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Processo nº 298/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo, a final, a ser condenado como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “homicídio qualificado” na forma tentada, p. e p. pelos art°s 21°, 67°, 128° e 129°, n.° 2, al. b) e g) do C.P.M., na pena de 13 anos de prisão, e 1 outro de “detenção de arma branca”, p. e p. pelo art. 262°, n.° 3 do mesmo Código Penal, na pena de 6 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 13 anos e 4 meses de prisão; (cfr., fls. 936 a 966, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para, em conclusões e em síntese, dizer que a decisão recorrida padecia do vício de “errada aplicação de direito” (no que toca a “qualificação jurídico-penal da sua conduta”) e “excesso de pena”; (cfr., fls. 981 a 985-v).

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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 987 a 989-v).

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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Mostra-se o recorrente inconformado com o teor do douto acórdão submetido a escrutínio, entendendo, por um lado, que o crime de detenção de arma proibida se encontra consumido pela tentativa de homicídio, tratando-se, pois de concurso aparente de infracções, pelo que não deveria aquele ser punido autonomamente, do mesmo passo que, de todo o modo, entende como excessivamente gravosa a pena concreta que lhe foi aplicada, almejando redução para prisão inferior a 10 anos.
Não vemos que lhe assista qualquer razão.
A problemática relativa ao concurso de crimes tem no n° 1 do art° 29°, C.P. a indicação do princípio geral, devendo o número de crimes determinar-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
A determinação dos casos de concurso aparente ou ideal, haverá que fazer-se, segundo teorias maioritárias, a que aderimos, segundo regras de especialidade, subsidariedade e consunção, (sendo a esta última que o recorrente apela), devendo, para efeitos de determinação dos crimes efectivamente cometidos, que lançar mão, como bem acentua o Exmo Colega junto do tribunal "a quo ", do critério do bem jurídico protegido pelas normas violadas.
O crime de detenção de arma proibida encontra-se consignado como crime de perigo abstracto, em que a lei previu o risco de uma lesão que coincide com a própria actividade proibida, ficando, pois, tal ilícito integrado, autonomamente, logo com a detenção, independentemente da relação específica e autónoma com cada uma das lesões que possam concretamente a vir a ser afectadas em crimes posteriores, de resultado, como é, no caso vertente, o de homicídio.
A utilização de arma, enquanto tal, não faz parte dos elementos do tipo de crime de homicídio, nem integra circunstância agravante que, por si, modifique a natureza do crime ou a moldura da pena.
A arma constitui tão apenas um instrumento material que, a par de outros, pode contribuir para a perpretação do crime de homicídio, como poderia ser um qualquer outro, com potencialidades para o efeito.
Daí que o caso presente se não afigure, em nosso critério, de concurso aparente, mas sim real, de infracções.
Depois, atentos os circunstancialismos apurados, o planeamento fundado em mesquinho sentimento de vingança, sem motivação, face à própria irmã, a forma cruel e desumana de perpetração dos factos, denotando, como se acentua no douto acórdão, "personalidade preversa e inadaptada", com "torpe encenção de que. se iria suicidar", as consequências extremamente dolorosas e gravosas para a vítima, resultante dos factos imputados e a moldura penal abstracta aplicável à situação, afigura-se-nos que a medida concreta das penas aplicadas, seja parcelares, seja em termos de cúmulo jurídico, se justifica, se apresenta justa e adequada e, portanto, a manter.
É o que se entende”; (cfr., fls. 1023 a 1024).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 950 a 959, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido dos autos recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “homicídio qualificado” na forma tentada, p. e p. pelos art°s 21°, 67°, 128° e 129°, n.° 2, al. b) e g) do C.P.M., na pena de 13 anos de prisão, e 1 outro de “detenção de arma branca”, p. e p. pelo art. 262°, n.° 3 do mesmo Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, fixando-se-lhe uma pena única de 13 anos e 4 meses de prisão.

E, como se deixou relatado, suscita o recorrente duas questões: uma, quanto à “qualificação jurídico-penal da sua conduta”, e a outra, quanto à “adequação da pena” aplicada.

–– Censura não merecendo – nem o recorrente impugnando – a decisão da matéria de facto, comecemos então pela primeira questão.

Pois bem, concretamente, a discordância do ora recorrente está na sua condenação em “concurso real”, considerando que devia ser apenas condenado pelo crime (tentado) de “homicídio qualificado” e já não pelo de “arma branca”.

Em suma, é de opinião que os crimes em questão estão numa relação de “concurso aparente”, sendo o de “detenção de arma branca” consumido pelo crime de “homicídio qualificado” (ainda que) na forma tentada.

Todavia, independentemente do demais, (e ainda que atenta a diversidade de “bens jurídicos” tutelados pelas normas jurídicas em questão se nos mostre de considerar mais adequado o entendimento de se estar perante um “concurso real”, admitindo-se, porém que sobre a questão outras posições possam existir, - sobre a matéria, cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 11.09.2003, Proc. n.° 154/2003; 14.12.2004, Proc. n.° 307/2004; 21.11.2013, Proc. n.° 550/2013; e do S.T.J. de 14.12.2006, P.06P4344; de 27.05.2010, P.474/09; de 31.03.2011, P.361/10; de 30.10.2014, P.32/13 e de 15.01.2015, P.95/14, estes em www.dgsi.pt), no caso, uma (relevante) particularidade existe: é que o “homicídio” tentado em questão foi, (por assim dizer, “duplamente”) “qualificado” nos termos das alíneas b) e g) do n.° 2 do art. 129° do C.P.M., onde se estatui que:

“1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão de 15 a 25 anos.
2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
b) Empregar tortura ou praticar acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
(…)
g) Agir com frieza de ânimo ou com reflexão sobre os meios empregados, ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas;
(…)”.

E, como bem se vê, em causa não está a (mera) detenção ou utilização de (qualquer) “arma branca”, sendo (antes) de notar que a factualidade dada como provada é bem elucidativa da efectiva explicitação e verificação das (duas) “circunstâncias qualificativas em questão”: (nomeadamente) o grau de parentesco existente entre o arguido e a vítima (que são irmãos), o planeamento, em pormenor, do crime pelo arguido dias antes da sua execução, (persistindo na ideia de o executar por mais de 24 horas), decidindo levar a cabo o crime – com “requisitos de malvadez” – com a agressão de uma “faca de fruta” depois do derramamento sobre a cabeça e corpo da vítima de produto altamente corrosivo para que fosse (ou não deixasse de ser) “doloroso” para a vítima, programando a sua execução ao ponto de montar uma “cilada” e desta forma criando a oportunidade para o efeito através de um simulado “pedido de ajuda” à vítima que (de boa fé) acedeu e que acabou por vir procurar o arguido, assim se expondo aos seus intentos, que levou a cabo, e que em resultado das lesões que sofreu não veio a falecer por motivos completamente alheios à vontade do arguido, (e quiçá, apenas medicamente explicáveis).

Perante o que se expôs, inquestionável se nos apresenta a decidida “qualificação” do homicídio (ainda que) na forma tentada nos exactos termos em que se decidiu, (atenta a “crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”, a “reflexão sobre os meios empregues” e a “persistência na intenção de matar por mais de 24 horas”), motivos (também) não havendo para dar sem efeito a condenação do arguido pela sua prática em “concurso real” com um crime de “detenção e uso de arma branca” p. e p. pelo art. 262°, n.° 3 do C.P.M., pois que provado está que se muniu, deteve e utilizou – para além do “produto corrosivo” – uma “faca de fruta” com 20.5cm de comprimento e 9.5cm de lâmina, com a qual vibrou vários golpes – pelo menos 3 – nas costas da vítima, (após lhe ter deitado o líquido corrosivo pela cabeça abaixo, e quando esta, cheia de dores, tentava fugir e pedir socorro), evidente sendo desta forma que verificados estão (igualmente) todos os elementos típicos objectivos e subjectivos de tal(is) crime(s).

–– Aqui chegados, e motivos não se vislumbrando para se alterar a “qualificação jurídico-penal” operada pelo Colectivo a quo, vejamos da “adequação da(s) pena(s)”.

Pois bem, ao crime de “homicídio qualificado (na forma tentada)” cabe a pena de 3 anos a 16 anos e 8 meses de prisão, (cfr. art°s 128°, 129°, e 21° e 67° do C.P.M., notando-se que, certamente, por lapso manifesto de escrita no Acórdão recorrido e em sede de fundamentação se escreveu “16 anos e 6 meses”, o que desde já, atento o art. 361° do C.P.P.M., se rectifica, nada mais se afigurando de consignar uma vez que o lapso foi favorável ao arguido e apenas este recorreu), sendo o crime de “arma proibida” punido com a pena de prisão até 2 anos.

E, ponderando no estatuído nos art°s 40° e 65° do C.P.M., (quanto aos “fins” e “critérios para a determinação da pena”), na factualidade dada como provada, (e atrás, nos seus aspectos mais relevantes sumariamente retratada), que demonstram claramente o elevado grau de culpa na modalidade de “dolo directo” e muito intenso, atentas as exigências de prevenção criminal geral e especial, (tendo em conta a “natureza e bens jurídicos” pelos crimes tutelados assim como a mal formada personalidade do agente), a elevada ilicitude do facto, o seu modo de execução, (a revelar traição, surpresa e ingratidão), as suas consequências – “lesões graves” na ofendida, que lhe causaram dores (certamente muito) intensas e grandes sofrimentos, padecendo de mais de 50% de incapacidade permanente, com perda de visão do olho direito, apresentando diversas e perfeitamente visíveis cicatrizes (permanentes) na cara, mãos e corpo, que a fazem estar constantemente deprimida, com medo de sair para a rua, sentindo-se descriminada, e (abreviando), considerando que a “imagem global do facto” é de extrema gravidade e repugnância, tudo a suscitar justificada repulsa social e punição adequada – à enorme culpa demonstrada – capaz de dissuadir (e convencer bem como a actuar positivamente sobre a sociedade), entende-se que a ditada “reacção penal” não merece censura, sendo pois de confirmar, tanto no que diz respeito às penas parcelares como em relação à pena única, resultante do cúmulo jurídico daquelas operado, que, aliás, se apresenta em total sintonia e respeito ao estatuído no art. 71° do C.P.M..

Dest’arte, e tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Em face do exposto, e em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$1.800,00.

Macau, aos 30 de Abril de 2015
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 298/2015 Pág. 12

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