Processo nº 218/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. O Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra A, com os restantes elementos dos autos, imputando-lhe a prática como autor material e em concurso real de 1 crime de “violação de domicílio” e 1 outro de “dano”, p. e p. respectivamente pelos art°s 184° n.° 1, e 206° n.° 1 do C.P.M.; (cfr., fls. 60 a 61, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Realizado o julgamento, proferiu o Colectivo do T.J.B. Acórdão decidindo absolver o arguido do imputado crime de “violação ao domicílio” e condenando-o como autor da prática de 1 crime de “dano”, na pena de 7 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos; (cfr., fls. 116 a 120).
*
Do assim decidido, veio o Ministério Público recorrer.
Na sua motivação de recurso e suas conclusões, assaca ao T.J.B. a “violação do art. 185° do C.P.M.”; (cfr., fls. 123 a 125-v).
*
Respondendo, pugna o arguido pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 127 a 129-v).
*
Admitido o recurso, e remetidos os autos a este T.S.I. foram os mesmos com vista ao Ilustre Procurador Adjunto que juntou o seguinte douto Parecer:
“Cremos assistir razão a Exma Colega recorrente.
Aceitando-se que a factualidade comprovada não seja passível de preencher, na íntegra, o tipo de ilícito por que o arguido vinha acusado _ are 184°, C.P. "violação de comicilio" - a verdade é que essa mesma factualidade, sem qualquer alteração, substancial ou não substancial, se revela perfeitamente adequada ao preenchimento do ilícito contemplado no art° 185° do mesmo diploma legal, "introdução em lugar vedado ao público", ali onde se expressa a entrada, sem consentimento ou autorização, " ... em qualquer outro lugar vedado e não acessível ao público ".
E, não se esgrima, como o faz o recorrido, para a convolação pretendida, com a necessidade da comunicação respectiva, nos termos do n° 1 do art° 339°, CPP : sabendo-se que em Portugal ( n° 3 do art° 358°, CPP, aditado pela Lei 59/98) se faz corresponder o regime jurídico da alteração da qualificação jurídica dos factos ao da alteração não substancial dos mesmos, com as necessárias comunicações e diligências, a verdade é que se não divisa no ordenamento jurídico de Macau normativo similar, razão por que se não toparia qualquer atropelo legal com a convolação proposta.
Donde, entender-se merecer provimento o presente recurso, havendo que proceder-se à condenação do recorrido pelo tipo de ilícito mencionado”; (cfr., fls. 173 a 174).
*
Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 117 a 118, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o Ministério Público recorrer do segmento decisório do Acórdão do T.J.B. com o qual se absolveu o arguido A da imputada prática de 1 crime de “violação de domicílio”, p. e p. pelo art. 184° do C.P.M..
Entende que se incorreu em errada aplicação do direito por “violação do art. 185° do mesmo C.P.M.”.
Vejamos.
Certo sendo que não impugna o Recorrente a “decisão da matéria de facto”, sendo também nós de opinião que nenhuma censura merece a mesma, e que, por isso, se deve manter na íntegra, vale a pena (tentar) concretizar a “questão” a decidir.
É a seguinte: o Tribunal a quo deu como provada toda a matéria de facto pelo Ministério Público levada à acusação que oportunamente deduziu contra o arguido dos autos. Porém, posteriormente, em sede do seu “enquadramento jurídico-penal”, decidiu que a mesma não integrava a prática pelo arguido do imputado crime de “violação de domicílio”, p. e p. pelo art. 184° do C.P.M., (como acusado estava).
Daí, a (consequente) decisão de absolvição do arguido quanto a tal crime.
No presente recurso, diz o Recorrente que embora considere correcta (e concorde com) a mencionada decisão de absolvição do T.J.B., já que, também em sua opinião, os factos provados não permitem a qualificação como a prática de 1 crime de “violação de domicílio”, entende porém que (mesmo assim) devia o Colectivo condenar o arguido pelo crime de “introdução em lugar vedado ao público”, p. e p. pelo art. 185° do mesmo C.P.M..
E, nesta conformidade, por não o ter feito, é de opinião incorreu na assacada “violação do art. 185° do C.P.M.”.
Ora, não cremos que se possa acolher este ponto de vista.
Vejamos, afigurando-se-nos úteis as considerações que se passam a consignar.
Os princípios fundamentais do processo penal têm sido incluídos em grupos, consoante respeitem à “promoção processual”, à “prossecução processual”, à “prova” ou à “forma’.
Nos princípios respeitantes à “promoção processual” incluem-se os da “oficialidade”, da “legalidade” e da “acusação”.
O “princípio da oficialidade” significa que o impulso para investigar a prática das infracções penais e a decisão de deduzir ou não acusação cabe a uma entidade pública: o Ministério Público.
A explicação reside essencialmente no facto de o Direito Penal constituir um ramo de direito cujo objectivo é a protecção dos bens fundamentais da comunidade, só sendo criminalizada a violação de bens ou interesses dignos de protecção especial.
Os poderes do Ministério Público são amplos, competindo-lhe:
- receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes;
- promover o processo penal, e, nesta conformidade,
- deduzir acusação ou arquivar o inquérito.
Este princípio, como é sabido, não funciona nos crimes “semi-públicos” nem nos “crimes particulares”: nos primeiros, o Ministério Público só pode promover o processo se o ofendido ou outras pessoas em seu lugar exercerem o direito de queixa e enquanto não desistirem; nos segundos, o Ministério Público não pode abrir o inquérito sem que previamente tenha havido queixa e constituição de assistente, não pode acusar sem que o titular do direito de queixa o faça antes nem pode continuar o processo se aquele desistir.
O “princípio da legalidade (da iniciativa e prossecução processual)” significa que o Ministério Público está vinculado ao impulso processual, não sendo livre de abrir inquérito ou não; (deve abrir inquérito, sempre que tenha notícia de um crime).
O princípio da legalidade, assim entendido, significa que o Ministério Público não deve actuar no exercício das suas funções movido por critérios de oportunidade e conveniência.
Este princípio, como parece evidente, está ligado ao princípio da igualdade: todos os autores de factos ilícitos devem ser tratados por igual sem discriminações de qualquer tipo.
Por sua vez, (e para o nosso caso, com mais relevo), o “princípio da acusação” significa que a jurisdição – os Tribunais – não intervém oficiosamente, sem que a sua intervenção seja pedida, e que não se pode alargar o poder de julgar a pessoas e factos distintos daqueles que são objecto da acusação.
Encontrando-se o Tribunal limitado pelo tema da acusação, sendo esse o “objecto do processo”, o arguido sabe que não pode ser proferida uma decisão para além dele, ficando garantido de que não será surpreendido com o alargamento da matéria e de que só terá de se defender da matéria constante da acusação: o objecto do processo mantém-se o mesmo desde a acusação até ao trânsito em julgado da decisão, (princípio da identidade), devendo ser conhecido e julgado na sua totalidade, (princípio da unidade ou indivisibilidade), e, uma vez julgado, deve considerar-se decidido, (princípio da consunção).
A justificação para a vinculação do Tribunal ao tema da acusação reside na protecção do arguido, e em se lhe assegurar um “efectivo direito de defesa”.
Todavia, este princípio da acusação funciona também como “garantia da imparcialidade do tribunal”, não podendo ser-lhe atribuída “responsabilidade” se a absolvição resultar de deficiências da acusação, ou a condenação, da má preparação da defesa.
Aqui chegados, e feitos estes considerandos, é momento de voltar ao caso dos autos.
Como se viu, in casu, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de:
- 1 crime de “violação de domicílio”, e
- 1 crime de “dano”, (que agora não está em causa).
E, embora se tenha (essencialmente) provado a matéria de facto constante da acusação, o certo é que, esta, por não integrar a prática de 1 crime de “violação ao domicílio”, levou a que o Tribunal decidisse pela absolvição do arguido em relação a tal crime, o que, refira-se, até mereceu a expressa concordância do Recorrente.
E poderá agora, em sede de recurso, pretender o Ministério Público que o Tribunal tivesse condenado o arguido por outro crime, o de “introdução em lugar vedado ao público”, p. e p. pelo art. 185° do C.P.M., pelo qual não estava acusado?
Como se deixou adiantado – e ainda que não se entenda tratar-se de uma “questão nova”, em relação à qual não é o recurso o meio processualmente adequado para sobre ela decidir – de sentido negativo se nos apresenta que deve ser a resposta.
Desde já, ocorre-nos aqui referir que o próprio Recorrente expressa “concordância” com a decisão de absolvição proferida, o que poderia (eventualmente) levar a que se questionasse da sua “legitimidade” e “interesse em agir”.
Contudo, independentemente de tal “aspecto”, e numa tentativa de dar preferência ao conhecimento do “mérito da questão”, continuemos.
Antes de mais, não se nega – e aí acompanhamos o entendimento do Ilustre Procurador Adjunto no sentido de – que a pretendida “condenação”, (a ser proferida), não implicaria “alteração da matéria de facto”, com “introdução de factos novos”, constituindo, apenas, uma diferente “qualificação dos (mesmos) factos”.
Porém, no caso, não nos parece que se possa reconhecer razão ao Exmo. Recorrente, censurando-se o Mmo Juiz a quo por uma (eventual) “omissão” quanto ao que ao próprio Ministério Público, no âmbito das suas funções (próprias e específicas), competia assegurar.
Não se pode olvidar que em conformidade com o estatuído no art. 265° do C.P.P.M. quanto ao “conteúdo da acusação”, nela deve constar, sob pena de nulidade, não só a “narração dos factos” (e…) mas também a “indicação das disposições legais aplicáveis”; (cfr., n.° 3).
E, no caso dos autos, tivesse o Ministério Público requerido a (agora pretendida) “alteração da qualificação jurídico-penal da matéria de facto” em sede da audiência de julgamento que decorreu no T.J.B. e, quiçá, razão nem havia para o presente recurso, pois que, aí, perante este (oportuno) impulso processual, (e obviamente, observado o contraditório), ao Tribunal cabia então o dever de se pronunciar sobre o promovido, incorrendo em omissão de pronúncia se o não fizesse.
Contudo, como se viu, não foi o que sucedeu: com efeito, não se suscitou (ou utilizou) o “mecanismo do art. 339° do C.P.P.M.” que, embora previsto para uma “alteração não substancial dos factos descritos na acusação”, seria para a situação aplicável (por analogia).
E, dest’arte, há que considerar que o Tribunal não deixou de emitir pronúncia sobre (todo) o “objecto do processo”, decidindo a matéria de facto submetida a julgamento e aplicando o direito que lhe pareceu correcto, em relação à “matéria de facto” e “enquadramento jurídico-penal” efectuado na acusação deduzida.
É certo que – se lhe tivesse ocorrido esta possibilidade de condenação pelo crime do art. 185° do C.P.M., (que certamente não se verificou) – podia, (e por nós devia), por sua iniciativa, (“ex officio”), ter suscitado a questão da “diversa (alteração da) qualificação jurídica” da matéria constante da acusação, e asseguradas as formalidades processuais, (a observância do contraditório), emitir correspondente pronúncia.
Porém, o certo é que nada lhe tendo sido (oportunamente) requerido, não se vê como assacar-se agora “violação do art. 185°”, por não – omissão de – condenação do arguido como autor do crime p. e p. neste comando legal, sem que como tal estivesse acusado.
Como configurar-se a violação de uma “norma (incriminadora) substantiva” se nem sequer tinha sido chamado a se pronunciar sobre a mesma?
E, se eventualmente, outra fosse a hipoteticamente correcta solução, em causa não estando igualmente o art. 185°, mas um outro tipo de ilícito, v.g., o do seguinte art. 186°, (quanto à “devassa da vida privada”)?
Quid iuris?
Pois bem, sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, e atento aos atrás referenciados princípios respeitantes à “promoção processual”, apresenta-se-nos assim inexistente a assacada violação do art. 185° do C.P.M..
Dest’arte, improcede o recurso.
*
Uma última nota.
Tanto quanto resulta do que se deixou relatado, claro é que “accionado” podia ser o atrás referido art. 339° do C.P.P.M., fosse ele por impulso do Ministério Público ou pelo próprio Tribunal a título oficioso.
Porém, certo sendo que assim não sucedeu, e não vindo a “questão” colocada – apenas se alega que o Tribunal a quo devia ter condenado pelo crime do art. 185° do C.P.M., concluindo-se pela violação deste mesmo comando legal – e não constituindo a dita questão uma “nulidade insanável”, (cfr., art. 105° e 106° do C.P.P.M.), evidente se nos parece que sobre a mesma não cabe emitir pronúncia, afigurando-se-nos mesmo que, ao se fazer, estar-se-ia a tratar de questão – se não “nova” – “inexistente”.
Não se pode pois olvidar que o “Julgamento” tem três fases distintas: os “actos preliminares”, a “audiência” e a “sentença”; (cfr., Livro VII do C.P.P.M.). E sendo o presente recurso da “sentença”, (no caso, Acórdão), adequado não é que no mesmo se trate de um “incidente” próprio da audiência, para o qual tinha o Recorrente legitimidade para (oportunamente) promover o que por bem entendesse, (no sentido da sua verificação), nada justificando assim que este T.S.I., sem que a questão tenha sido colocada, (e como que em substituição), da mesma se venha a ocupar.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso.
Sem tributação, (por isenção do Recorrente).
Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.800,00.
Macau, aos 30 de Abril de 2015
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (sendo a qualificação jurídico-penal dos factos uma questão de conhecimento oficioso, afigura-se-me que o Ministério Público pode suscitar essa questão em sede do recurso ordinário interposto da decisão final da 1.ª Instância, em defesa da legalidade, daí que votei vencido o presente acórdão).
Proc. 218/2015 Pág. 16
Proc. 218/2015 Pág. 17