 1 do CCM.
C. E como a confissão feita pelo litisconsorte não é eficaz quando o litisconsórcio seja necessário, como sucede no caso “sub judice” (art.º 346.º, n.º 2, in fine, do CCM), é, de todo, impossível ao D confessar, através do depoimento de parte, os factos a que respeitam quesitos 7.º, 10.º a 15.º e 27.º da Base Instrutória.
D. Daí a inadmissibilidade do depoimento de parte do litisconsorte D.
E. Por outro lado, os factos perguntados nos quesitos 7.º, 10.º a 15.º e 27.º da Base Instrutória não provam nem são susceptíveis de provar (i) que foi prestado o consentimento conjugal da Autora a que se refere o disposto nos art.º 1548.º, n.º 1 do CCM e 129.º do Código do Notariado, nem (ii) que o C tem o direito a ser compensado pelas liberalidades que tenham sido feitas aos irmãos, dado que tais liberalidades, a terem ocorrido, imputar-se-iam necessariamente na quota disponível do B (1955.º, n.º 1 ex vi do art.º 1954.º, n.º 3, ambos do CCM.
F. São, portanto, factos insusceptíveis de confissão, na medida em que não são desfavoráveis ao D, nem favoráveis ao C.
G. Assim, a decisão ora recorrida ao admitir o depoimento de parte do litisconsorte D violou não só o disposto no art.º 346.º, n.º 2, in fine, e, por conseguinte, o art.º 347.º, alínea a), mas também o disposto no art.º 345.º, todos do CCM, pelo que deve ser revogada, com as legais consequências.
NESTES TERMOS, e nos mais de Direito que V. Ex.ª muito doutamente suprirão, deverá ser revogada a decisão que deferiu o depoimento de parte do chamado D, tudo com as legais consequências».
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O réu respondeu ao recurso, apresentando as suas alegações, que sintetizou da seguinte forma:
«1.º Da conjugação do art.º 477.º do Código de Processo Civil com os art.º 345.º e seguintes do Código Civil não resulta que o depoimento de parte visa exclusivamente a obtenção de uma confissão judicial.
2.º As limitações aplicáveis ao depoimento de parte constam do art.º 479.º do Código de Processo Civil, o qual estabelece que o mesmo apenas pode ter lugar quanto aos factos pessoais ou os factos de que o depoente deva ter conhecimento.
3.º Não se pode confundir a confissão com o depoimento de parte. O depoimento de parte é urna das vias para se obter a confissão, mas na sua maioria das vezes não conduz a uma declaração confessória, pois a parte limita-se a confirmar os factos que lhe são favoráveis, negando os que lhe são desfavoráveis.
4.º Pode também suceder que o depoimento leve o juiz a convencer-se da realidade de um facto desfavorável ao depoente, mesmo que a declaração por ele prestada não tenha revestido a forma de uma declaração confessória.
5.º Tal resulta do n.º 1 do art.º 487.º do Código de Processo Civil, o qual estipula a obrigatoriedade de redução a escrito do depoimento, ainda que tenha sido o mesmo gravado, sempre que houver confissão do depoente.
6.º Daquele dispositivo manifestamente se extrai que nem sempre se atinge a confissão através do depoimento de parte, cabendo ao juiz apreciar livremente o depoimento, dele extraindo as respectivas consequências legais, não estando sujeito à força probatória vinculada, mas à livre apreciação do julgador.
7.º O n.º 2 do art.º 346.º do Código Civil, ao estabelecer que a confissão feita pelo litisconsorte em caso de litisconsórcio necessário é ineficaz, não pressupõe a inadmissibilidade do depoimento.
8.º Apenas determina que se houver confissão, não se poderá atribuir força probatória plena.
9.º A Recorrente trata indiscriminadamente os conceitos de eficácia e admissibilidade.
10.º Nos termos do art.º 354.º do Código Civil “O reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente.” (realçado nosso)
11.º O mesmo entendimento é propugnado pelo Tribunal de Última Instância, conforme se pode ver no Proc. n.º 22/2007, de 2008/5/30.
12.º O Supremo Tribunal Justiça, também decidiu, no Proc.º 03B1909, de 10/02/2003 que “o reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente.”.
13.º Muito bem andou o douto Tribunal a quo ao admitir o depoimento de parte relativamente aos indicados quesitos, uma vez que estão preenchidos os requisitos de que o mesmo depende, previstos nos art. os 478.º e 479.º, ambos do Código de Processo Civil.
14.º O Meritíssimo Juiz a quo não violou nenhum dispositivo legal.
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente A, mantendo-se in totum a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, por ser de inteira JUSTIÇA».
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O processo prosseguiu os seus trâmites normais, vindo a ser proferida sentença, datada de 2/04/2013 (fls. 586-603vº), que absolveu o réu C dos pedidos formulados pela autora e que a esta declarou como litigante de má fé, condenando-a em multa de 20 UCs.
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2º recurso da autora (sentença)
Contra a sentença recorreu a autora, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«A. O despacho de fls. 316-317v indeferiu o pedido de aditamento do quesito 5A à Base Instrutória e de eliminação dos quesitos 10.º a 15.º da Base Instrutória.
B. Quanto ao pedido de aditamento, o mesmo deveria ter sido deferido porque para se saber se o negócio titulado pela escritura especificada na alínea K) dos Factos Assentes foi gratuito ou oneroso era necessário ter sido quesitado se o Réu pagou ou não qualquer preço pela fracção autónoma “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX.
C. Por outro lado, o facto constante do artigo 43.º da p.i., cujo aditamento foi requerido pela Autora, releva não apenas efeitos para o efeito do pedido formulado na alínea (iv), mas também para o efeito do pedido formulado na alínea (iii) do Petitório, pelo deveria ter sido aditado à matéria de facto, face ao disposto no art.º 430/1 e 433.º do CPC.
D. Quanto ao pedido de eliminação dos quesitos 10.º a 15.º da Base Instrutória o mesmo deveria ter sido deferido por a defesa do Réu vertida nos quesitos 10.º a 15.º da Base Instrutória ser juridicamente neutra por não por não respeitar a factos extintivos, modificativos ou extintivos da pretensão da Autora nem concorrer para a integração jurídica da causa segundo qualquer solução plausível da questão de direito na medida em que tais quesitos pressupõem uma impossibilidade jurídica, ou seja, a existência de um direito de “compensação” que a lei exclui nas doações manuais (artigo 1954.º, n.º 3, do Código Civil).
E. Pelo que pelo que, a proceder a impugnação do despacho fls. 316-317v, devem baixar os autos à primeira instância, com as legais consequências.
F. Quanto à impugnação da decisão de facto, o propósito de compensação dado como provado na resposta ao quesito 27.º da Base Instrutória contradiz o propósito de venda para receber o respectivo preço especificado na alínea H) e J) dos Factos Assentes, pelo que face ao disposto no art.º 629/4 do CPC, deve ser anulada, por contraditória, a decisão de facto proferida na primeira instância quanto ao propósito do negócio (doação compensatória) titulado pela escritura de fls. 24-28.
G. Por outro lado, a prova plena resultante do artigo 370/2 do CCivil do Réu se ter obrigado a pagar o preço pela aquisição da fracção no contrato promessa de fls. 487 impede a prova por testemunhas de quaisquer convenções posteriores que lhe sejam contrárias (art.º 388/1 d CCivil).
H. Ficam, pois, infirmadas as respostas aos quesitos 7.º - na parte relativa à compensação - 4.º e 27.º da Base Instrutória, face à prova plena resultante do artigo 370/2 do CCivil de que, em 4/02/2004 o Réu outorgou o contrato promessa de fls. 487, no qual se obrigou a pagar HKD2,600,000.00 à Sociedade de Construção e Fomento Predial XXX pela aquisição da fracção “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX, o que oblitera a tese da compensação do Réu por liberalidades aos irmãos que vingou na sentença recorrida.
I. Do depoimento transcrito do E resulta que ele respondeu às perguntas que lhe foram colocadas com base da sua opinião e não com base no conhecimento concreto dos factos que lhe foram perguntados.
J. O facto de o D, juntamente com o Réu, se encontrarem em litígio contra a Autora e os outros chamados por causa da herança do B nos vários processos referidos nos artigos 12.º e 13.º da Contestação, incluindo o próprio inventário, compromete a credibilidade do seu depoimento.
K. Quanto à prova gravada, houve erro no julgamento da matéria dos quesitos 7.º na parte relativa à compensação - 12.º, 14.º, e 27.º da Base Instrutória.
L. As respostas aos quesitos 7.º - na parte relativa à compensação - 12.º, 14.º, e 27.º da Base Instrutória resultam de um erro de percepção na produção de prova, dado que, dos depoimentos transcritos das testemunhas F gravados ao minuto 39:44 a 42:20 e 48:24 a 49:52 do Translator 2 Recorded on 07-Jun-20l2 at 15.51.28 (0E2NH^0W05111270), G gravados ao minuto 03:10 a 05:34, 06:19 a 08:28 do Translator 2 Recorded on 07-Jun-20l2 at 15.23.43 (0E2MNJ3W05111270), E gravados ao minuto 00:10 a 01:40 do Translator 2 - Recorded on 07-Jun-2012 at 17.14.06 (0E2QAUK105111270) e H gravados ao minuto 23:35 a 24:13 do Translator 2 - Recorded on 07-Jun-2012 at 17.34.34 (0E2R%A3W05111270) não resulta que o B tenha disponibilizado SGD$1.000.000,00 a cada um dos três filhos, isto é I, J e D, nem se ficou delineada a ideia de que, para compensar o Réu ser-lhe-ia transferida a propriedade da fracção autónoma referida em K) dos facto assentes.
M. Os pontos concretos da matéria de facto a que respeitam os quesitos 7.º - na parte relativa à compensação - 12.º, 14.º, e 27.º da Base Instrutória foram, assim, incorrectamente julgados, pelo que requer que as respectivas respostas de fls. 494 a 497 sejam alteradas para NÃO PROVADO, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
N. Por outro lado, houve erro no julgamento da matéria dos quesitos 4.º e 26.º da Base Instrutória.
O. As respostas aos quesitos 4.º e 26.º da Base Instrutória resultam de um erro de percepção na produção de prova, dado que, dos depoimentos transcritos das testemunhas, G gravados ao minuto 05:49 a 06:19 do Translator 2 - Recorded on 07-Jun-2012 at 15.23.43 (0E2MNJ3W05111270), K gravados ao minuto 13:37 a 14:10 do Translator 2 - Recorded on 07-Jun-2012 at 15.51.28 (0E2NH^0W05111270), E gravados ao minuto 17:39 a 18:12 do Translator 2 - Recorded on 07-Jun-2012 at 17.14.06 (0E2QAUK105111270) e H gravados ao minuto 21:25 a 21:41 do Translator 2 - Recorded on 07-Jun-2012 at 17.34.34 (0E2R%A3W05111270) não resulta que a transmissão do direito sobre a fracção autónoma em causa foi feito com o consentimento da Autora.
P. Os pontos concretos da matéria de facto a que respeitam os quesitos 4.º e 26.º da Base Instrutória foram, assim, incorrectamente julgados, pelo que requer que as respectivas respostas sejam alteradas para PROVADO ao quesito 4.º E NÃO PROVADO ao quesito 26.º, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, alínea a) do CPCM.
Q. Por outro lado, houve erro no julgamento da matéria do quesito 3.º da Base Instrutória.
R. A resposta ao quesito 3.º da Base Instrutória resulta de um erro de percepção na produção de prova, dado que, dos depoimentos transcritos da testemunha K gravados ao minuto 12:00 a 14:40 do Translator 2 Recorded on 07-Jun-20l2 at 15.51.28 (0E2NH^0W05111270) resulta que a Autora apenas tomou conhecimento da transmissão da fracção em causa no início de 2007.
S. O ponto concreto da matéria de facto a que respeita o quesito 3.º da Base Instrutória foi assim, incorrectamente julgado, pelo que deve a respectiva resposta ser alterada para PROVADO, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, alínea a) do CPCM.
T. Quanto às alíneas (i) do pedido, o Tribunal a quo julgou não assistir razão à Autora o direito de pedir a anulação da compra e venda titulada pela escritura de fls. 24-28 ou da indicação do Réu pelo B para figurar na compra e venda (carta de fls. 42-42v), quer por força da caducidade do direito de anulação previsto no artigo 1548º, n.º 1, do CCM quer por força do consentimento prestado.
U. Importa, no entanto, não perder de vista que tal factualidade não ficou assente na selecção da matéria de facto nem provada no acórdão de fls. 494-497, tendo resultado de uma ilação retirada das respostas aos quesitos 25.º e 27.º da Base Instrutória.
V. A ilação retirada das respostas aos quesitos 25.º e 27.º da Base Instrutória de que a Autora já antes de compra e venda impugnada sabia que o seu falecido marido pretendia que o Réu ficasse com a propriedade da fracção autónoma em questão como forma de compensação não é grave, nem precisa, nem concordante, não podendo, nessa medida concorrer para a boa decisão da causa por ter violado as regras formuladas pela doutrina para as presunções naturais a que se refere o art.º 342.º do CCivil.
W. Ora, não tendo ficado provado em que data a Autora tomou conhecimento dos actos de fls. 487, de fls. 42 e de fls. 24-28, nem do propósito referido no quesito 27.º da Base Instrutória, nem em que data neles terá consentido, improcede, por infundado, o argumento da caducidade do direito de acção.
X. Por outro lado, diz a sentença recorrida que direito de anulação da compra e venda titulada pela escritura de fls. 24-28 não assiste à Autora por a mesma ter dado o seu consentimento nos actos impugnados. [v. também a resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória]
Y. Sucede que tal decisão viola o disposto nos artigos 212.º, 387.º e 404/2 do C. Civil e artigo 94.º n.º I do Código do Notariado, dado que, tanto do contrato promessa de compra e venda de fls. 487, como carta de fls. 42-42v onde o B instrui a L para vender a fracção ora em causa ao Réu, não consta a assinatura da Autora, mas apenas a do B.
Z. O que está, portanto, em causa no presente processo, nesta parte, é a validade da transmissão da propriedade ou da cessão da posição contratual da fracção autónoma “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX, face ao direito aplicável.
AA. Importa, pois, não perder de vista o regime aplicável, designadamente o disposto nos artigos 212.º, 404/2, 387/1 e 2, todos do C. Civil e no artigo 94/1 do Código do Notariado.
BB. Ora, de acordo com as referidas normas legais, a declaração de vontade para dispor do direito relativo à fracção autónoma ora em causa deve ser feita por forma escrita, não sendo, por conseguinte, admitida prova testemunhal.
CC. Significa isto que não tendo a Autora assinado, nem ratificado, nem consentido no contrato promessa de compra e venda de fls. 487, nem na carta de fls. 42-42v, a inexistência de qualquer declaração de vontade sua nesse sentido ou do seu consentimento nesses ou em quaisquer outros negócios relativos à mesma fracção autónoma não pode ser suprida com recurso à prova testemunhal.
DD. Deve, pois, revogar-se a decisão recorrida por violação do disposto nos artigos 212.º, 387.º e 404.º n.º 2 do Código Civil e no artigo 94.º n.º 1 do Código do Notariado.
EE. Por outro lado, nem nos Factos Assentes, nem nas respostas aos quesitos da Base Instrutória ficou provado que a Autora consentiu na doação do direito de aquisição da fracção em causa, nem na cessão da posição contratual desse direito, nem na sua venda, nem na sua doação dissimulada em compra e venda, nem na sua dação em cumprimento, nem na sua cessão da posição contratual, nem na sua partilha em vida nem em qualquer outro tipo de negócio concreto a favor do Réu.
FF. Ficou apenas provado que a transmissão da propriedade da fracção autónoma em causa foi feita com o consentimento da autora (resposta ao quesito 26 da Base Instrutória]
GG. Sucede que é sempre necessária a especificação do negócio consentido (ou pelo menos do seu tipo) para que o consentimento se considere prestado, sendo que a suficiência do grau de especificação do consentimento conjugal se afere em função do grau de especificação necessário ao contrato de mandato.
HH. Ora, o consentimento a que se refere a resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória não se reporta à transmissão do direito de aquisição da fracção autónoma ora em causa pertencente ao casal, mas à transmissão do direito de propriedade sobre essa fracção, pertencente à L.
II. Mas não indica o tipo de negócio a que se refere, designadamente se se destinava a um negócio de compra e venda, de doação, de partilha em vida, de dação em cumprimento, de cessão de posição contratual, de compensação de créditos, etc., pelo que sem tal concretização nenhum efeito jurídico contrário à pretensão da Autora e dos chamados poderia o Tribunal a quo ter retirado dessa resposta.
JJ. O que, dito por outras palavras, significa não ter ficado demonstrado que a Autora tivesse conhecimento da realização do contrato promessa de fls. 487, nem da carta de fls. 42, nem de algum negócio concreto e que nele tivesse consentido.
KK. Ademais, (i) a data em que Autora tomou conhecimento da venda titulada pela escritura de fls. 24-28, (ii) os termos e condições do consentimento referido na resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória, bem como (iii) as condições de tempo, modo, lugar e forma em que tal consentimento foi alegadamente prestado consubstanciam, no presente caso, factos constitutivos da excepção do consentimento invocada pelo Réu.
LL. Assim, cabia a este o ónus da prova dos factos constitutivos da excepção contraposta à pretensão da Autora e, obviamente, o ónus da invocação destes mesmos factos de que se pretendia prevalecer contra a Autora - cfr. artigo 335/2, do C. Civil e artigos 5/1 e 437 do CPC, cuja falta não podia ter sido suprida pelo Tribunal a quo, face ao disposto nos artigos 512 e 409/1-2 do CPC.
MM. Não tendo assim feito, é o Réu, e não a Autora, quem deve arcar com as consequências desta falta.
NN. A doação do direito à aquisição da fracção autónoma ora em causa que precedeu o negócio titulado pela escritura de compra e venda de fls. 24-28 não foi, pois, objecto do consentimento conjugal a que se refere o artigo 1547/1 e/ou o artigo 1869/1 ou, por analogia, o artigo 1548/1, todos do CCivil, na forma prestada no 1551.º, n.º 1 do mesmo diploma.
OO. A escritura de compra e venda de fls. 24-28 devia, portanto, ter sido anulada (art.º 1554.º, n.º 1 do Código Civil), pelo facto de a doação a ela subjacente ou nela dissimulada ter sido efectuada sem que o consentimento se pudesse considerar prestado nos termos da lei pelo cônjuge meeiro, nem pelos herdeiros legitimários.
PP. Por outro lado, segundo o Tribunal a quo, como a fracção autónoma, enquanto tal, nunca entrou no património do falecido marido da Autora seja como bem próprio seja como bem comum, não é aplicável à sua alienação a norma do artigo 1548/1 do CCivil.
QQ. Sucede que o direito de aquisição da fracção ora em causa se trata de um bem comum do casal, para cuja alienação é necessário o concurso da vontade de ambos os cônjuges declarada pela forma exigida legal, ou seja, pela forma escrita.
RR. Tanto que, se cada um dos cônjuges, por si só, não tem legitimidade para a prática dos actos de administração referidos na segunda parte do artigo 1543/3 do CCM, logo, por maioria de razão, nenhum deles poderá ter legitimidade para, sem o consentimento do outro, dispor a favor de outrem o direito de ambos à aquisição de um bem imóvel.
SS. Por outro lado, segundo o Tribunal a quo: Por o objecto da doação em análise ser um direito não qualificável como coisa ou empresa comercial, a validade da mesma não depende do consentimento da Autora. Consequentemente, nenhum vício sequencial pode ser assacado à compra e venda feita entre o Réu e a chamada L.
TT. Sucede que o legislador não deixou de fora do artigo 1547/1, nem dos art.º 195.º (Coisas imóveis) e 196.º (Coisas móveis) do CCivil os demais bens não qualificáveis como móveis ou imóveis susceptíveis de integrar o património comum do casal.
UU. Desde logo, por força da disposição residual do n.º 1 do art.º 196.º são móveis todas as coisas não compreendidas no artigo 195.º, sendo coisas, por força do disposto no art.º 193/1 do CCivil, tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas a título de domínio, como seja o direito à aquisição de uma fracção autónoma.
VV. Depois, porque como no n.º 3 art.º 195.º do C. Civil se prevê que “Os direitos reais inerentes às coisas imóveis estão sujeitos, salvo disposição em contrário, ao regime dos imóveis”, os outros direitos, v.g., o direito à aquisição de uma fracção autónoma, deverão considerar-se coisas móveis.
WW. Por isso, a alienação ao Réu do direito comum do casal à aquisição da fracção autónoma “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX, carecia do consentimento conjugal da Autora por se poder integrar na categoria de “coisas móveis” para efeitos do art.º 1547/1 do CCivil.
XX. Daí que a compra e venda feita entre o Réu e a L seja anulável face à inexistência da prestação do consentimento conjugal da Autora ao contrato promessa de fls. 487 ou à carta de fls. 42 ou à doação ao Réu do direito comum do casal à aquisição da fracção autónoma “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX ou ao negócio (aparente e simulado) da escritura de fls. 24-28 ou - caso assim não se entenda - face à inexistência de consentimento prestado pela Autora na forma legal (cfr. art.º 287 ex vi do art.º 129.º do Código do Notariado ex vi do artigo 404/2 e 1557/1 e/ou do artigo 1869/1 ou, por analogia, do artigo 1548/1, todos do C. Civil).
YY. Por outro lado, não procede o argumento de que Porém, como está provado que a transmissão da propriedade da fracção autónoma foi feita com o consentimento da Autora, a doação continua a não poder ser anulada.
ZZ. A tanto se opõe o facto incontornável de a resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória não ter concretizado o tipo de negócio a que tal consentimento se destinava, pelo que nada obsta à anulação da doação dissimulada em compra e venda.
AAA. Acresce que a doação ao Réu do direito à aquisição da fracção autónoma “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX de que fala a sentença recorrida configura um contrato de partilha em vida inválido por falta de consentimento, ou seja, numa forma especial de doação cuja validade depende da intervenção, não apenas do titular dos bens corpóreos ou incorpóreos (o doador), mas também de todos os herdeiros legitimários, visto que, além dos donatários (algum ou alguns dos presumidos herdeiros legitimários), se exige no preceito o consentimento dos outros (como quem diz o consentimento de todos os outros), no acto da doação.
BBB. Pelo que o consentimento a que se refere a resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória, se porventura tivesse sido prestado Autora - o que não se concede seria um acto nulo do conhecimento oficioso1 por força da indisponibilidade e do não preenchimento dos requisitos de consentimento conjugais exigidos na lei (art.º 287 ex vi do art.º 129.º do Código do Notariado ex vi do artigo 1557/1 ex vi do art. 1869/1 do CCivil).
CCC. Por outro lado, segundo o Tribunal a quo Não colhe o argumento de que o consentimento não foi prestado na forma exigida ou não estão demonstrados os termos e condições em que o consentimento foi prestado pela Autora.
DDD. Sucede que, no caso “sub judice”, a necessidade de quaisquer actos de disposição do direito relativo à fracção autónoma serem objecto de consentimento, resulta do art.º 1547/1 e/ou do artigo 1869/1 ou, por analogia, do artigo 1548/1, todos do CCivil.
EEE. Acresce que a forma do consentimento conjugal, nos casos em que é legalmente exigido, é a prevista para a procuração (art.º 1548.º, n.º 1 e 1551.º, n.º 1, s do CCM e art.º 129.º do Código do Notariado).
FFF. Logo, se a forma prevista para a procuração é a forma escrita, sê-lo-á também para o consentimento.
GGG. O consentimento conjugal trata-se, nesta medida, de um/acto jurídico sujeito a forma escrita, pelo que apenas pode ser demonstrado por documento escrito, não podendo tal formalidade ser dispensada (art.º 549, n.º 4 ex vi do art.º 558.º, n.º 2, ambos do CPC).
HHH. Sendo que tal consentimento escrito, se trata de um facto para cuja existência a lei exige a formalidade especial prevista no art.º 129.º do Código do Notariado ex vi do artigo 1551.º, n.º 1, do C. Civil.
III. Daí que a resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória viole o disposto no art.º 558.º, n.º 2 do CPC, não podendo, por conseguinte, relevar para nenhum efeito.
JJJ. Por outro lado, a resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória não se reporta a nenhum negócio em concreto, nem identifica o tipo de negócio consentido nem as partes nele intervenientes, pelo que dela não se pode retirar qualquer conclusão contrária à pretensão da Autora.
KKK. Por outro lado, se a disposição do direito à aquisição da fracção autónoma “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX resulta do contrato promessa de fls. 487 e da declaração escrita de fls. 42, tem necessariamente de se presumir - por força dos art.os 214/2 e 215/1 do C. Civil - ser também essa a forma exigida para a prestação do consentimento conjugal.
LLL. Também não procede a conclusão a que chega o Tribunal a quo de que a questão da incerteza dos termos e condições em que o consentimento foi prestado pela Autora se deve resolver contra ela.
MMM. Isto porque (i) a data em que Autora tomou conhecimento do negócio supostamente consentido, (ii) os termos e condições do consentimento, bem como (iii) as condições de tempo, modo e lugar em que tal consentimento tenha sido prestado consubstanciam, no presente caso, factos constitutivos da excepção do consentimento invocada pelo Réu no artigo 59.º da Contestação, cuja alegação e prova lhe competia exclusivamente - cfr. artigo 335/2, do CCM e artigos 5/1 e 437 do CPC, e cuja falta não pode ser suprida contra a Autora, face ao disposto nos artigos 409/1-2 do CPC.
NNN. Acresce que o consentimento a que se refere a resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória também não configura qualquer facto impeditivo ou extintivo do direito da Autora por lhe faltar o do grau de especificação necessário ao contrato de mandato.
OOO. Assim, faltando a invocação e prova dos factos constitutivos da excepção (da prestação do consentimento conjugal) oposta à pretensão da Autora, é o Réu - e não a Autora - quem deve arcar com as consequências dessa falta.
PPP. Também não procede a conclusão a que chegou o Tribunal a quo de que: Mesmo que todo o ex pendido acerca da validade da doação não possa ser acolhido e, como tal, ser a doação anulável por falta de consentimento válido da Autora, ainda assim, a pretensão da Autora não pode proceder. Desta feita, por força do abuso do direito.
QQQ. Primeiro porque não ficou provado nos Factos Assentes nem nas respostas aos quesitos que a Autora consentiu nos actos de fls. 42-42v e 24-28 ou na doação ou na compra e venda dissimulada em doação da fracção “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX.
RRR. Segundo, porque sabendo a Autora que não foi o seu falecido marido, mas o seu filho Lao Sio Hei a disponibilizar os montantes referidos no quesito 12.º da Base Instrutória despendidos na obtenção do direito de residência em Singapura, conforme resulta claramente das passagens do depoimento da testemunha G gravados ao minuto 03:10 a 05:34 do Translator 2 - Recorded on 07-Jun-2012 at 15.23.43 (0E2MNJ3W05111270), o não exercício do direito de acção no caso concreto pela Autora traduzir-se-ia num benefício injustificado do Réu à custa dos irmãos e de si própria, o que à Autora, enquanto cabeça de casal, cumpria evitar.
SSS. O exercício do direito de acção pela Autora não se apresenta, pois, no caso concreto, como ilegítimo, nem como clamorosamente ofensivo da justiça, por necessário à recta composição dos interesses em jogo.
TTT. Por outro lado, o Tribunal a quo julgou improcedentes os pedidos formulados nas alíneas (iii) e (iv) do petitório, por não se mostrarem preenchidos os requisitos previstos no artigo 232.º do C. Civil.
UUU. Sucede que a vingar a tese sufragada pelo Tribunal a quo estaria encontrada a maneira de defraudar a RAEM através do não pagamento pelo adquirente da diferença entre o selo da doação e o selo da compra e venda.
VVV. Bastaria dizer quando o estratagema fosse descoberto pela DSF ou por qualquer outro terceiro que se sentisse prejudicado, que a declaração de venda era na verdade, não uma declaração de venda, mas o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de um contrato anterior.
WWW. Por outro lado, verifica-se, pois o requisito da divergência entre a vontade e a declaração na medida em que nem a L pretendeu vender ao Réu a fracção em causa, nem o Réu teve intenção de a comprar.
XXX. Com efeito, afigura-se demonstrado nos autos que o que a L realmente pretendeu com a escritura de fls. 24-28, não foi vender qualquer fracção ao Réu, mas sim pagar ao B os lucros a parte do lucro que lhe competia nos termos das as alíneas G) e H) dos Factos Assentes por força do acordo celebrado, enquanto o Réu nunca pretendeu comprar qualquer fracção à L, mas sim ingressar a título gratuito na fracção “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX sem pagar o imposto do selo da doação e sem se sujeitar à obrigação de conferir prevista no art.º 1947.º do C. Civil.
YYY. Ficou, assim, também plenamente demonstrado o requisito do acordo simulatório - o qual precede logicamente o requisito da simulação relativo à divergência intencional entre a vontade declarada e real, na medida em que a divergência entre a vontade negocial e a real é o corolário de um acordo simulatório, ou seja, consiste na sua sequência lógica, pois que sem o acordo não se compreende a referida divergência, admitindo-se como certo que ninguém simula por simular.
351. Quanto ao argumento de que não há prejuízo porque a Autora consentiu na venda, importa não perder de vista que não ficou provado nos Factos Assentes nem nas respostas aos quesitos da Base Instrutória que a Autora nela tenha consentido, nem que não houve qualquer venda, dado que se tivesse havido uma venda não haveria prejuízo por se tratar de um negócio oneroso.
ZZZ. E procedendo a divergência entre a vontade e a declaração de acordo entre declarante e declaratário (pactum simulationis), isto é, do conluio, também se verifica a mancomunação, a qual consiste em as partes declararem, intencional e concertadamente, terem realizado um acto, que, afinal, não quiseram realizar.
AAAA. Acresce que, com ou sem consentimento da Autora, sempre haveria prejuízo para a RAEM e para os restantes herdeiros legitimários, por a falsa aparência da compra e venda simulada na escritura de fls. 24-28 prejudicar a liquidação do imposto do selo no valor de MOP56,347.00 indicado no Ofício de fls. 342 e a dissimulação em compra e venda da partilha em vida do direito à aquisição da fracção “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX da fracção prejudicar o direito a tomas de que fala o artigo 1869.º do C. Civil.
BBBB. Acresce que ainda que não tenha havido prejuízo, o que não se concede, sempre haveria simulação por se verificar o propósito de enganar terceiros.
CCCC. Não devia, pois, ter sido julgado improcedente o pedido de declaração do negócio simulado.
DDDD. Também não procede o entendimento de que não houve nenhuma doação dissimulada encoberta pela compra e venda titulada pela escritura pública outorgada entre o Réu e a chamada L.
EEEE. Sucede que a dissimulação da doação no contrato de compra e venda titulado pela escritura de fls. fls. 24 a 28 ficou demonstrado nas respostas aos quesitos 5.º e 7.º da Base Instrutória.
FFFF. Assim, feita a venda para concretizar e ocultar a doação do direito à aquisição da fracção “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX, não poderia considerar-se válida a doação face à manifesta nulidade desse contrato de compra e venda.
GGGG. Desde logo porque essa doação não poderia subsistir por falta de forma, porquanto não manifestada por forma autêntica a vontade de doar e de aceitar a doação - antes, pelo contrário, solenemente manifestada a vontade de celebrar negócio oneroso - não podia o contrato valer como gratuito.
HHHH. Ora, não existindo no contrato simulado de compra e venda o «animus donandi», o contrato dissimulado de doação seria também nulo por falta desse elemento no caso “sub judice”, na medida em que a exigida autenticidade e publicidade do acto da doação não se cumpre com a escritura de compra e venda, que serve precisamente para a sua ocultação.
IIII. Isto por o formalismo indispensável à validade do acto dissimulado não respeitar apenas ao documento que o deva titular (art.º 941.º, n.º 1 do C.Civil), mas também à própria natureza ou estrutura substancial desse acto, à causa negotii.
JJJJ. Termos em que o contrato de compra e venda de fls. 24-28 é nulo nos termos do disposto no art.º 232.º, n.º 2 do actual CCivil, anterior art.º 240/2 do C. Civil de 1966, por se ter destinado a contornar o obstáculo legal do consentimento exigido pelo art.º 1547/1 ou 1548/1 ou pelo 1868.º do C. Civil
KKKK. Devia, portanto, ter sido declarada a nulidade do negócio translativo da propriedade da fracção ora em apreço, por o mesmo consubstanciar uma doação dissimulada em contrato de compra e venda.
LLLL. Quanto aos pedidos relativos à posse do Réu sobre a fracção autónoma a ele transmitida e à reintegração da mesma na herança do falecido marido da Autora formulados na alínea (ii) do petitório, julgou o Tribunal a quo não se vislumbrar qualquer fundamento para declarar a posse que o mesmo eventualmente tem sobre a fracção autónoma insubsistente, ilegal e de má-fé, por, do acima exposto, não resultar qualquer invalidade dos actos que deram origem à aquisição da fracção autónoma por parte do Réu.
MMMM. Sucede que não tendo a Autora assinado o contrato promessa de fls. 4878, nem a carta de fls. 42, nem tendo ficado provado que a Autora consentiu ou ratificou qualquer negócio relativo à fracção autónoma ora em causa a favor do Réu, afigura-se serem inválidos actos que deram origem à aquisição da fracção autónoma por parte do Réu.
NNNN. No que se refere à reintegração da fracção na herança a fim de ser tomada em consideração na partilha, a mesma foi negada por o tribunal a quo considerar não poder condenar o Réu a reconhecer que a fracção autónoma pertencesse à Autora e ao seu falecido marido por este não ter chegado a adquirir a propriedade da fracção autónoma.
OOOO. Sucede que nada obstava a que o Tribunal a quo condenasse o Réu a reconhecer que o direito à aquisição da fracção autónoma pertencia à Autora e ao seu falecido marido, por lhe ter sido adjudicado pela L, conforme resulta do especificado nas alíneas G) e H) dos Factos Assentes e por serem inválidos - por falta da prestação de consentimento na forma legal - os actos que deram origem à sua aquisição a fls. 24-28 pelo Réu.
PPPP. O Tribunal a quo julgou ainda improcedentes as alíneas (v) e (vii) do pedido formulado pela Autora (cfr. réplica de fls. 128-147 e despacho de fls. l80-l82v), por o objecto da doação não ser a própria fracção autónoma mas sim o seu direito de aquisição, e por faltar a indicação nos autos de que o Réu concorreu ou concorrerá na sucessão de falecido pai.
QQQQ. O argumento de que não há colação por o objecto da doação não ser a própria fracção autónoma mas sim o seu direito de aquisição, não procede contra a alínea (vii) do pedido, por o pedido nela formulado não se reportar à fracção, mas ao direito a adquiri-la.
RRRR. Também não procede contra a alínea (v) do pedido, por o objecto da doação dissimulada na compra e venda de fls. 24-28 ser a própria fracção e não o direito à sua aquisição.
SSSS. Quanto ao argumento de faltar a indicação nos autos de que o Réu concorreu ou concorrerá na sucessão de falecido pai, tal não procede contra nenhuma das alíneas (v) e (vii) do pedido.
TTTT. Primeiro, porque o simples facto de o Réu se ter insurgido contra a colação da fracção em causa (e dos respectivos frutos percebidos até à partilha), bem como contra a colação do direito a adquiri-la, demonstra que pretende entrar ou já entrou na sucessão do seu falecido pai (art.º 20911, última parte, do C. Civil), caso contrário não teria o necessário interesse processual (art.º 72.º do CPC) para contestar as alíneas (v) e (vii) do pedido.
UUUU. Segundo, porque o nos artigos 12.º, 87.º, 88.º e 90.º da contestação, o Réu revelou ter aceitado a herança a benefício de inventário (art. º 1891/1 do C. Civil), revelando claramente ser parte do inventário que corre termos sob o n.º CV3-0S-00S6-CIV quando, por exemplo, se referiu à colação como sendo Questão que, de qualquer forma, seria resolvida no âmbito do processo de inventário, se se desse o caso do aqui R. entender que não deveria ser relacionado tal bem, [artigo 88.º da Contestação]
VVVV. Terceiro, porque o propósito de entrar na sucessão resulta do facto de o Réu ter reconhecido o alegado no artigo 48.º da petição inicial por força do art.º 410/2 do CPC, designadamente que a doação constituiu uma antecipação do seu quinhão hereditário (art.º 410/2 do CPC).
WWWW. Quarto, porque o propósito de entrar na sucessão resulta também do facto de o Réu se encontrar em litígio com a sua Mãe e com os seus dois irmãos mais velhos por causa da herança aberta por morte do seu pai B, conforme deu conta no artigo 17.º da Contestação.
XXXX. Sendo evidente que só existe litígio entre herdeiros legitimários, como sucede no caso ora em apreço, quando todos eles pretendam entrar na sucessão.
YYYY. Quinto, porque o ónus da prova de quaisquer factos impeditivos ou extintivos da pretensão da Autora, designadamente o facto de o Réu não ter concorrido nem pretender concorrer à sucessão do B, impende exclusivamente sobre o Réu (art.º 335/2 do C. Civil), constituindo matéria de que o Tribunal a quo não podia ter conhecido na sentença recorrida por força do disposto no art.º 409/1 do CPC.
ZZZZ. Sexto, porque em todo o caso, os documentos supervenientes de 24/9/2012 e 25/9/2012 - cuja junção ora se requer ao abrigo do disposto no art.º 61611 do CPC - demonstram que o Réu concorreu à sucessão por ter licitado os bens da herança.
AAAAA. Não procede, pois, o argumento expendido na sentença recorrida de que não se pode afirmar que o valor do direito de aquisição doado pelo falecido marido da Autora ao Réu está sujeito à colação nos termos peticionados pela Autora por faltar a indicação nos autos de que o Réu concorreu ou concorrerá na sucessão do falecido pai.
BBBBB. Nada, pois, obstava à procedência do pedido formulado na alínea (v) ou subsidiariamente na alínea (vii) do petitório.
CCCCC. Em todo o caso, a improceder o pedido formulado na alínea (v) do petitório devia o Tribunal a quo ter conhecido do pedido formulado na alínea seguinte. Não o fez, pelo que nada obsta a que seja agora suprida a nulidade de omissão de pronúncia em que incorreu o Tribunal a quo (art.º 571.º, n.º 1, alínea d), do CPC) por não ter conhecido da alínea (vi) do pedido.
DDDDD. Nos artigos 4.º, 8.º e 11.º da Contestação, o Réu sustenta que o que houve foi uma cessão da posição contratual do direito de aquisição do imóvel do B para o Réu.
EEEEE. Logo, se a escritura de compra e venda de fls. 42 resultou do cumprimento pela L da cessão pelo B ao Réu do direito à aquisição da fracção “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, do edifício XX, dever-se-á aplicar a tal cessão o regime do art.º 1547/1 ou do art.º 1869/1 ou, por analogia, o regime do art.º 1548.º, n.º 1 do C.Civil, por procederem as mesmas razões justificativas da regulamentação do caso previsto (art.º 10.º, n.º 1 do C.Civil).
FFFFF. E não se mostrando suprido o consentimento do cônjuge meeiro e/ou dos herdeiros legitimários do B, deve ser anulada a cessão2 do B para o Réu do direito à aquisição da fracção “IR/C” do rés-do-chão “I”, para comércio, do edifício XX, independentemente da qualificação jurídica que lhe tenha sido atribuída,3 por falta de consentimento do cônjuge meeiro, bem como todos os actos que dela dependem, designadamente a escritura de fls. 24-28.
GGGGG. Também não procede a condenação da Autora em litigância de má fé.
HHHHH. Primeiro, porque a matéria de facto provada nos Factos Assentes e/ou nas respostas aos quesitos da Base Instrutória não consente as ilações dela retiradas para substanciar o juízo de que a Autora alterou a verdade dos factos, por essas ilações, não sendo graves, nem precisas nem conformes, se afastarem das regras formuladas pela doutrina para a prova por presunção prevista no art.º 343.º do C. Civil.
IIIII. Desde logo por não ter ficado provado nos Factos Assentes e/ou nas respostas aos quesitos da Base Instrutória que a Autora tenha consentido em doar ao Réu o direito à aquisição da fracção ora em causa, nem consentido no contrato promessa de fls. 487, nem na venda de fls. 24-28, nem em dissimular o contrato de compra e venda de fls. 24-28 numa doação ao Réu, nem consentido em algum negócio de dação em cumprimento, de partilha em vida do direito à aquisição da fracção em causa, ou de qualquer outro tipo a favor do Réu, nem que teve conhecimento dos actos que levaram à aquisição do imóvel por parte do Réu antes da data da realização da compra e venda, nomeadamente do acto de doação ao Réu do direito à aquisição da fracção “IR/C” para o compensar das liberalidades que o pai tinha feito aos outros irmãos.
JJJJJ. Segundo, por não se poder resolver contra a Autora a questão da incerteza dos termos e condições em que o consentimento foi prestado, por se tratar de factos constitutivos da excepção do consentimento invocada pelo Réu no artigo 59.º da Contestação, cuja alegação e prova lhe competia exclusivamente - cfr. artigo 335/2, do CCM e artigos 5/1 e 437 do CPC, e cuja falta o disposto no artigo 409/1-2 do CPC não consente que seja suprida contra a Autora.
KKKKK. Terceiro, porque quer da matéria alegada pelas partes, quer da matéria dada como provada e não provada, não se poderá inferir que a Autora tenha litigado de má-fé, mas apenas que não logrou provar a sua versão dos factos designadamente dos quesitos 3.º, 4.º, 6.º, 8.º, 9.º da Base Instrutória, sem que isso signifique que tais factos sejam falsos.
LLLLL. Quarto, porque a matéria dos quesitos 12.º, 14.º, 26.º e 27.º da Base Instrutória foi objecto de depoimentos contraditórios por parte das testemunhas que sobre ela depuseram, v.g., pelas testemunhas F, E e G, tendo o Tribunal a quo, pendido para o lado do Réu, da mesma forma que poderia ter pendido para o lado da Autora, o que, desde logo, afasta a possibilidade de Autora ter alterado a verdade dos factos, uma vez que a litigância de má-fé exige a consciência de que quem pleiteia de certa forma, tem a consciência de não ter razão.
MMMMM. Quinto, porque as que as respostas aos quesitos 26.º e 14.º da Base Instrutória têm de ser cotejadas outros factos igualmente provados, designadamente o propósito de venda (do B) especificado na alínea J) dos Factos Assentes e o propósito de compra (do Réu) provado no contrato de fls. 487, que, contendendo com a tese da compensação do Réu pelas liberalidades feitas aos seus irmãos, colocam em dúvida o acerto da sentença recorrida.
NNNNN. Falta, pois, à decisão de condenação da Autora em litigância de má-fé, a demonstração nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a conseguir um objectivo ilegal, a impedir a descoberta da verdade, ou a entorpecer a acção da justiça.
OOOOO. Nesta medida não devia ter o Tribunal a quo julgado que «Dos dados constantes dos autos conclui-se facilmente que a Autora alterou a verdade dos factos.», por tal decisão violar o disposto no artigo 335/2, 343.º e 370/2 do C. Civil e nos artigos 5/1 e 437, 409/1 e 2, 558/1 e 2 e 385/2, alínea b), todos do CPC.
NESTES TERMOS e com o mais que V. Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências.
*
Contra-alegou o réu C, sem conclusões, em termos que aqui damos por reproduzidos.
*
A fls. 804 A pronunciou-se sobre o desentranhamento de documentos apresentados pelo Réu a fls. 766 a 786, requerendo que fosse desentranhada a cópia dos referidos documentos, o que por despacho do Juiz de fls. 813 foi indeferido.
*
3º recurso da autora
Perante tal indeferimento, foi pelo Réu interposto recurso (fls. 820), em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. O objectivo do desentranhamento de documento(s) cuja junção aos autos não se inscreva em nenhuma das hipóteses legalmente admissíveis, só pode ser o de que nada fique a constar do processo relativamente ao teor do documento cuja presença o Tribunal considerou legalmente inaceitável.
B. Note-se, ainda, que não se pode justificar a cópia no processo apenas para referência ou memória do acto que se pretendeu praticar nem para se demonstrar o acerto do ordenado desentranhamento, por ser um objectivo que deixou de interessar para o processo a partir do momento em que a parte se conformou com o mesmo desentranhamento.
C. Daí que a decisão de fls. 813 em manter cópia integral no processo dos documentos mandados desentranhar pelo tribunal não sirva qualquer propósito útil, representando a prática de um acto que a lei não admite, susceptível (em abstracto) de poder influir na análise e decisão da causa (artigo 147/1 do CPC).
D. A decisão tomada no despacho de fls. 813 viola, portanto, o disposto no artigo 468/1 do CPC, que impõe o dever de retirar dos autos os documentos que tenham sido considerados impertinentes ou desnecessários, bem como o disposto no artigo 87 do mesmo diploma que proíbe a prática de actos inúteis.
NESTES TERMOS e com o mais que V. Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências.
Assim, mais uma vez, farão V. Exas., JUSTIÇA!».
*
Em resposta a este recurso, o réu sustentou a falta de razão da recorrente autora (fls. 846-848).
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
1º Recurso da autora (interlocutório) de fls. 344.
1 - A fls. 326 foi requerido pelo réu o depoimento de parte da autora à matéria dos artigos 7º, 10º a 15º, 27º da Base Instrutória.
2 - Sobre tal requerimento, o M.mo Juiz proferiu o seguinte despacho a fls. 328:
«Depoimento do chamado D
Admito o depoimento do chamado em relação aos quesitos 7º, 10º a 15º, 27 da base instrutória.
Indefiro o depoimento do chamado quanto aos quesitos 3º, 4º, 16º a 26º, por não se tratarem de factos pessoais, nem dos que o chamado deva ter conhecimento».
*
2º Recurso da autora (recurso da sentença) de fls. 610.
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- A “SOCIEDADE DE CONSTRUÇÃO E FOMENTO PREDIAL XXX, LIMITADA”, foi constituída pelo B e pelo seu sócio M, por escritura pública de 8 de Outubro de 1986 (alínea A) dos factos assentes).
- Em meados ou fins de 1989, a XXX e a L celebraram um acordo com vista construção de vários edifícios em terrenos concessionados à L pelo então Território de Macau (alínea B) dos factos assentes).
- Por força deste acordo a XXX obrigava-se a proceder a construção de edifícios e ainda a desenvolver todos os actos integrantes da actividade de mediação imobiliária (alínea C) dos factos assentes).
- A XXX, promovia juntamente com a L, a sua venda junto dos interessados, competindo à primeira sociedade fazer contratos-promessa de compra e venda de bens futuros, estabelecendo o pagamento de um sinal e posteriores pagamentos escalonados de acordo com a evolução projectada da construção dos prédios, de tal forma que garantisse disponibilidade financeira para o prosseguimento da edificação dos respectivos prédios (alínea D) dos factos assentes).
- Para a concretização de tal objectivo acordaram as duas sociedades comerciais a abertura de uma conta conjunta numa das instituições bancárias da RAEM, na qual eram depositadas todas as quantias, assim obtidos juntos dos promitentes-compradores (alínea E) dos factos assentes).
- Tal cooperação fazia com que ambas as sociedades comerciais, XXX e L, participassem nas perdas e nos lucros resultantes de tal actividade construtiva (alínea F) dos factos assentes).
- Uma modalidade adoptada de repartição dos lucros foi a da distribuição, acordada com a L, de fracções autónomas aos dois sócios da XXX, isto é, ao B e ao M (alínea G) dos factos assentes).
- Relativamente às fracções que lhe eram adjudicadas pela L, o B podia escolher entre registar em seu nome a propriedade das respectivas fracções autónomas na Conservatória do Registo Predial (CRP) ou vendê-las a terceiros, recebendo, assim, o correspondente valor (alínea H) dos factos assentes).
- Caso o B pretendesse que essas fracções fossem vendidas a terceiros, teria apenas que indicar à L o nome do interessado na compra e a L assumia o encargo de outorgar na escritura pública de compra e venda uma vez que era elas a proprietária inscrita na CRP (alínea I) dos factos assentes).
- O B indicou à L o nome do R. para ser vendida a fracção autónoma referida em K) dos factos assentes (alínea J) dos factos assentes).
- Por escritura de 20/04/2004, lavrada a fls. 105 do Livro 97 do notário privado Zhao Lu, foi transmitida pela L ao R. a propriedade da fracção autónoma designada por “IR/C” do rés-do-chão “I” para comércio, sito em Macau, RAE, com os números……, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …… inscrita a favor do R. sob o n.º …… (alínea K) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- B, faleceu em 12 de Junho de 2004, em Hong Kong, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, no estado de casado com a Autora, A (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- Por escritura de 3 de Agosto de 2004, a Autora, o Réu, D, I e J, habilitaram-se com seus únicos e universais herdeiros de B (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- Através da escritura mencionada em K) dos factos assentes, B, não pretendeu vender nem o Réu pretendeu comprar a propriedade ou o direito de aquisição da fracção autónoma em causa (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Por detrás da escritura referida em K) dos factos assentes, B, pretendia doar a propriedade da fracção autónoma em causa ao Réu, para o compensar dos montantes que B, tinha disponibilizado a D, I e J a fim de estes adquirirem o direito de residência em Singapura por investimento (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
- Nos anos de 1995, B, a Autora, I, J e D formularam o propósito de transferir a sua residência para Singapura (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- Para obter o direito a residência em Singapura através de investimento, é necessário investir um montante mínimo de SGD$1.000.000,00 (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
- B, disponibilizou SGD$1.000.000,00 a cada um dos três filhos, isto é I, J e D (resposta ao quesito da 12º da base instrutória) .
- Posteriormente, ficou delineada a ideia de que, para compensar o Réu, ser-lhe-ia transferida a propriedade da fracção autónoma referida em K) dos factos assentes (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- I, J e D adquiriram o direito de residência em Singapura por volta de finais de 1996 (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).
- Em 1999 foi instalado um salão de cabeleireiro denominado “XX Salon” na fracção autónoma referida em K) dos factos assentes (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
- Em 2000, foi celebrado um contrato de arrendamento entre XXX (em associação com a L), representadas pelo Réu e o Salão de Cabeleireiro XX, representado pelo E sobre a fracção autónoma referida (resposta ao quesito da 20º da base instrutória).
- Sendo as respectivas rendas pagas à Sociedade XXX (resposta ao quesito da 21º da base instrutória).
- A Autora conheceu todos os factos referidos nas respostas aos quesitos 11º, 12º, 14º, 15º e 17º (resposta ao quesito da 25º da base instrutória).
- A transmissão da propriedade da fracção autónoma em causa foi feita com consentimento da Autora (resposta ao quesito da 26º da base instrutória).
- B, assim fez com o propósito de compensar o Réu dos montantes disponibilizados aos D, I e J a fim de estes adquirirem o direito de residência em Singapura por investimento (resposta ao quesito da 27º da base instrutória)».
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3º Recurso da autora de fls. 837
1- A fls. 766 a 786 foram juntos documentos pelo réu.
2- O Sr. Juiz mandou desentranhar os referidos documentos e determinou a sua restituição ao apresentante, ficando em seu lugar uma cópia destes no respectivo lugar dos autos (fls. 797-797vº).
3- A autora requereu que o Sr. Juiz mandasse também desentranhar a cópia dos ditos documentos, em termos que aqui damos por reproduzidos (fls. 804 e vº).
4- O Sr. Juiz lavrou o seguinte despacho (fls. 813):
«Os documentos desentranhados jamais podem ser valorizados no âmbito dos presentes autos e a sua cópia está aqui só para mera referência.
Assim, indefere-se o requerimento da recorrente.
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Remeta os autos ao Venerando TSI»
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III – O Direito
1 - Introdução
a) Uma palavra inicial para realçar o labor intenso que se adivinha na sentença posta em crise, enfrentando, uma a uma, as questões mais difíceis, a todas dando a solução que, na perspectiva do julgador, mereciam à luz do direito.
b) Só para ajudar à compreensão da questão central dos autos, vale a pena chamar a atenção para o facto de que A autora da acção, é mãe do Réu C e dos intervenientes D, I e J. Uma refrega familiar, portanto, a que está em causa nestes autos.
De acordo com a matéria de facto provada, haveria entre uma sociedade de construção (“XXX, Limitada”) de que o ex-marido da autora, de nome B, (já falecido em 2004) era sócio (juntamente com a autora) e a L um contrato de cooperação. A primeira construía edifícios em terrenos que à segunda tinham sido concessionados pelo Governo da época e a venda era promovida por ambas, sendo o resultado das vendas das fracções depositado numa conta bancária comum. Uma das modalidades de repartição dos lucros era a distribuição de fracções aos sócios da XXX, que as podiam fazer suas ou transmitir a terceiros sob a égide da L.
Ora, relativamente a uma das fracções atribuídas a B (a que está em causa nestes autos), este indicou o nome do réu, seu filho, à L para que esta lho transmitisse. E assim aconteceu em 2004 (facto da alínea K).
c) Qual foi o objectivo central da autora com a propositura da presente acção?
Foi obter a anulação daquele contrato de transmissão da propriedade da fracção “IR/C” para o Réu (factos H), I), J) e K) por parte da L.
Anulação com base em falta do seu (autora) consentimento. Mas, caso improcedesse esta pretensão, pedia a nulidade da transmissão, também por simulação do referido negócio (pedido III da p.i.), por dissimulação, em virtude de o mesmo consubstanciar uma doação do ex-marido ao filho, ora réu (pedido IV da p.i.) e se declarasse que a referida fracção estava sujeita a colação (pedido V da p.i.).
Na réplica, a autora ampliou a causa de pedir e o pedido (fls. 146-147), no que foi parcialmente atendida (fls. 180vº), mantendo porém a ideia de anulação do referido negócio (pedido VI) ou a colação do seu valor na quota do donatário réu (pedido VII).
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2 - Do 1º Recurso (interlocutório) da autora
Manifesta-se a autora contra o depoimento de parte do chamado (filho) D, requerido pelo Réu a fls. 326.
Para tanto, entende que da conjugação dos arts. 477º do CPC com o art. 345º e sgs. do C.C. sobressai a nota de que o depoimento de parte só é admissível com vista à produção de uma confissão judicial de factos desfavoráveis ao declarante e favoráveis à parte contrária.
Ora, nenhum dos factos a que aquele D deporia seria susceptível de confissão, por lhe não ser desfavorável, nem favorável ao réu.
Além disso, e como resulta dos despachos de fls. 180 e 194, a situação da autora e dos chamados é de litisconsórcio necessário activo, o que torna ineficaz a eventual confissão nos termos do art. 346º, do CC.
Conhecendo.
O art. 478º do CPC prescreve o seguinte:
Artigo 478.º
(De quem pode ser exigido)
1. O depoimento de parte pode ser exigido de pessoas que tenham capacidade judiciária.
2. Pode requerer-se o depoimento de inabilitados, assim como de representantes de incapazes ou pessoas colectivas; porém, o depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que os inabilitados possam obrigar-se e os representantes possam obrigar os seus representados.
3. Cada uma das partes pode requerer não só o depoimento da parte contrária, mas também o dos seus compartes.
Como é sabido, o depoimento de parte tem uma essência probatória (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo IV, pág. 430), isto é, tem por objectivo, precisamente, obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e à parte a que pertence e o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária. Verdadeiramente, o depoimento de parte visa obter a confissão judicial (v.g., Ac. RL, 10/03/2000, Proc. nº 4840/00; Ac. RE, de 26/04/2005, Proc. nº 580/01; RL, de 21/04/2004, Proc. nº 972/2004; 8/06/2004, Proc. nº 1700/03; RC, de 12/06/2005, Proc. nº 2824/2005; RL, de 5/06/2007, Proc. nº 3129/2007).
A confissão (“declaração de ciência”, apud Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, II, 697 e Mário de Brito, “Cod. Civil Anotado”, I, 470 e nota 843) tem, assim, uma marca “probatória” que o juiz avaliará no âmbito da sua actividade decisória. O depoimento de parte destina-se, por conseguinte, à obtenção do meio de prova a que se referem os artigos 345º e sgs. do CC. E se falamos de “meio de prova”, então é porque estamos no domínio de uma actividade jurisdicional que tem em vista, precisamente, a recolha de dados de facto necessários à subsunção deles ao direito a aplicar na sentença.
Isto é, admite-se o depoimento de parte nos casos em que as declarações prestadas acabam por ser contrárias à pessoa que as presta e decisivas no quadro da actividade julgadora que o tribunal terá que efectuar quando chegar o momento de decidir o litígio e de se munir de elementos suficientes e imprescindíveis ao reconhecimento do direito (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, pág. 325). Assim se disse em Ac. do TSI de 23/01/1014, Proc. nº 396/2013 e que aqui reiteramos.
Tudo isto, não obstante se considerar que uma coisa não é pressuposto necessário da outra, ou seja, sem prejuízo de se considerar que confissão e depoimento de parte são realidades distintas, sendo este mais abrangente do que aquela. “Assim, pode haver depoimento sem haver confissão, do mesmo modo que pode haver reconhecimento da realidade de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária, a que não possa atribuir-se eficácia confessória específica, valendo, então, como meio probatório que o tribunal apreciará livremente (cf. art. 361.º do CC)”4 5.
Ora, e ao contrário do que sustenta a recorrente, o depoimento do chamado (que está associado à autora), se confessório dos factos quesitados e aos quais deporia (7º, 10º a 15º e 27º), seriam contrários e desfavoráveis aos seus interesses e favoráveis aos interesses do réu. Na verdade, o declarante, na medida em que confirmasse a factualidade ali quesitada, confessaria que, afinal de contas, a intenção do pai acordada no seio da família (quesito 13 e 14º) foi a de doar a fracção ao réu, como forma de o compensar pelo dinheiro que ele (pai) despendeu com a atribuição de três milhões de HK dólares aos restantes três irmãos para que desse modo pudessem obter residência legal em Singapura a título de investimento.
Esta tese é contrária à da simulação invocada pela autora e, ao mesmo tempo, prejudicial aos interesses do próprio depoente, na medida em que o valor da fracção não integraria a massa hereditária do de cujus, falecido pai do réu e chamados, e ex-marido da autora.
Neste sentido, cremos que o pressuposto da confissão (art. 345º, CC), estando presente no caso, em princípio permitiria o requerido depoimento de parte.
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2.1 - Coloca-se, no entanto, uma questão: será que a circunstância de se estar perante um litisconsórcio necessário, tal como foi decidido no despacho de fls. 180-182 e 194 (ver), constitui algum obstáculo ao depoimento? Não o impedirá o art. 346º, nº2, do CC, “ fine”?
Em nossa opinião, não. A questão assim colocada, repare-se, não é de “inadmissibilidade” da confissão (cfr. art. 347º, do CC), mas de ineficácia. Na verdade, o nº2 do art. 346º dispõe que «A confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário» (destaque a negro nosso).
Ou seja, a lei não proíbe a confissão no caso do litisconsórcio necessário (nº2), embora a torne ineficaz, o que significa que qualquer declaração que possa comprometer os outros litisconsortes não surte efeitos enquanto força probatória plena6.
Ser ineficaz não é o mesmo que ser inválida, portanto. Simplesmente, se o facto de ser ineficaz poderia levar o juiz a indeferir o pedido de depoimento de parte, a verdade é que, não o tendo feito, isso não podia servir de modo de ultrapassagem da regra da ineficácia. Isto é, afinal de contas, o depoimento de parte não pode ser utilizado como instrumento confessório. Dito ainda de outra maneira, o tribunal não podia recorrer à confissão para dar por provada determinada matéria de facto, uma vez que o depoimento era ineficaz.
Sendo assim, resta indagar se o tribunal “a quo” se serviu do depoimento de parte como suporte funcional da prova. Todavia, se olharmos para o acórdão de fls. 494-497 (sobre o julgamento da matéria de facto provada e não provada), não avistamos nele nem uma única linha sequer que remeta para o depoimento de parte como fundamentação para o julgamento. A convicção do tribunal radicou exclusivamente nos documentos e nas declarações das testemunhas (fls. 496 vº).
Donde, não haver motivo para a procedência do recurso jurisdicional, nesta parte.
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3 - Do recurso da autora sobre a sentença
A – Do despacho de fls. 316-317
3.1 - Trata-se de uma questão que vem da reclamação de fls. 287-290 sobre a selecção da matéria de facto e cujo despacho pode ser impugnado aquando do recurso da decisão final (art. 430º, nº3, do CPC).
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3.2 - A fls. 287-289, a autora reclamou contra a selecção da matéria de facto. Pretendia que fosse levada à Base Instrutória a matéria do art. 43º da p.i. segundo a qual o Réu não teria pago qualquer montante pela transmissão da propriedade da referida fracção.
O despacho em apreço entendeu que não seria necessária a sua quesitação, na medida em que a intenção de doar a fracção pelo pai B ao réu tinha já sido incluída no art. 7 da BI.
Tem razão o Ex.mo Juiz. Na verdade, a matéria do pagamento estava já implicitamente englobada nos art. 7º da BI, especialmente quando confrontada com a do art. 5º da mesma BI. Na verdade, se a vontade dos declarantes não era vender, nem comprar a fracção - e essa matéria estava incluída no art. 5º da BI – mas sim efectuar uma doação, a prova desta factualidade resolveria o diferendo: não tinha havido compra e venda, mas sim intenção de doação. A questão do pagamento ficava assim prejudicada ou, então, implicitamente resolvida com eventual resposta ao quesito 7º. Ou seja, não seria por causa da não quesitação da matéria do art. 43º da p.i. que a pretensão da autora iria improceder. A falta de sua inclusão na BI não podia ter levado a outro desfecho.
Não tem razão a recorrente, quanto a esta parte.
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3.3 - Pretendia, ainda, que fosse eliminada a matéria dos arts. 10º a 15º da BI, por ela não ser necessária para as várias soluções plausíveis de direito. Porquê? Porque, em sua opinião, mesmo que fosse verdade que o ex-marido da Autora tivesse doado dinheiro aos filhos para obterem residência em Singapura, esse facto nunca serviria para constituir um direito de crédito a favor do irmão (ora réu) por não ter recebido nenhum dinheiro do pai para aquela finalidade.
E, mais uma vez, tem razão o tribunal “a quo”. Com efeito, saber a causa do contrato era importante para se aquilatar da intenção de prejudicar a autora e a sua meação na herança (art. 6º, BI) ou do propósito de compensar um irmão pelo facto de não ter sido necessário dar-lhe dinheiro – ao contrário do sucedido com os restantes – para que pudessem obter residência em Singapura (art. 7º, BI). Ora, os arts. 10º a 15º da BI têm o grande mérito de porem a descoberto a génese do referido negócio translativo. Ficar-se-ia a perceber, uma vez provados, quais os motivos do negócio e o consenso familiar alcançado previamente nesse sentido (v.g., arts. 13º e 14º, da BI).
Estes factos auxiliariam à compreensão da convergência ou, diferentemente, da eventual divergência entre vontade e declaração. Ajudariam a revelar uma possível simulação ou dissimulação; ver-se-ia, por eles, se havia intentos danosos ou se era séria a vontade manifestada.
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3.3.1 – A autora, sobre este mesmo assunto, alegou ainda uma questão que, em sua opinião, traduziria uma impossibilidade jurídica.
Pretende, com efeito, a recorrente dizer que o ex-marido (falecido B) não tinha que fazer a referida “compensação”, porque o filho, ora réu – a quem não foi dado nenhum dinheiro para obter residência em Singapura – não adquiriu um direito de crédito sobre o pai ou sobre a mãe e restantes irmãos.
É verdade. Não tinha direito de crédito. Mas, não é isso sequer o que está em causa.
Pôr um bem em nome do réu teria servido como modo de equilibrar em vida do “de cujus” a balança das liberalidades feitas a todos os descendentes. Falar aqui em compensação não tem uma significação jurídica. O que se verificou não foi a compensação do instituto jurídico de que trata o art. 838º do CPC, mas simplesmente uma recompensa, no sentido comum e prático (até de ordem moral, se se quiser) de um contrapeso de justiça e equidade: todos os irmãos ficariam desse modo em circunstâncias mais ou menos semelhantes. Foi atribuir em espécie, aquilo que aos irmãos tinha sido atribuído em dinheiro.
Saber se aquela atitude tem algum outro reflexo jurídico na massa da herança (nomeadamente, a dispensa de colação ou a imputação das liberalidades a título da quota disponível (cfr. art. 1954º, do CC), já é outra coisa, que no âmbito desta parte do recurso se não discute. Mas, por outro lado, basta reparar nesse artigo (tb. art. 1945º do CC), para se ver da importância que essa matéria encerrava.
Estando ali alegada uma doação indirecta (através de uma venda), bem podia acontecer que se estivesse perante uma dispensa de colação (este exemplo de dispensa através de doação indirecta vem citado por Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª ed., Pág. 370, nota 2607 ou Domingos Carvalho e Sá, Do Inventário, 6ª ed., pág. 190). Não estamos a concluir que sim, evidentemente, mas simplesmente a admitir essa possibilidade.
Bastava, portanto, que a referida factualidade pudesse ser útil a uma das várias soluções plausíveis de direito para que a sua inclusão na BI se justificasse. E a sua importância é-nos mostrada pela circunstância de ter servido para dar por provada a intenção de doar e o envolvimento de toda a família (art. 14º, BI), como se disse.
Portanto, o apelo à impossibilidade jurídica de se fazer a compensação não tem no caso qualquer cabimento.
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B – Da matéria de facto
4 – Considera a recorrente que o propósito da compensação, provado na resposta ao quesito 27º da BI, contradiz o propósito da venda da alínea H) e J) dos Factos Assentes.
Assim, deve ser anulada, em sua opinião, a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 629º, nº4, do CPC, por contraditória.
Mas, esta matéria merece a mesma ordem de considerações produzidas sobre a questão anterior. O propósito da venda foi afastado com a resposta aos quesitos 5º e 7º onde se revela o animus donandi. O aspecto formal do negócio cede o lugar ao aspecto material. Não vemos contradição nenhuma nisso.
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5 – Argui depois a questão da “prova legal ou tarifada” que decorreria da junção do documento de fls. 487, que traduzia um contrato-promessa assinado por B, em representação da Sociedade de Construção e Fomento Predial XXX, Limitada (de que era sócio) e o Réu, e em que este assumiu o pagamento de HK$2.600.000,00 pela aquisição da fracção em causa. Pretendia a recorrente que esta matéria deveria ter sido dada por provada, face ao disposto no art. 562º, nº3, do CPC e 368º, do CC.
Ora, não se podia dar por provada a matéria em causa, por não ter sido quesitada, nem sequer alegada pelas partes. De qualquer maneira, importa dizer que o referido documento foi tomado em consideração no âmbito da fundamentação do acórdão sobre a matéria de facto (fls.496vº). Além disso, para quê julgar provado que o réu assumiu o compromisso do pagamento do preço referido no contrato-promessa?! O que importa verdadeiramente é o que emerge do contrato definitivo de transmissão da propriedade (alínea k)) em conjugação com a matéria provada nas respostas aos arts. 5º, 7º e 27º. Nunca se poderia extrair do teor do contrato-promessa a conclusão segura de que o réu pagou aquele preço. Dito de outro modo, nunca seria possível dizer que o falecido marido da autora não quis efectuar alguma liberalidade ao filho réu, só porque com este foi celebrado um contrato que este prometia pagar o preço de HK$2.600.000,00. Essa questão foi ultrapassada pela resposta a outros quesitos, dando conta de outro negócio, que não o da compra e venda.
Improcede, pois, esta matéria.
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6 – O que acaba de dizer-se serve para responder ao recurso, no que concerne à matéria do art. 27º da BI, que a recorrente entende deveria ter sido respondida de outra maneira.
Do contrato de promessa mencionado e da carta de fls. 42, em que B instruía a L para que vendesse a fracção ao réu, não resulta, ao contrário do que a recorrente insiste em afirmar, que a venda teve mesmo lugar e que o seu propósito não era compensar o réu por quaisquer liberalidades feitas aos seus irmãos. Daqueles documentos resulta apenas a “declaração” que deles consta. Isso foi tido em conta. Mas já não resulta aquilo que a recorrente defende. A intenção do negócio, essa tinha que estar assente noutros documentos e na prova testemunhal e confessória produzida. E essa convicção teve-a o tribunal do julgamento em termos que não se mostram irrazoáveis, nem censuráveis.
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7- Da prova gravada
a) Do depoimento de E – Entende a recorrente que o seu depoimento resulta apenas da sua opinião e não do conhecimento concreto dos factos.
Ora, não foi só uma opinião estéril e desprovida de base. Na realidade, foi um depoimento fundado na “realidade” que ele conhecia enquanto cabeleireiro no estabelecimento instalado na fracção e nas conversas tidas com B, que ali era cliente.
E a valoração destas declarações foi feita em conjunto com os documentos carreados para o processo e com os restantes testemunhos obtidos.
b) Do depoimento de D – Acha a recorrente que a sua intervenção não merece credibilidade, na medida em que entre si, os restantes chamados e a autora existem diferendos repartidos em vários processos por causa da herança.
Bem. Quanto à credibilidade desse depoimento (de parte), foi considerada devidamente e não se vê que haja elementos no processo que a ponham em crise, só porque existem conflitos familiares por causa da herança. Se a posição dele foi contrária aos interesses da autora, isso parece-nos evidente e até compreensível, na medida em que o seu interesse pessoal na causa não é exactamente o mesmo dos outros intervenientes processuais, incluindo a própria autora. Mas, daí não se segue que o tribunal tenha feito uma má análise das suas palavras ou que estas deveriam ter tido outra ponderação. O TSI não pode concluir isso. Aliás, e como já foi dito, a fundamentação do acórdão sobre a matéria de facto não lhe fez a menor referência (cfr. fls. 496 vº).
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8 - Do erro na apreciação da prova
Insiste a recorrente que a matéria das alíneas H) e J) contradizem o propósito da compensação dado por privado na resposta ao quesito 27º. Por isso, deve ser anulada esta resposta.
Já dissemos e repetimos. Uma coisa não contradiz a outra. Uma coisa é o negócio formal, outra a intenção que esteve por detrás da literalidade do clausulado contratual.
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9 – Da resposta aos quesitos 7º, 12º, 14º e 27º
Considera ter sido feito um mau julgamento desta matéria de facto, na medida em que dos testemunhos de F, G, E, H, não resulta terem eles tido conhecimento da ideia ou intenção de compensação do réu por parte do pai, nem sequer que este tinha dado dinheiro aos irmãos que quiseram residir em Singapura e obter ali o estatuto de residente.
Ora, parece-nos normal que os depoimentos transcritos pela recorrente não sejam coincidentes e até concordamos que o da testemunha G não seja esclarecedor. Mas, não se deve achar estranho isso, já que é mulher de J, portanto, cunhada do réu, com interesses antagónicos.
Porém, no que se refere à testemunha F, mulher do primeiro interveniente, nora da autora, já o mesmo se não pode dizer. Com efeito, ela afirmou o que disse saber por o ter colhido directamente do sogro. Foi ele quem lhe transmitiu que todas as despesas para tratar da emigração dos filhos para Singapura eram pagas por ele. Este elemento não é desprezível no contexto familiar.
E o mesmo se diz das declarações testemunhais de E,. Verdade que nunca viu nenhum documento. Mas, para manifestar a sua opinião, tinha que ter visto? O que conta para a avaliação da credibilidade dos depoimentos é o grau de verosimilhança, é a probabilidade de eles traduzirem uma certa realidade, é a coerência com os demais elementos de prova recolhida.
A testemunha H, ex-empregada do falecido marido da autora, também confirmou saber que aquele tinha pago as despesas de emigração dos filhos. Foi ele quem lho afirmou.
Portanto, temos aqui um conhecimento indirecto dos factos, o que é natural, visto que aquele era um assunto familiar e B não tinha que andar a mostrar os documentos às pessoas, fossem ou não familiares. São coisas que se fazem no recato familiar e da documentação referente às diligências concretas não precisava ele dar conta a ninguém, até por nem sequer adivinhar que mais tarde isso viria a revelar-se necessário para o tribunal. O conhecimento indirecto é eficaz e útil se, no conjunto com de outros elementos escritos ou recolhidos oralmente em audiência, forem capazes de ilustrar os acontecimentos.
E se confrontarmos estas declarações com o depoimento de parte de D logo se admite um todo harmonioso e de plausível coerência. Efectivamente, das suas declarações flui claramente a noção claríssima de que o pai manifestou essa intenção à família e que esta tinha conhecimento não só do valor que era necessário doar aos filhos que quiseram residir em Singapura, como também da compensação ao filho que não quis ir, de maneira a não o prejudicar. Isso resulta muito bem das declarações transcritas pelo R. nas resposta ao recurso e que aqui damos por reproduzidas.
Em suma, não podemos dar razão à recorrente quanto a esta matéria.
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10 - Da resposta aos quesitos 4º e 26º
O quesito 4º tinha o seguinte teor:
«A transmissão do direito de aquisição sobre a fracção autónoma em causa foi feita sem o consentimento da A».
E o quesito 26º apresentava o seguinte texto:
«A transmissão da propriedade ou direito de aquisição da fracção autónoma em causa foi feito com o consentimento da A».
O 4º foi dado como não provado; o 26º foi considerado provado!
Ora, independentemente da maneira como se espelhou nos transcritos artigos da BI o respectivo ónus de prova, a verdade é que a autora não conseguiu convencer o tribunal que a transmissão foi feita sem a sua permissão, enquanto o réu provou o consentimento da autora na realização do negócio.
É isso que a autora pretende impugnar, ao afirmar que ninguém disse que ela consentiu na venda.
Mas, tal não corresponde à verdade. Efectivamente, do depoimento de F (já para não falar do depoimento de parte de D) resulta precisamente o contrário, em termos que não deixam dúvidas. A autora sabia da intenção da transmissão da propriedade para o filho e concordou com o marido nessa intenção!
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11 – Da resposta ao quesito 3º
O art. 3º da BI continha a seguinte pergunta:
«A A. tomou conhecimento do negócio pela escritura referida em K) em 29 de Janeiro de 2007?».
A resposta foi negativa, mas a recorrente, tendo por base o depoimento da testemunha K, funcionária da empresa de Construção, de que o falecido marido da autora era sócio, acha que deveria ter sido provado o contrário.
Ora, este depoimento está desalinhado com o teor dos depoimentos atrás referidos no ponto 10 e que não suscitaram dúvidas ao colectivo julgador da 1ª instância e que ao TSI igualmente não provocam reservas. Sendo assim, não achamos que também esta matéria devesse merecer resposta diferente.
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12 - Da caducidade
O réu tinha invocado a caducidade do direito de accionar a anulação do negócio. Esta matéria exceptiva não foi apreciada no despacho saneador, mas viria a ser conhecida na sentença. A este respeito, a sentença asseverou o seguinte:
«Resulta ainda da matéria assente que a compra e venda foi feira em 20 de Abril de 2004. A presente acção foi intentada em 29 de Janeiro de 2007. Mesmo que se tome em consideração a data de compra e venda como sendo a data em que a Autora teve conhecimento dos actos, há muito que caducou o prazo de 6 meses previsto no art. 1554º, nº2, do CC».
Ora, a caducidade a que se refere o art. 1554º do CC é a caducidade do direito de acção, aquela que resulta de o interessado não ter exercido no prazo legal o direito de requerer a anulação dos actos praticados em contrário das regras dos arts. 1547º, nºs 1 e 3, arts. 1548º e 1549º e al. b), do art. 1550º, do CC. Só que se trata ali de uma anulação a requerimento das pessoas que não tenham dado consentimento aos referidos actos.
Ora, a sentença não precisava de ir buscar esse fundamento (caducidade do direito de acção), uma vez que a prova feita tinha sido no sentido de que a autora tinha dado o consentimento à transmissão da coisa. Aliás, repare-se, se o fundamento da caducidade fosse imperativo e absolutamente definitivo e decisivo para o tribunal “a quo”, toda a acção ruiria, sem necessidade de tratar os outros assuntos.
De qualquer maneira, não se acolhe a verificação da caducidade, por três razões. Em primeiro lugar, porque o que conta para a sua ocorrência é a data da prática do acto e não a data da intenção. E na resposta ao artigo 26º da BI não está provado o conhecimento do momento em que a autora teve conhecimento da transmissão e a ela consentiu. Em segundo lugar, porque falta à verificação da excepção o requisito negativo da falta de consentimento. Finalmente, nem sequer o prazo de três anos a que alude a parte final do nº2, do art. 1554º do CC tinha decorrido, pois entre a data da celebração da escritura (20/04/2004) e a data da instauração da acção (10/01/2007) ainda não tinham passado três anos.
Mas, essencialmente, o que neste caso parece contar é o consentimento dado. Como tal, o art. 1554º já não podia servir de fundamento para a caducidade. Portanto, em caso nenhum, podia proceder esta matéria.
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13 – Do consentimento
Concluiu, então, a sentença que a autora tinha prestado o seu consentimento. Mas, disse mais: Disse que nem sequer era necessário o consentimento. E para justificar a afirmação partiu de duas razões principais:
i) A coisa não era ainda do seu ex-marido (ele apenas tinha um direito relativo a ela: o direito a ficar com ela, a fazê-la sua, no seio do acordo feito com a L, ou o direito de a transmitir a terceiros, se assim o pretendesse). Não sendo uma coisa que integrasse o património do casal, não tinha que ser prestado o consentimento nos termos do art. 1548º, nº1, do CC.
ii) Quem a transmitiu ao réu, por contrato de compra e venda, foi a L. Ou seja, a autora não tinha que dar o consentimento à L.
Será assim? O réu acha que não e invoca uma série de argumentos em contrário.
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13.1 – (Cont.)
A matéria do consentimento – nesta acção em que cavalgam uns sobre os outros os fundamentos da causa de pedir – precisa ser retalhada consoante os pedidos formulados, também eles assentes em realidades distintas: por um lado a anulação da “cessão da posição contratual” (pedido (vi) ) e a nulidade/anulação da “transmissão da propriedade (pedidos (i), (iii) e (iv).
Quanto aos pedidos (v) e (vii) já a matéria implica um tratamento à parte.
Comecemos, então, pelo pedido que visa a anulação da alegada “cessão da posição contratual” e só depois (ponto 14) passaremos à matéria da anulação da transmissão propriamente dita através da compra e venda.
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13.2 – Do consentimento à liberalidade
Houve consentimento, assim está provado. A autora deu o seu consentimento à transmissão da propriedade da coisa ao filho, ora réu (resposta ao art. 26º da BI). Evidentemente, ao dar esse consentimento, deu o consentimento automático (implícito e prévio) à concretização da intenção do então marido?
Então, importa saber:
1ª Pergunta: a que contrato prévio também deu ela o consentimento?
2ª Pergunta: Foi observada a forma legal? Como foi prestado esse consentimento?
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13.2.1 - No que respeita à primeira pergunta, a dúvida distribui-se entre uma doação, uma cessão da posição contratual e uma cessão de créditos.
Respondendo já, não nos parece que estejamos perante uma cessão da posição contratual. Na verdade, o pai do réu não transmitiu a este a posição (total) que ele detinha no contrato (atípico ou, como nos parece, de contrato de agrupamento de interesse económico). Não quis que o réu ocupasse o seu lugar, que passasse a ser o titular dos direitos e obrigações gerados na sua esfera após a celebração do dito contrato.
Aliás, e a uma outra luz, essa transmissão da sua posição contratual, nunca poderia ser senão a transmissão da sua posição de sócio da empresa XXX, mas para isso haveria que respeitar os requisitos do Código Comercial. Nada disso está em causa.
Não só ele não quis transmitir a sua posição de sócio desta empresa ao ora réu, como não quis transmitir a sua quota-parte da posição contratual estabelecida com a L.
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13.2.2 - Seria uma doação?
Para a entendermos desse modo, temos que conceder que o espírito do doador (falecido pai) era o de conceder uma liberalidade.
Ora, não custa admitir que sim, face àquela que se provou ser a intenção subjacente a esse contrato: compensar o réu pelo dinheiro dado aos restantes irmãos a fim de estabelecerem a sua residência em Singapura.
Sendo assim, pensamos que se poderia tratar de doação de um direito: direito de crédito sobre a L respeitante ao lucro a pagar em espécie, no caso, através da fracção. Direito, por conseguinte, que se repercutiria na aquisição de coisa imóvel.
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13.2.3 – E não poderia ser uma cessão de crédito?
Também não custa defendê-lo. No âmbito do contrato celebrado entre a XXX e a L, a fracção em causa iria ser atribuída a B, falecido marido da autora, pai do réu. Ele detinha sobre o “grupo” e concomitantemente sobre a L, seu membro, um direito de crédito: o direito de crédito à sua parte nos lucros da actividade conjunta, e que seria concretizado ou materializado na atribuição a si da propriedade da fracção em apreço (art. 571º, CC).
Bem. A cessão de créditos não é um negócio abstracto; visa realizar um negócio causal concreto (Antunes Varela, Obrigações, II, pág. 258). Negócio causal que pode ter na base uma venda, uma doação, uma dação em cumprimento, uma dação pro solvendo, etc. (ob. cit., III, pág. 349; Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. anotado, 4ª ed., I, pág. 593-594). Isto é, cede-se um crédito para realizar, por exemplo, uma doação.
Ora, assim sendo, não seria desprovido de sentido que se pudesse aceitar estar-se perante uma cessão de créditos que visa realizar uma doação.
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13.3 – Em nossa opinião, porém, verdadeiramente no contrato de compra e venda está subjacente uma intenção de proceder ou realizar uma doação. E mesmo que seja uma doação do direito à coisa (fosse até uma cessão de crédito ao filho para cumprir a liberalidade), à compra subjaz sempre uma doação.
Para se ser preciso e definir a situação neste caso concreto, estamos mais perto da doação do que da cessão. E porquê. Porque não houve por parte do falecido pai do réu, e por este mesmo, um negócio formalmente autónomo. Quer dizer, o réu nunca apareceu como destinatário dessa cessão, para que só depois dela pudesse haver a coisa pela via do contrato de compra e venda. Diferentemente, o que se passou foi que, em vez de a coisa ir para o verdadeiro titular (o pai do réu), ela foi directamente para a esfera do réu, sob indicação daquele.
Aliás, se houvesse alguma dúvida, ela teria sido dissipada pela prova feita de que a intenção do pai do réu era precisamente fazer a doação, conforme resposta ao art. 7º da BI. Esta questão de facto foi resolvida dessa maneira no âmbito da prova, pelo que não vale a pena iludir a situação com uma qualquer cessão de crédito.
Uma doação indirecta, portanto.7
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13.4 - Importa dar resposta à 2ª pergunta formulada em 13.2 supra.
Que o consentimento por parte da autora não teria sido prestado sob a forma escrita, isso parece sobressair com evidência pela maneira como a prova está adquirida nos autos. Se houvesse algum documento escrito, isso teria sido certamente alegado e documentado. Foi, então, uma anuência, uma concordância informal prestada no seio da paz familiar.
Com efeito, na resposta ao art. 26º da BI, recorde-se, não foi especificada a forma por que foi prestado consentimento da autora à alienação do bem ao filho réu.
Seria necessária a forma escrita?
A sentença insistiu neste ponto: o consentimento não podia estar a ser prestado para o marido poder alienar, uma vez que a outorga no negócio formal de compra e venda foi feita pela L, na sequência do acordo de cooperação estabelecido entre esta sociedade e a empresa de construção e fomento predial “XXX, Limitada”, de que aquele era sócio (cfr. matéria de facto assente a G).
Em parte, tem razão a sentença. Efectivamente, a autora era estranha aos contratos de compra e venda que fossem feitos entre a L e outros quaisquer compradores das fracções que iam sendo construídas, pois assim o assegura o art. 11º do Código Comercial:
«O empresário comercial, casado num regime de comunhão, não carece do consentimento do seu cônjuge para:
a) No curso normal da sua actividade, alienar e onerar os bens que compõem a empresa comercial;
b) Praticar actos de oneração ou disposição relativamente aos bens, independentemente da respectiva natureza, que representam o resultado da actividade da empresa comercial».
Quer isto dizer que, enquanto a construção e alienação dos imóveis fizesse parte do desenvolvimento normal da actividade comercial do marido, a sua mulher não precisava de dar o seu consentimento8.
Então, qual a razão para a autora ter que intervir aqui com a sua autorização?
Como bem diz a sentença, o consentimento justificar-se-ia nas relações internas e familiares se a atitude do marido da autora constituísse uma liberalidade, isto é, na medida em que ele se despojava de um direito seu em favor de um filho. E isso, sim, era doação (art. 934º, CC). Não uma doação de coisa, nem de coisa futura (porque essa nem era possível: art. 936º, nº1, CC), mas sim doação de um direito «que tem por objecto coisas ainda não existentes no património do doador»9.
Ora, se é certo que o art. 941º do CC apenas fala na forma das doações de coisas imóveis e de móveis, a verdade é que as doações de direitos, desde que incidam sobre coisas imóveis, se devem considerar abrangidas pelo nº1 do art. 941º, até porque assim o parece impor o art. 94º, nº1, do Código de Notariado, ao exigir a escritura pública para os actos que importem a aquisição dos direitos de propriedade de coisas imóveis.
Como não existiu tal escritura, estaríamos, pois, em termos abstractos ante uma nulidade da doação (art. 287º, CC).
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13.5 – Consequências concretas da falta de consentimento para a doação
Como vimos, em princípio a falta de consentimento escrito geraria nulidade.
No caso, porém, isso não acontecerá, pela razão que se aponta na secção seguinte.
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13.5.1 – Do abuso de direito
A este respeito, a sentença asseverou: «Mesmo que todo o expendido acerca da validade da doação não possa ser acolhido e, como tal, ser a doação anulável por falta de consentimento válido da Autora, ainda assim, a pretensão da Autora não pode proceder. Desta feita, por força do abuso do direito».
E cremos que tem razão.
Reza o art. 326º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económica desse direito”. Isto significa que o exercício de um direito é abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante10. Trata-se da emanação do vulgarmente denominado de princípio da confiança, segundo o qual “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”11
Venire contra factum proprium, é, deste ponto de vista, um exemplo típico de exercício inadmissível de direito12, algo que consiste numa prática por alguma das partes que contrariaria a boa-fé, na medida em que, a par de indícios objectivos, dê a entender que esse direito não seria mais exercido13. Como se disse em Ac. STJ de 21/01/2003, 1ª secção (relator Azevedo Ramos), www.dgsi.pt/jstj, “A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito”.
Quer dizer, o abuso do direito manifestado no “venire contra factum proprium”, assenta numa estrutura que pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, ainda que assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire contra”). É essa relação de oposição entre as duas que justifica a invocação do princípio do abuso do direito14.
Ora, concordamos com o tribunal “a quo” quando afirma que o abuso de direito teria ocorrido em virtude de a autora saber que a doação da fracção feita pelo marido ao réu era para o compensar relativamente às liberalidades de um milhão de dólares de Singapura a cada um dos três restantes filhos e de a ela ter dado o seu consentimento.
Neste aspecto, estaremos perante um “venire”. O facto de a autora vir na presente acção invocar a anulação da doação e da transmissão da propriedade da fracção por falta de consentimento, que sabemos ter dado, ou por falta da forma escrita desse consentimento (suscitada nas alegações do presente recurso jurisdicional) representa, quanto nos parece, uma clamorosa e manifesta ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, como foi escrito na sentença, e uma violação do honeste agere15.
Até por esta razão haveríamos de confirmar a sentença.
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13.5.2 – (Cont.): Consequências do abuso
Ora, o abuso de direito pode ter por consequência a impossibilidade de alegação de nulidade cometida por quem para ela também contribuiu, sendo ainda possível ao tribunal determinar a improcedência da pretensão do autor e a paralisação dos efeitos da nulidade subjacente.
Assim já decidiu este TSI com apoio da mais representativa doutrina e jurisprudência para a qual remetemos16.
Se o consentimento foi prestado pela autora de forma não escrita, e se agora pretende retirar qualquer valor a esse consentimento (que começou, aliás, por negar) para obter a nulidade da doação, então não resta ao tribunal senão retirar o efeito da inalegabilidade e dar por improcedente a pretensão, tal como a sentença decretou.
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14 – Do consentimento à transmissão da propriedade
Nesta secção abordaremos, agora, eventuais efeitos da falta de consentimento ao negócio de compra e venda.
Tanto quanto nos é dado ver, o que se passou foi um negócio entre a L e o réu, perfeitamente comum no âmbito da actividade de comercialização das fracções construídas no quadro mais vasto do acordo de cooperação firmado entre esta sociedade e empresa de construção, de que o falecido era sócio. A L celebrou o contrato de compra e venda com o réu, por indicação do falecido, como podia ter vendido o bem a um terceiro qualquer, também por indicação dele, porque era assim que a cooperação exigia (alínea I) dos factos). À L era, pois, indiferente a pessoa do “comprador”, até porque o bem em causa, tal como implicitamente resulta da matéria de facto, se não fosse transmitido ao réu, ou seria disponibilizado ao falecido, ou vendido a terceiro.
Sendo assim, que razões ponderosas poderiam levar à anulação desse negócio de translação da propriedade através da compra e venda efectuada pela L ao réu, se à vendedora eram estranhas as negociações prévias, as estipulações consensuais (os consensos ou falta deles) no seio familiar do falecido?
Ora, da mesma maneira que o contrato não seria nulo ou anulável se a L em vez de vender ao réu, vendesse a terceiro de boa fé contra a vontade do falecido e contra o acordo estabelecido entre ambas as empresas – na verdade, tal incumprimento só daria lugar a responsabilidade civil contratual – assim também esta transmissão da propriedade da coisa ao réu não pode ser anulado ou declarado nulo com aquele fundamento (falta de consentimento da autora), se ele não constitui um vício próprio que o invalidem absoluta ou relativamente.
Na verdade, o contrato de cooperação entre a XXX e a L – que o réu apelidou de atípico (art. 2º, da contestação), mas que nos parece estar próximo do contrato de agrupamento de interesse económico: art. 489º do Cód. Comercial - acabou por ser respeitado pela L neste caso particular nas suas relações internas com a XXX e os sócios desta. A L desconhecia, aliás, qualquer circunstancialismo prévio à transmissão da propriedade, uma vez que nada em contrário está provado. Portanto, só se a L já conhecesse os contornos das condições de alguma eventual liberalidade que o falecido quisesse fazer ao ora réu e soubesse também que a autora não deu consentimento à liberalidade, sabendo-a necessária, é que se podia talvez dizer que a L colaborou na invalidade. Mas nada disso está alegado e demonstrado nos autos.
Pelo contrário, o que se provou foi que a L se limitou a cumprir as instruções do falecido, sendo alheia aos antecedentes do contrato que realizou com o ora réu. Se nesses antecedentes houve lugar a alguma fonte de invalidade, a L é estranha em relação a ela, por a desconhecer, não ter participado nela e ter estado de boa fé (segundo os factos provados) no momento da transmissão da propriedade da coisa ao réu.
O que se passou a seguir ao contrato de doação subjacente à venda não foi mais do que algo que, autonomamente, se podia inserir no âmbito da actividade normal das empresas agrupadas “XXX” e L.
Isto é, a vendedora (L) fez o que lhe cumpria fazer nos termos convencionados, ao atender à indicação efectuada pelo falecido a respeito da pessoa a quem ela deveria transmitir a propriedade da fracção. A venda da fracção pela L ao réu aconteceu exactamente e como sempre, pelo menos para si - vendedora -, como tinha que acontecer no decurso da normal actividade do grupo.
Logo, o negócio da venda não podia ser anulado por não ter havido consentimento da autora. A questão do consentimento da autora ao abrigo do art. 1548º do CC seria aqui irrelevante.
O que quer dizer que a eventual anulação deste negócio não pode fundar-se em nenhum anterior contrato eventualmente viciado nos termos analisados (nem sequer por falta de consentimento para eles por parte da autora), mas sim, e apenas, em eventuais vícios intrínsecos à própria venda, de que é exemplo, a simulação também invocada pela autora na acção. Mas, isso é já próprio de outro fundamento invocado na petição inicial da acção e que, por ter sido rechaçado pela sentença recorrida e fazer parte do objecto do recurso, importará conhecer mais adiante.
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15 – A recorrente invocou depois uma matéria nova susceptível de conduzir à anulação do contrato e que não havia feito incluir na causa de pedir da acção: a invalidade do contrato de partilha ainda em vida por falta de consentimento de todos os interessados, nos termos do art. 1869º do CC.
Ora, se a acção se determina pela causa de pedir e pedido (princípio da iniciativa das partes e do dispositivo: art. 3º e 389º,nº1, al. c), do CPC) e se nem a petição, nem a réplica (onde foi feita uma ampliação da causa de pedir e do pedido), fundaram o pedido anulatório nesta causa aqui invocada pela primeira vez, não pode o tribunal de recurso fazer sobre ela qualquer pronúncia, até pela circunstância de a própria sentença não lhe ter feito a menor referência (art. 563º, nº2, do CPC).
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16 – Face ao que se deixou dito, o que importa neste momento é ver se o contrato de compra e venda em si mesmo enferma de algum vício que o torne inválido. E nesse âmbito já interessa apreciar o fundamento alegado pela autora: a simulação.
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17 – Da simulação
A autora, a este respeito, invocava na petição inicial ter sido o réu quem convenceu o pai a simular o negócio de compra e venda titulado pela escritura de 20/04/2004. O intuito desse negócio seria de extinguir a meação da A. naquele bem comum do casal, prejudicando-a na partilha. Razão por que seria nulo tal negócio.
O que se encobriria era uma doação (dissimulada na compra e venda), o que só não foi feito na forma legal para evitar o pagamento do imposto de selo de 5% relativo a transmissão de bens a título gratuito, o que acabou por prejudicar a RAEM.
A sentença considerou que o negócio entre a L e o réu não caracteriza nenhuma simulação, porque não foi mais do que a concretização do acordo de cooperação celebrado entre as duas empresas (XXX e L) e ao abrigo do qual os lucros podiam ser pagos em espécie.
Sim. É verdade e nós próprios já o concluímos acima. Esta fracção, no âmbito de tal acordo, iria ser “adjudicada” ao pai do réu ou a quem ele indicasse. Ora, feita a indicação do nome do filho, a L limitou-se a cumprir o acordo negocial prévio.
Mas, vejamos o que diz a lei sobre a simulação.
Os elementos da simulação são, face ao art. 233º do CC: a) a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; b) o acordo simulatório; e c) o intuito de enganar terceiros.
São requisitos de verificação cumulativa, que devem ser alegados e provados pela parte que invoca a simulação ou dela pretende extrair efeitos, face ao art. 335º, nº 1, do C.C. (Quanto ao sentido da necessidade da prova, ver na jurisprudência local, o Ac. TSI, de 12/01/2012, Proc. nº 240/2010; e na jurisprudência comparada, o Ac. STJ, de 9/05/2002, Proc. nº 02B511; STJ, de 14/02/2008, Proc. nº 08B180).
Ou seja, a) declara-se uma coisa que se não quer declarar; b) essa declaração resulta de um acordo (conluio) entre os contratantes; c) esta declaração não é feita por mero gozo lúdico, por brincadeira ou até reserva mental ou com propósitos didácticos17, mas sim com intenção de enganar terceiros, de forma que estes fiquem a pensar que o negócio se realizou de acordo com a aparência, tomando esta, portanto, como se fosse a realidade dos factos.
Simulação é isso; e será absoluta se as partes fingem um acto que é totalmente aparente (não se quis encobrir nenhum outro) e que será relativa quando, sob a capa do negócio aparente, elas quiseram e fizeram realmente um outro. No primeiro caso, a nulidade impõe-se absolutamente; no segundo caso, o primeiro negócio (simulado) é nulo, enquanto o segundo (dissimulado) pode vir a ser válido mediante a verificação de certos condicionalismos, que aqui, por desnecessários, não importa estudar18.
A autora diz que, por detrás desse negócio de compra e venda o que se quis foi prejudicá-la.
Acontece que a intenção de prejudicar não faz parte da noção da simulação e não é necessária ao preenchimento da fatispecie19.
Todavia, mesmo sendo bastante para a integração do conceito de simulação a ideia de engano, nem por isso achamos que ela se possa dar por verificada na presente situação. E para isso, invocamos três razões:
Primeira razão: a L não colaborou com o réu, co-contratante, no sentido de enganar ninguém; não entrou em conluio com ele. Nenhum elemento dos autos o sugere, nem os factos provados o demonstram.
Segunda razão: o próprio réu não teve intervenção decisiva no sentido de enganar quem quer que fosse. Também sobre isso, nenhum elemento dos autos o sugere, nem os factos provados o demonstram.
Terceira razão: Sabemos, é certo, que a intenção do parceiro da L, o falecido marido da autora e pai do réu, não era vender a coisa ao filho, mas sim doar-lha (ver factos J), K) e resposta aos quesitos 5º e 7º da BI). Só que, quem interveio na escritura não foi o pai. Poderíamos estar eventualmente perante uma simulação se a L tivesse transmitido a propriedade da coisa para o falecido e este, posteriormente, e com intenção de enganar em conluio com o filho, a este tivesse declarado vendê-la, quando a intenção era doar-lha. Mas, aí a simulação só existiria, eventualmente, nesse hipotético segundo acto contratual de transmissão da propriedade (do pai para o filho).
Portanto, não podemos dizer que houve simulação pelas partes que intervieram no negócio de compra e venda.
A vontade real teria estado, como se disse, em momento anterior e ao qual a L era alheia. Contudo, para conduzir a invalidade a esse momento anterior, para lá do que já se disse mais atrás, seria necessário que, afinal de contas, alguém quisesse enganar alguém.
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17.1 - Ora, nem aí, se pode concluir que B queria enganar alguém no seio daquela família, em especial a autora:
– Se a intenção era compensar aquele filho pelo dinheiro disponibilizado aos irmãos (resposta aos quesitos 7º, 12º, 14º e 27º);
- Se a autora disso tinha conhecimento (resposta ao quesito 25º); e
- Se a autora deu o consentimento à transmissão da propriedade da fracção (resposta ao quesito 26º).
Quer dizer, não se pode afirmar (nem isso está provado), nem sequer inferir uma intenção de enganar a autora, tendo em conta que ela sabia do animus donandi do marido (e sócio na “XXX”) e ao qual deu prévio assentimento (independentemente de se saber se o deu pela forma correcta). Dito de outra maneira, não houve o propósito de enganar a autora, se ela inclusive, de tudo sabendo, a ele se mostrou favorável!
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17.2 - E mesmo que se pudesse concluir (mas não pode, porque não está provado que as partes contratantes, L e réu, tivessem simulado um negócio para dissimular outro: cfr. art. 240º, CC) que a vontade da L não era vender a fracção ao réu, mas pagar a B, da mesma maneira que a vontade do réu não era a de comprar, nem por isso haveríamos de estar perante uma simulação, uma vez que nem mesmo aí se teria provado o intuito de enganar a autora e/ou os restantes filhos. Por conseguinte, ainda que houvesse nessa situação hipotética uma divergência entre a vontade real e a declarada, faltaria ainda o terceiro requisito.
Ora, assim sendo, e uma vez que os requisitos da simulação são de verificação cumulativa, e se todos devem ser alegados e provados pela parte que a invoca ou dela pretende extrair efeitos 20(art. 335º, nº 1, do CC), a falta dessa intenção enganadora retira suporte ao fundamento utilizado na acção.
E acrescentamos: mesmo que o réu contratante comprador tivesse intenção de nada pagar (e soubesse que nada pagaria) pela coisa transmitida, significando isso que haveria uma divergência entre vontade e declaração, nem então se poderia falar em «acordo simulatório», porque faltaria ao caso o conluio da outra parte (L).
Por outro lado, porque também se não provou o nexo de causalidade entre o contrato de compra e venda e a vontade de fuga ao fisco - conforme alegado pela autora quanto ao pagamento do imposto de selo ao qual os contratantes teriam querido escapar - nem se demonstrou a intenção de enganar a autora, nem sequer a prejudicar, claudica indubitavelmente este fundamento anulatório.
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17.3 – A recorrente esgrime outro argumento: o de que o negócio dissimulado (doação), então seria nulo, nos termos do art. 233º do CC. A doação seria nula por não ter sido manifestada por forma autêntica a vontade de doar e de aceitar a doação, já que em vez disso, o que emerge da escritura é a vontade de celebrar um contrato oneroso.
Todavia, qualquer invocação do art. 233º do CC só poderia lograr algum êxito se as partes contratantes tiverem declarado um negócio, escondendo outro (simulação relativa) para o qual fosse necessária determinada forma.
Ora, isso não se provou, como já se disse e mais uma vez se repete: nem a L, nem o réu fizeram um acordo simulatório de venda, dissimulando uma doação. Ainda que o réu pudesse sabê-lo, desde que efectivamente o não soubesse a L, já a simulação cai por terra.
E mesmo que a L disso soubesse, nem por isso se poderia falar em simulação, uma vez que sempre faltaria a prova da intenção de enganar terceiros. E como vimos, os factos desmentem essa intenção.
Quando a recorrente apela ao art. 233º do CC, parece estar a esquecer que esse preceito – mesmo no que se refere à nulidade do contrato de doação, alegadamente dissimulado por falta de forma (nº2) – está a partir do pressuposto referido no nº1: “Quando sob o negócio simulado exista um outro…”. Efectivamente, o nº1 já está condicionado pela existência (provada) de um negócio simulado atrás do qual estivesse um outro (dissimulado) sujeito a forma legal.
Ora, as partes desse negócio de compra e venda não quiseram realizar outro. E isto basta para improceder esta alegação.
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18 – Da posse de má fé do réu
Do que se disse já, nenhum motivo existe para fazer proceder o fundamento da posse de má fé por parte do réu sobre a fracção. Efectivamente, não só a coisa adveio à sua titularidade através de um negócio válido, como ela se encontra registada a seu favor na Conservatória do Registo Predial. É uma posse titulada (art. 1183º, CC) e não há elementos para crer que, ao adquiri-la, o réu lesava direitos de outrem, sendo por isso de boa fé (art. 1184º, CC).
Sendo assim, o bem não pode ser retirado da sua propriedade, nem sequer da sua posse (que esta, não é, sequer, uma acção possessória (cfr. art. 1206º, nº2,CC).
E, de resto, a posse não podia ser restituída à autora, ou à herança, se a coisa nunca chegou a ser do de cujus, marido da autora, pai do réu e dos chamados.
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19 – Da presunção natural
Em capítulo próprio, a recorrente, através da transcrita epígrafe, vem chamar a atenção para o facto de não haver prova suficiente nos autos no sentido de que ela e os chamados deram o seu consentimento e que a sentença da 1ª instância apenas assim concluiu por um exercício de presunção natural baseado no art. 342º do CC. No entanto, no mesmo capítulo voltou a entrar na matéria do capítulo precedente do abuso do direito.
Assim, temos dúvidas em perceber se o que a recorrente pretende é insistir na inexistência do abuso ou se autonomamente vem alegar um fundamento novo concernente à prova.
Pois bem. No que se refere ao abuso, já nos pronunciámos; nada mais há a acrescentar.
Quanto ao outro aspecto, não se entende muito bem o alcance da invocação. Em todo o caso, se o objectivo é apelar a um erro de prova, já a matéria foi analisada acima. Se a intenção é dizer que a factualidade provada nas respostas aos arts. 25º e 27º não permitiria inferir (presumir naturalmente: art. 342º, CC) que a autora e os chamados sabiam da intenção de B em doar a fracção ao réu, então não cremos que a recorrente tenha razão.
A recorrente, com este fundamento, está a fazer um hábil exercício de interpretação, mas que não é relevante ao caso. Na realidade, o que interessa é saber se ela tinha conhecimento da ideia (“delineada”) de o seu marido transmitir a propriedade da fracção ao filho, ora réu (resposta ao quesito 14º), como forma de o compensar pelas liberalidades em dinheiro feitas anteriormente aos restantes irmãos (resposta ao quesito 27ª), e se, de tudo isso sabendo (resposta ao quesito 25º), acabou por dar o consentimento à transmissão da propriedade da loja ao filho (resposta ao quesito 26º).
Não vemos em que medida o tribunal a quo tenha feito uso da presunção natural, se os factos acima destacados foram adquiridos em sede de prova e no quadro da livre convicção do respectivo julgador, e que o TSI, por falta de melhores elementos, não consegue abalar. Ou seja, pouco interessa destacar a circunstância de naqueles artigos da base instrutória não se referir a intenção de doar por parte de B. Efectivamente nos arts. 11º, 12º, 14º, 25º, 26º e 27º não estão contidos expressamente os vocábulos “doar” ou ”doação”. Todavia, o “ambiente probatório” está orientado, todo ele, nesse sentido. Basta ver o que se dispõe nas respostas aos artigos. 5º, 7º, de onde se extrai a intenção de doar. Se é certo que na resposta ao quesito 14º o vocábulo “doação” não está presente, está pelo menos claramente vazada nela a noção de a transferência da propriedade ao réu ser para o compensar, tal como estava já explanado na resposta ao art. 7º (onde, sim, expressamente estava definida a razão da compensação).
Portanto, não cremos que esta alegação seja útil ou relevante.
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20 – Da anulação da cessão contratual
No pedido subsidiário em VI (cfr. ampliação requerida de fls. 146 e deferida a fls. 180vº) a autora tinha pedido que o “negócio da cessão da posição contratual do Lau …para o R. por falta de consentimento do cônjuge meeiro, bem como todos os actos que dela dependem…”.
Mas, a este fundamento alegatório já acima demos a solução. Com efeito, já vimos que o que se passou nas relações internas desta família foi uma doação, para o que já encontramos a devida sanção.
Em nossa opinião, o caso não traduz uma verdadeira cessão da posição contratual. Com efeito, o sócio da empresa XXX, de nome B, não quis transmitir a sua posição contratual no seio da sociedade no quadro da relação que a unia à L para o filho C. O que ele quis foi ceder um direito de aquisição que detinha sobre a L - no âmbito do “grupo” de empresas criadas com a finalidade de construção e venda de fracções imobiliárias – crédito que lhe faria assumir a titularidade de uma fracção comercial (vulgo “loja”) e que, por via dessa intenção, ele quis transmitir para o filho.
Ora, sendo isto assim, repetimos, não estamos na presença do instituto da cessão da posição contratual a que se refere o art. 418º do CC, improcedendo assim as razões desta alegação referente ao pedido VI.
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21 – Da colação
No pedido subsidiário em V e VII (fls. 146) a autora pretendia que fosse declarado que a fracção (pedido V) ou o direito de adquirir a fracção (pedido VII) estão sujeitos a colação, o que determinaria a imputação do seu valor na quota hereditária do Réu, C, para efeito de conferência de acordo com o valor que o mesmo teria à data da abertura da sucessão.
A sentença julgou improcedentes estes pedidos com fundamento na circunstância de o objecto de doação não ser a própria fracção, mas o seu direito de aquisição. Além disso, também não procederiam pelo facto de não haver elementos nos autos de que o réu concorreu ou concorrerá à sucessão do pai.
A recorrente insurge-se contra tal decisão e o réu recorrido não lhe fez qualquer referência nas suas alegações de resposta ao recurso.
Ora bem. De acordo com o art. 1945º, nº1, do CC «Os descendentes e o cônjuge sobrevivo que pretendam entrar na sucessão, respectivamente, do ascendente e do cônjuge devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados pelo falecido: esta restituição tem o nome de colação».
Por outro lado, «estão sujeitos à colação os descendentes e o cônjuge que eram à data da doação presuntivos herdeiros legitimários do doador» (art. 1946º).
De acordo com o art. 1947º do mesmo Código «A obrigação de conferir recai sobre o donatário, se vier a suceder ao doador, ou sobre os seus representantes, havendo-os, ainda que estes não hajam tirado benefício da liberalidade».
Segundo o art. 1949º, nº1 «A colação faz-se pela imputação do valor da doação ou da importância das despesas na quota hereditária, ou pela restituição dos próprios bens doados, se houver acordo de todos os herdeiros».
E de acordo com o art. 1950º, nº1, «Na determinação do valor dos bens doados atender-se-á, sem prejuízo do disposto no art. 1956º, ao estado dos bens à data da abertura da sucessão».
Daqui emerge a seguinte conclusão:
O réu, presuntivo herdeiro legitimário do doador, tem que restituir à massa da herança deste o bem que lhe tenha sido doado, pelo valor que for determinada segundo o estado em que se encontrava à data da abertura da sucessão.
Ou seja, o bem doado deve ser imputado na legítima do herdeiro e não na quota disponível do doador, e isto para que se não criem desigualdades entre herdeiros. Tal só não é assim quando a doação atribuir ao donatário alguma prevalência quantitativa, mostrando querer beneficiá-lo em relação aos demais descendentes seus21, o que sucede, por exemplo, quando a doação for feita por conta da quota disponível ou quando tiver havido, expressa ou tacitamente (mas neste caso, de tal modo que ela se infira inequivocamente), dispensa de colação, nos termos do art. 1954º do CC.
Ora, na hipótese sub judice, não há a mais pequena dúvida de que o falecido doador não quis beneficiar ninguém: a doação tinha, aliás, o propósito de igualar as posições hereditárias dos herdeiros descendentes, ao querer fazer com o seu gesto uma compensação pelo dinheiro que havia disponibilizado e entregue aos irmãos do réu.
Sendo assim, terá que haver lugar à colação.
E se a colação não puder ser feita com referência ao bem (uma vez que a doação não foi directa, mas mediata ou indirecta através do direito à coisa), ao menos é possível com referência ao direito de aquisição, como já acima foi dito. Nesse aspecto, a sentença pecou por não ter atentado nesta diferenciação: havia dois pedidos, um relativo à coisa, outro relativo ao direito a ela. No entanto, apenas considerou o primeiro deles.
E terá que haver lugar à colação, ainda, em virtude de o segundo argumento utilizado na sentença também não proceder.
Efectivamente, os dados nos autos mostram que o réu é herdeiro legitimário, tal como de resto ele mesmo se considerou ser na contestação (art. 50º). Aliás, a forma como foi feita a impugnação da matéria referente aos pedidos (V) e (VI) mostra que ele quer entrar ou já entrou na sucessão do pai, o que aliás está em consonância com o modo como se manifestou nos arts. 12º, 87º, 88º e 90º da peça contestatória. O próprio Proc. nº CV3-05-0056-CIV, aberto por óbito de B, mostra que ele, réu, é um dos sucessores e interessados na herança.
E se outra matéria não fosse possível convocar, então bastaria a da resposta ao art. 2º da BI onde claramente se extrai que «Por escritura de 3 de Agosto de 2004, a Autora, o Réu, D, I e J, habilitaram-se com seus únicos e universais herdeiros de B».
Portanto, nesta parte, o recurso merece provir.
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22 – Da litigância de má fé.
A sentença condenou a autora por litigância de má fé, essencialmente por ter sido dado por provado o consentimento à transmissão da propriedade da fracção. Consentimento que ela negava na petição inicial e que, precisamente com base na sua falta, a levou a peticionar a nulidade e anulação da transmissão.
A autora, inconformada, acha que: (i) não se provou ter obtido conhecimento dos termos e condições em que o consentimento foi prestado; (ii) que se não provou ter tido conhecimento dos actos que levaram à aquisição do imóvel por parte do réu; (iii) que se não provou que a autora teve conhecimento da doação ao réu do direito à aquisição (o que só por presunção o tribunal a quo teria alcançado); (iv) e que a falta de prova dos elementos constitutivos do direito não pode ser revertida contra o alegante em termos de penalização através de uma condenação por litigância de má fé.
Não concordamos com a recorrente. Todo o esforço por si desenvolvido ao longo de todo o seu articulado alegatório – e não apenas para esta questão específica – denota engenho e muito labor. No entanto, é a diligência própria de quem quer extrair conclusões que nem a muito custo se podem aceitar.
Com efeito, nenhum dos argumentos procede. Não foi perguntado se a autora conhecia os termos e condições do consentimento. Apenas se quis saber se ela deu o consentimento e tal foi perguntado porque ela, autora, o tinha negado. Era um facto pessoal que não podia desconhecer, muito menos negar.
Não interessava saber se a autora deveria ter conhecimento dos actos que levaram à aquisição do imóvel pelo réu. Isto é uma questão menor que não interfere com a questão central que estava em causa.
Da mesma maneira, desviar a ideia do consentimento à transmissão da propriedade para fazer sobressair a tónica de que a autora não chegou a dar consentimento à doação, por tal não estar adquirido nos autos, é tentar desviar o problema, como se fosse diferente a solução em caso de prova de que o consentimento fosse dado para a doação. O que se joga aqui, para efeito da litigância, não é o modo como a coisa foi parar à titularidade do réu, mas sim a autorização à sua transmissão para a esfera do réu.
Ora, sendo assim, não está simplesmente em causa a falta de prova como a autora diz; está sim, a prova do contrário do que ela chegara a negar quanto ao consentimento.
E isso, para além do que já se disse em relação ao abuso do direito, também corresponde manifestamente a utilizar o processo como tentativa de alcançar uma decisão à custa da omissão de factos relevantes (art. 585º, nº2, al. b), do CPC).
Andou bem, pois, a sentença recorrida quanto a este aspecto.
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23 - Do 3º Recurso da autora (fls. 820)
Lembrando o que estava em causa, importa dizer que o réu C, após a sua resposta alegatória de fls. 727 e sgs. ao recurso apresentado pela autora da acção, veio a fls. 764 requerer a junção de uma certidão de documentos.
A autora, notificada de tal requerimento, veio aos autos opor-se à sua junção ao processo (fls. 794 e 795).
Por despacho de fls. 797 e vº, porém, o juiz do processo ordenou o desentranhamento dos referidos documentos e a sua restituição ao apresentante, embora permitindo uma cópia no respectivo lugar.
A autora, notificada deste despacho, veio pela peça de fls. 802-803 ou 804 e vº discordar que possa ficar nos autos a cópia dos documentos que o tribunal tinha mandado desentranhar e, por isso, requerer que ela (cópia) não fique no processo.
Este requerimento mereceu o despacho de fls. 813:
“Fls. 804 e sgs.
Os documentos desentranhados jamais podem ser valorizados no âmbito dos presentes autos e a sua cópia está aqui só para referência.
Assim, indefere-se o requerimento do recorrente.
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Remeta os autos ao Venerando TSI ”.
Não tem razão a recorrente.
Antes de mais, porque aquilo que ela pretendeu com o requerimento de fls. 804, e que confluiu no despacho em crise, fora já objecto de decisão anterior (fls. 797), da qual não foi interposto recurso. Se a autora discordava da decisão então tomada, deveria censurá-la na ocasião pelo meio impugnatório próprio, e não vir aos autos reeditar uma posição idêntica à anterior de fls. 794, no que parecer ser intenção de ressuscitar uma nova decisão só para agora a poder atacar. Portanto, estando a questão decidida definitivamente, a reiteração da pretensão não pode ter o condão de reabrir a possibilidade de nova impugnação.
Em segundo lugar, sendo a intenção da recorrente imputar àquela decisão a nulidade do art. 147º, nº1 do CPC, ao pretender ver na atitude judicial a prática de um acto que a lei não admite, somos a entender que ela não ocorre. Na verdade, o próprio magistrado judicial assegurou que a cópia seria apenas para mera referência, dando clara nota expressa de que em caso nenhum ela seria utilizada para o exame e decisão da causa.
Fez o tribunal, pois, aquilo que não é raro acontecer. No caso em apreço, a cópia que substituiu os documentos mandados desentranhar serviria apenas propósitos de mera prudência ou cautela, não intuitos instrutórios que pudessem vir a influir no exame e decisão da causa. Aliás, sendo tais documentos apresentados após a decisão da 1ª instância, já na fase das alegações, não estaria o tribunal “ad quem” inibido de autorizar ou recusar a sua junção, face ao disposto no art. 619º, nº1, al. d), do CPC. Ora, a prova de que não exercem influência do exame da causa está no facto deste tribunal de recurso não os ter tomado em consideração, o que desde logo confirma o pressuposto que esteve na base do dito despacho.
Sendo assim, não existe a nulidade invocada, nem estamos perante a violação do art. 468º, nº1, do CPC.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em:
1 - Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pela autora a fls. 344.
Custas pela recorrente.
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2 - Conceder parcial provimento ao recurso da sentença interposto pela autora e, consequentemente:
a) - Revogam a sentença na parte em que julgou improcedente o pedido em (vii); e, consequentemente,
b) - Acordam em declarar que o direito de adquirir a fracção designada esteja sujeito à colação em valor (III-21, supra).
3 - Quanto ao mais, incluindo sobre a litigância de má fé, negam provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas por A e R em ambas as instâncias, na proporção de 4/5 para a A e 1/5 para o R.
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4 - Negar provimento ao recurso interposto pela autora do despacho de fls. 813.
Custas pela autora.
TSI, 22 de Janeiro de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Artigo 279.ºdo CCivil.
2 Subjacente à carta de fls. 42.
3 Jura novit curia: o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - art.º 567.º do CPC.
4 Ac. STJ, de 14/05/2011, Proc. nº 3222/05.
5 Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, III, 3.ª edição, 2001, p. 111.
6 Ac. STJ, de 16/05/2002, Proc. nº 02B1129; 19/01/89, Proc. nº 076902, entre outros.
7 Neste sentido, e numa situação de facto com semelhanças interessantes, ver Ac. da RP, de 31/03/2005, Proc. nº 0531136, in CJ, 2005, II, pág. 169.
8 Em termos de direito comparado, ver, neste sentido, v.g., Ac. do Tribunal Constitucional de Portugal, de 8/05/1996, Proc. nº 216/91, a propósito do art. 1682º-A, do CC português, congénere do art. 1548º do CC de Macau, mas cuja dificuldade de interpretação não tem lugar no âmbito do preceito do Código de Macau, dada a sua clareza com a remissão para o disposto na lei comercial.
9 Pires de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, 3ª ed., Vol. II, pág.263.
10 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., p. 299).
11 Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, 1983, pág. 55.
12 Ac. STJ de 4.4.2002, Proc. 524/02, da 7ª secção.
13 Menezes Cordeiro, “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina (2ª Reimpressão), 2001, pág. 810-811.
14 Ac. TSI, de 20/02/2014, Proc. nº 693/2013; No direito comparado, STJ, de 16/11/2011, Proc. nº 203/2008.
15 Ac. TSI, de 29/05/2014, Proc. nº 98/2014.
16 Ac. TSI, de 29/05/2014, Proc. nº 98/2014.
17 Isso representará aquilo a que se chama “declaração não feita a sério”: apud Luis Cabral de Moncada, in Lições de Direito Civil, 4ª ed., pág. 597. e que também pode caracterizar a também designada “simulação inocente” (Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág.472).
18 Autor e ob. cits., pag. 605 e sgs.
19 Neste sentido, Mário Brito, Código Civil anotado, I, pág. 284; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., pág. 683. No sentido de que o engano, não necessariamente o prejuízo, serve para caracterizar a “simulação inocente”, além do autor citado Pedro Pais de Vasconcelos (ob. e loc. cits), ver também, por exemplo, Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág.472.
20 Ac. TSI, de 13/02/2014, Proc. nº 77/2009. Quanto ao sentido da necessidade da prova, ver na jurisprudência local, o Ac. TSI, de 12/01/2012, Proc. nº 240/2010; na jurisprudência comparada, o Ac. STJ, de 9/05/2002, Proc. nº 02B511; STJ, de 14/02/2008, Proc. nº 08B180.
21 Neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 3ª ed., II, pág. 353; Oliveira Ascensão, Sucessões, 1980, pág. 360.
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352/2014 1