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Processo nº 478/2014
Data do Acórdão: 23ABR2015


Assuntos:

Intervenção acessória provocada


SUMÁRIO

Na matéria do incidente da Intervenção acessória provocada, decorre da conjugação dos normativos dos artºs 272º, 274º/4 e 282º, todos do CPC, que, não sendo titular de um interesse paralelo ao do réu da causa principal, o terceiro chamado tem o papel de mero auxiliar na defesa do réu e não pode ser condenado.

O que significa que na causa principal, não se discute a responsabilidade do terceiro chamado e este nunca pode ser condenado.

Pois o incidente visa apenas produzir um efeito reflexo de caso julgado relativamente à verificação de certos pressupostos do eventual direito de regresso.


O relator



Lai Kin Hong

Processo nº 478/2014


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção laboral registada sob o nº LB1-13-0022-LAC, que correm os seus termos no 1º Juízo Laboral do Tribunal Judicial de Base, em que são Autores os trabalhadores A e B e Ré entidade patronal C Construções e Fomento Predial Limitada, esta, na sua contestação, requereu a intervenção acessória provocada da RAEM.

Por despacho do Exmº Juiz titular do processo, foi liminarmente admitida a requerida intervenção acessória provocada pela Ré.

Citada a interveniente chamada RAEM, esta veio a contestar pugnando pela improcedência do incidente da intervenção acessória provocada e a sua absolvição da instância.

No saneador, o Tribunal a quo julgou improcedente o incidente e absolveu a RAEM da instância nos termos seguintes:

  Veio a Ré requerer a intervenção provocada da RAEM, com os fundamentos que melhor se colhem da sua contestação, cujo teor damos aqui por integralmente reproduzido.
  Chamada a intervir, de modo a que ficasse espelhada nos autos a relação material controvertida, a RAEM apresentou o seu articulado de fls. 245 e ss., cujo teor damos aqui por reproduzido.
  Apreciando.
  Tal como é configurada a relação material controvertida por parte dos Autores, dúvidas não há quanto à alegação da existência de um contrato de trabalho celebrado com a Ré, sendo, nessa medida, uma relação laboral estrita e típica de uma acção comum laboral, consubstanciando assim a sua exclusiva causa de pedir.
  É certo que os AA logo na petição inicial revelam ter conhecimento de vicissitudes de natureza administrativa (portanto a envolverem actos de administração por parte da RAEM em relação à Ré) que terão tido repercussões na sua relação laboral com a sua entidade patronal, o que, aliás, veio a ser suscitado por esta na sua contestação e levou ao chamamento da RAEM.
  Independentemente da questão relativa ao eventual direito de regresso que a Ré possa ter relativamente à RAEM por força da sua eventual condenação nos presentes autos - cuja articulação factual é, no entanto, muito incipiente no seu articulado - entendemos que a apreciação da responsabilidade desta, dado que a sua actuação foi feita nas vestes do seu poder de autoridade - ius imperii - típico, através da prática de actos de "governação", cuja legitimidade/adequação não pode ser apreciada nos presentes autos (nem sequer há notícia que tenham sido postos em causa no tribunal materialmente competente, antes dando notícia a Ré de negociações e da disponibilidade da RAEM para assumir os prejuízos causados). Concluímos assim que a sua permanência em juízo seria, assim, absolutamente inócua e em nada contribuiria para uma melhor conformação ''justa'' do litígio, dado que nos presentes autos apenas cabe o conhecimento da relação laboral estabelecida directamente entre as partes.
  Nestes termos, e sem necessidade de mais desenvolvimentos, entende-se por adequada a absolvição da instância da interveniente RAEM, por não estarem reunidos os pressupostos legais para a sua permanência em juízo.
Custas do incidente pela Ré.

Não se conformou a Ré e interpôs recurso, concluindo e pedindo que :

I
  Conforme o admitem ambas as partes, em 23/05/2008, a DSSOPT ordenou a suspensão da obra onde os Autores trabalhavam e cujo dono era a ora Recorrente, que também era a sua entidade patronal.
II
  Invocou a recorrente, na sua contestação, que foi a referida ordem de suspensão da obra que provocou, de forma directa e necessária, a suspensão dos contratos de trabalho celebrados entre ela e os AA.
III
  Invocou igualmente que a RAEM se responsabilizou pelo ressarcimento de todos os prejuízos emergentes daquela ordem de suspensão, incluindo eventuais encargos com indemnizações a serem pagas pela recorrente aos seus trabalhadores, tendo, de resto, junto pertinente documentação em suporte destes factos.
IV
  Ressalvada diversa opinião, a natureza da relação jurídica existente entre a recorrente e a RAEM delineada nos presentes autos, nomeadamente, se se trata de uma relação administrativa, para a qual teria competência exclusiva o Tribunal Administrativo, não releva para a conformação dos elementos subjectivos da presente instância, i. é, dos sujeitos processuais.
V
  O efeito do chamamento não é o de julgar a relação conexa (RAEM-Recorrente) e condenar o chamado em caso de procedência da acção mas apenas estender-lhe a eficácia da sentença a proferir.
VI
  Ao admitir o chamamento o Tribunal não vai, por isso, ter que julgar a relação jurídica, alegadamente administrativa, existente entre chamante e chamada.
VII
  Por outro lado, in casu, salvo melhor opinião, a promessa de pagamento das indemnizações por parte da RAEM reveste o carácter de uma promessa administrativa que consubstancia uma promessa de liberação.
VIII
  Com efeito, existe a promessa administrativa de a RAEM se obrigar perante a Recorrente a desonerá-la de todas as indemnizações em que esta incorrer emergentes da ordem de suspensão da obra em causa, cumprindo-as em seu lugar, ou seja, efectuando-as, em vez da Recorrente.
IX
  Esta promessa encerra uma auto-vinculação quanto à prática de um acto futuro, antecipando a prática do acto administrativo indemnizatório, e tem por função a estabilização, não só da relação jurídica estabelecida entre chamante e chamada, como também das relações jurídicas conexas, como a que existe entre os AA. e a mesma recorrente.
X
  A indemnização que a Ré terá que pagar aos AA. - em caso de procedência da presente acção - está incluída nos danos que integram a obrigação de indemnização da Administração invocada pela Ré.
XI
  A Administração já se assumiu como responsável pelo ressarcimento desses danos até ao montante de, pelo menos, MOP$1.045.117.357,00.
XII
  O pedido dos AA. encontra-se muito aquém deste montante.
XIII
  Por outro lado, a ratio legis do artigo 272° do Código de Processo Civil, o escopo visado é o de evitar que o chamante se encontre na difícil situação de provar que empregou todos os esforços para evitar a condenação sempre que possível, o que aponta para uma interpretação lata do normativo em causa, por ser mais justa e mais segura, sem prejuízo dos interesses do chamado (Ac. STJ, de 26/05/1992) .
XIV
  E nos termos da douta lição do Acordão RE, de 14/02/1995:BMJ, 444°-727, o conceito de direito de regresso é um conceito amplo e, por isso, para a admissão do chamamento basta a simples possibilidade ou existência desse direito.
XV
  Como tal, afigura-se que nesta sede, nenhum obstáculo existe ao chamamento da Administração enquanto parte associada à Ré, discordando-se, com todo o respeito, da douta decisão recorrida, quando refere não estarem reunidos os pressupostos legais para a permanência da RAEM em juízo, com a sua consequente absolvição da instância.
XVI
  Pelo que, ressalvada diversa opinião, afigura-se que a douta decisão recorrida, ao decidir como decidiu, viola o disposto o artigo 272º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá a douta decisão recorrida ser revogada e, consequentemente, decidir-se no sentido do deferimento do pedido de intervenção provocada formulado pela recorrente com o chamamento da RAEM à acção, como é de justiça.
Ao recurso a chamada respondeu pugnando pela improcedência do recurso nos termos seguintes:
A) Na medida em que a decisão recorrida deva ser interpretada como admitindo o incidente de intervenção acessória mas julgando-o improcedente, o recurso da mesma interposto dever ser subordinado ao regime previsto na alínea c) do no. 2 do Artigo 606º do Código de Processo Civil, devendo ser ordenada a sua subida diferida, com expresso afastamento do regime previsto no Artigo 112º do Código de Processo de Trabalho;
B) Pelas mesmas razões, nessa circunstância, ao recurso deverá ser fixado o regime de subida diferida, nos termos do disposto nos Artigos 601º e 602º do Código de Processo Civil, com atribuição de eficácia meramente devolutiva, nos termos do disposto no no. 2 do Artigo 607º do mesmo Código;
C) Entendimento diverso - seja, o pretendido pela Recorrente - determina a convolação de um efeito suspensivo sobre a decisão numa suspensão da instância decisória e, por aí, na violação do próprio interesse que justificou a consagração de um regime mais alargado para a admissão do recurso com subida imediata nos próprios Autos pelo Artigo 1123º do Código de Processo de Trabalho.
D) Se, diversamente, dever entender-se a decisão recorrida como decisão de rejeição do incidente - o que parece resultar dos trechos especificamente referenciados nesta alegação - então deverá valor o regime estatuído pela alínea a) do no. 2 do Artigo 606º do Código de Processo Civil, com a fixação do regime de subida em separado, com efeito meramente devolutivo da decisão proferida no incidente;
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E) A existência de um efectivo direito de regresso a favor da Recorrente contra a ora Recorrida é o pressuposto de admissibilidade do chamamento desta aos autos, a título de intervenção acessória provocada, nos tennos do disposto no Artigo 272.°/1 CPC;
F) Ainda que todos os factos articulados pela Recorrente pudessem ser verdadeiros ou exactos, tais factos não são causa do surgimento de um direito de regresso, na esfera jurídica da Recorrente, contra a Recorrida;
G) A Recorrida não foi parte na relação laboral estabelecida entre a Recorrente e cada um dos Autores, nem praticou qualquer acto que tenha tido como efeito próprio a sua extinção;
H) O alegado direito de regresso também não tem causa em relação de empreitada em que a ora Recorrida seja parte ou, tão pouco, em relação de mandato ou de comissão que, por qualquer modo e em qualquer momento, tenha sido estabelecida entre a ora Recorrida e a ora Recorrente;
I) A Recorrente também não agiu, no âmbito das relações laborais com os Autores, como gestora de negócios da Recorrida;
J) Nem os Autores, nem a Recorrente articularam qualquer facto qualificável como contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida, ou a favor de terceiro, ou para terceiro a nomear, ou de que resultem direitos para quaisquer terceiros e, em particular, para os Autores;
K) Uma vez que o facto que a ora Recorrente considera ser constitutivo do seu direito de regresso sobre a Recorrida não é o facto causador da obrigação da Recorrente pagar os salários peticionados pelos Autores, então o âmbito da obrigação de indemnizar que possa recair sobre a Recorrida por ter determinado a suspensão da obra não inclui o ressarcimento daqueles valores à Recorrente;
L) Não está preenchido o pressuposto de que a lei de processo faz expressamente depender, nos termos do Artigo 272.°/ 1 do CPC, a intervenção provocada da Recorrida;
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M) A Recorrente não pretende ser indemnizada pelo prejuízo que lhe cause a perda da demanda, como exige o no. 1 do Artigo 272° do Código de Processo Civil, mas, ao invés, pelos prejuízos que a não continuação da obra a que os trabalhadores estavam afectos lhe causou;
N) A obrigação de indemnizar que, a existir, possa eventualmente impender sobre a ora Recorrida, não é afectada, na sua consistência prática ou económica (como exige o no. 2 do Artigo 276° do Código de Processo Civil), pelo facto da condenação, ou da não condenação, da Recorrente no pagamento dos salários que deixou de pagar aos Autores;
O) Ao invés de demandar a Recorrida por danos a esta imputáveis segundo as regras da responsabilidade por facto lícito ou ilícito ou, em alternativa, ao invés de exigir o cumprimento de qualquer acordo de transacção que alcançado, a Recorrente procura a usar estes autos para, unilateralmente, transferir obrigações suas para a Recorrida;
P) Em face da disciplina do Artigo 278°/1 CPC, o chamamento da ora Recorrida aos autos traduzir-se-ia na negação dos seus direitos de defesa relativamente a um pedido de indemnização que que só pode ser-lhe endereçado em acção própria em que a mesma assuma a posição processual de ré;
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Q) A apreciação dos elementos constantes dos autos permite concluir pela manifesta inviabilidade de uma eventual acção de regresso da Recorrente em vista do reembolso dos salários que possa vir a ter de pagar aos Autores;
R) Até à data a ora Recorrente e a ora Recorrida não chegaram a acordo, quer quanto aos concretos danos objecto de reparação, quer quanto ao modus e ao quantum dessa compensação;
S) A Recorrida não assumiu perante a Recorrente o compromisso de cumprir quaisquer obrigações da Recorrente, em vez, ou por conta, desta;
T) Até à data, a ora Recorrida não assumiu perante terceiros qualquer responsabilidade da Recorrente pela reparação de quaisquer prejuízos, tal como não procedeu ao pagamento de quaisquer indemnizações a esses terceiros, nem reembolsou a Recorrente de quaisquer danos que a mesma tenha, ou alegue ter sofrido;
U) Não existiu qualquer promessa de liberação por parte da ora Recorrida nos termos alegados pela Recorrente;
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V) Nos termo do disposto no Artigo 557.° do Código Civil, "a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão";
W) A Recorrente incumpriu os contratos de trabalho celebrado com os Autores, não tendo provado, tampouco alegado, qualquer situação de impossibilidade, objectiva ou subjectiva, de cumprimento da prestação;
X) A suspensão da obra não é causa adequada do incumprimento dos contratos de trabalho, nem, em particular, da preterição do direito dos Autores à sua retribuição;
Y) A suspensão da obra sita na Calçada do Gaio não era condição (em abstracto) apta e necessária a causar danos aos trabalhadores, nem, dito sob outra perspectiva, a constituir a Recorrente na obrigação de indemnizar os trabalhadores pelo que quer que seja;
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Z) A Recorrente poderia ter feito cessar de forma legal a relação laboral com os Autores, pondo termo ao correlativo dever de lhes continuar a pagar o salário e, deste modo, evitando a ocorrência dos "danos" que pretende ver reembolsados à custa da Recorrente;
AA) O dano sub judice apenas teve lugar porque a Recorrente não pôs termo à relação laboral, de forma legal e atempada, como se lhe exigia, bem como por ter deixado de pagar os salários devidos aos trabalhadores, por acto de livre vontade, em violação dos contratos de trabalho celebrados com cada um dos Autores;
BB) Nos temos do disposto no Artigo 564.° do Código Civil "Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída".
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, se requer que:
(i) Sejam fixados o tempo, o modo e os efeitos do recurso interposto em qualquer dos termos alternativamente alegados na presente alegação; e
(ii) Sejam desatendidas e dadas por não escritas as alegações de factos que não foram dados como provados pelo Tribunal a quo; e, em qualquer caso,
(iii) Seja o recurso julgado improcedente, porque não provado e porque legalmente não fundado e
Mais requerendo que Vos digneis ordenar os demais termos da lide até final, ordenando, designadamente, o cumprimento do disposto no Artigo 615º do Código de Processo Civil na hipótese em que seja decidida a subordinação do recurso ao regime previsto na alínea a) do no. 2 do Artigo 606º do mesmo Código
Para que se cumpra a consueta
JUSTIÇA!

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Em face das conclusões tecidas na petição dos recursos, a única questão que constitui o objecto da nossa apreciação é a de saber se estão reunidos os pressupostos legais de para a permanência da chamada RAEM, cuja intervenção acessória foi liminarmente admitida no presente processo.

Segue-se a factualidade por nós tida relevante para a boa decisão do recurso:

Na petição inicial, os Autores alegaram, em síntese, que:

* Os Autores foram contratados, enquanto trabalhadores não residentes, pela Ré para trabalhar no estaleiro de construção de um prédio situado em Macau;

* Em relação ao 1º Autor A, o contrato de trabalho celebrado com a Ré é válido desde 02ABR2008 até 15JUN2009, ao passo que o contrato do 2º Autor B é válido desde 01AGO2008 até 15JUN2009;

* Nos termos dos contratos de trabalho, foi estipulado que os Autores auferiam o rendimento não inferior a MOP$11.700,00;

* Por ordem da DSSOPT, foi determinada à Ré a suspensão das obras de construção do prédio em 23MAIO2008;

* Na sequência disso, a Ré exigiu aos Autores que suspendessem a prestação de trabalho e que aguardassem aviso para retomar a prestação de trabalho;

* Durante o tempo em que se a suspendia a prestação de trabalho, a Ré não pagou aos Autores quaisquer salários;

* A suspensão das obras permanece para além do termo dos respectivos de trabalho;

* Podia a Ré resolver os contratos com os Autores;

* Não o fez, antes mantinha a vigência do contrato, mas não pagou nada aos trabalhadores Autores; e

* A Ré incumpriu assim o estipulado nos contratos e deve ser condenada a pagar aos Autores os salários correspondentes ao tempo em que durou a suspensão da prestação de trabalho.

Na contestação, para fundamentar o seu pedido de intervenção acessória da RAEM, a Ré alega em síntese que:

* Em 11DEZ2006, a DSSOPT emitiu à Ré a licença de obra, autorizando a construir um prédio até 126,12 metros de altura na Calçada do Gaio;

* Foi a única e exclusivamente por força dessa licença de construção que a Ré contratou, 90 trabalhadores, incluindo os ora Autores;

* Em 23MAIO2008, a DSSOPT ordenou a suspensão imediata das obras de construção do prédio;

* Na base da tal decisão esteve o despacho do Chefe do Executivo que fixou a cota altimétrica de 52,5 metros para os edifícios na zona das imediações do Foral da Guia;

* A Administração não esclareceu qual a duração da decretada medida de suspensão apenas referindo que perduraria durante as negociações, sendo que a contestante ficou convicta de que tal duração seria de dois ou três meses;

* Apesar de discordar a ordem, suspendeu as obras e informou os trabalhadores, incluindo os ora Autores, de que não podia continuar a execução das obras por causa da ordem da Administração;

* Foi a Administração quem, em 25MAIO2008 ordenou a suspensão da obra;

* Em 21ABR2008, a Administração assumia expressamente a responsabilidade pelos prejuízos que a contestante sofreu e viesse a sofrer futuramente, por causa daquela ordem de suspensão;

* A Administração formulou uma proposta concreta no valor de MOP$1.045.117.357,00, tendo a contestante apresentado uma contraproposta no valor de MOP$1.740.663.350,00, que aguarda decisão da Administração;

* Entre os prejuízos causados pela paragem da obra não podem deixar de figurar as indemnizações em que a contestante possa eventualmente vir a ser condenada nos presentes autos; e

* Como tal, em caso de procedência parcial ou total da presente acção, a contestante é pelo menos, titular do correspondente direito de regresso contra a Administração.

Então apreciemos.

As razões que levaram o Tribunal a quo a proferir a decisão recorrida são o seguinte:

……
Independentemente da questão relativa ao eventual direito de regresso que a Ré possa ter relativamente à RAEM por força da sua eventual condenação nos presentes autos - cuja articulação factual é, no entanto, muito incipiente no seu articulado - entendemos que a apreciação da responsabilidade desta, dado que a sua actuação foi feita nas vestes do seu poder de autoridade - ius imperii - típico, através da prática de actos de "governação", cuja legitimidade/adequação não pode ser apreciada nos presentes autos (nem sequer há notícia que tenham sido postos em causa no tribunal materialmente competente, antes dando notícia a Ré de negociações e da disponibilidade da RAEM para assumir os prejuízos causados). Concluímos assim que a sua permanência em juízo seria, assim, absolutamente inócua e em nada contribuiria para uma melhor conformação ''justa'' do litígio, dado que nos presentes autos apenas cabe o conhecimento da relação laboral estabelecida directamente entre as partes.

O incidente de intervenção acessória provocada encontra-se regulado nos artºs 272º e s.s. do CPC.

Reza o artº 272º que:

1. O réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.

2. A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento.

E o artº 274º/4 diz que “a sentença proferida constitui caso julgado em relação ao chamado, nos termos previstos no artigo 282º, quanto às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização”.

Por sua vez o artº 282º estabelece que:

A sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido, excepto:
a) Se alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final;
b) Se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova susceptíveis de influir na decisão final e que o assistido não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave.

Ora, decorre da conjugação desses normativos que, não sendo titular de um interesse paralelo ao do réu da causa principal, o terceiro chamado tem o papel de mero auxiliar na defesa do réu e não pode ser condenado.

O que significa que na causa principal, não se discute a responsabilidade do terceiro chamado e este nunca pode ser condenado.

Pois o incidente visa apenas produzir um efeito reflexo de caso julgado relativamente à verificação de certos pressupostos do eventual direito de regresso – o artº 274º/4 do CPC.

Assim, ao contrário do que entende o Tribunal a quo, não vemos como é que a circunstância de a eventual responsabilidade da RAEM não poder ser apreciada nos presentes autos da acção laboral civil pelo Tribunal civil pode ser considerada como causa impeditiva da sua intervenção acessória aqui como mero auxiliar na defesa do réu e da produção do efeito reflexo de caso julgado da presente causa relativamente à verificação de certos pressupostos do eventual direito de regresso a invocar pela ora Ré na eventual acção contra a RAEM a intentar no competente Tribunal Administrativo.

Cremos assim que não é de subscrever os fundamentos em que o Tribunal a quo se apoiou para a prolação da decisão ora recorrida.

Por força das regras de substituição consagradas no artº 630º do CPC, passemos então a averiguar se é in casu admissível a intervenção acessória passiva da RAEM, atendendo à relação controvertida configurada pelas partes.

Ora, a propósito da função e finalidade do correspondente incidente da instância existente na lei portuguesa, foi doutamente consignado no Acórdão da Relação de Coimbra de 02FEV2010, tirado no processo nº 1269/06.2TBMGR.C1, aqui citado a título da doutrina no direito comparado, que:

“A finalidade/função do mencionado incidente é tornar indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em acção posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor.

O âmbito objectivo do caso julgado da causa prejudicial (relativamente ao direito de regresso) constituída pelo primeiro processo encontra-se assim delimitado: para a acção de indemnização fica em aberto a discussão sobre todos os outros pontos de que dependa o direito de regresso; assentes ficam só os pressupostos desse direito que, por respeitarem à relação jurídica existente entre o autor e o réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o chamado, ficando o réu/chamante dispensado de (na acção de indemnização/regresso) fazer a prova de que (na demanda anterior) empregou todos os esforços para evitar a condenação. Se o chamamento for omitido, não bastará ao réu, na futura acção de indemnização, invocar a sentença que o condenou; terá também de provar que foi diligente e, portanto, usou adequadamente todos os meios processuais que, nos limites duma actuação processual de boa fé (art.º 456º), lhe era lícito usar para evitar a condenação.”.

Tendo em conta a finalidade e a função do incidente da intervenção acessória provocada, numa acção em que tiver sido deduzido o incidente, verificamos que o bem jurídico que visa tutelar o incidente pode encontrar em conflito com interesse do autor da causa principal.

Assim, a admissão do incidente tem de ser precedida da ponderação desses interesses em conflito.

Por um lado, temos os interesses do autor, que normalmente não terá qualquer vantagem em ver a linearidade e celeridade da acção que intentou perturbada com a dedução de um incidente que lhe não aproveita, já que o chamado não é devedor no seu confronto, nunca podendo ser condenado mesmo que a acção proceda – Lopes de Rego, in Comentário ao CPC, Vol. I, 2ª ed., pág. 315.

Por sua vez, o réu tem interesse em tornar, desde logo, indiscutíveis certos pressupostos de uma futura e eventual acção de regresso contra o terceiro, com vista a nele repercutir o prejuízo que lhe cause a perda da demanda – ibidem.

Ponderando estes interesses em conflito, parece que se justifica a intervenção acessória de um terceiro numa causa já intentada, não para o condenar mas sim para o vincular numa outra causa, apenas nos casos em que o réu puder vir a exercer o direito de regresso contra o chamado por via da acção de regresso e pelo menos uma parte das questões que se discutem na primeira causa puderem ter repercussão nessa posterior acção de regresso.

Importa agora averiguar se a Ré pode exercer o direito de regresso contra a RAEM, para ser indemnizada pelo prejuízo que lhe cause a perda da presente demanda.

Então pergunta-se qual é o prejuízo que lhe cause a perda da presente demanda?

É o encargo resultante do pagamento dos salários que fica por pagar aos Autores, assim como dos respectivos juros de mora.

Pois, atendendo à relação controvertida configurada pelos Autores, a causa de pedir é o alegado incumprimento dos respectivos contratos de trabalho, celebrados entre os Autores e a Ré, no que diz respeito à obrigação de pagamento de salário, assumida pela Ré, enquanto entidade patronal, a favor dos Autores, enquanto trabalhadores.

É verdade que por ordem da RAEM, a Ré se obrigou a suspender as obras da construção do tal prédio, para cuja realização a Ré contratou os Autores.

Mas nem por isso a Ré pode ficar dispensada de pagar aos Autores o salário contratualmente acordado.

O que a Ré podia e devia fazer é dirigir-se à RAEM, eventualmente por via de uma acção judicial, a obter uma indemnização devida pela suspensão das obras da construção do prédio, pela impossibilidade da conclusão das mesmas e pela consequente perda dos lucros que poderia obter com a venda das fracções do prédio no mercado, se não houvesse a ordem de suspensão as obras.

Ora, na presente acção laboral, discutem-se apenas o alegado incumprimento por parte da Ré dos contratos de trabalho celebrados com os Autores e a eventual obrigação de os indemnizar pelo incumprimento contratual.

Na eventual acção que a Ré irá instaurar contra a RAEM, discutem-se a eventual ilegalidade, por violação do princípio da boa-fé, de que padece a decisão administrativa que consiste na ordem de suspensão das obras já licenciadas, assim como as perdas que lhe tenham sido causadas pela ordem.

Todavia, entre a presente acção laboral e aquela eventual acção a intentar no Tribunal Administrativo contra a RAEM, não se intermete a conexão jurídica que está na base do artº 272º do CPC, pois entre a suspensão das obras e o não pagamento dos salários inexiste um nexo de causalidade adequada que justifica a atribuição à ora Ré o direito de regresso contra a RAEM, que visa indemnizar a Ré do prejuízo que lhe cause a perda da presente acção laboral, que como vimos supra tem por fundamento exclusivo o alegado incumprimento voluntário dos contratos laborais celebrados entre ela e os Autores, não obstante a invocação por parte da Ré de que o não pagamento era originado pela suspensão das obras ordenadas pela Administração.

Na verdade, sabemos que ante o direito de trabalho, para o efeito de pagamento de salário, não se exige necessariamente a prestação efectiva de trabalho por parte do empregado, pois basta para o cumprimento da sua obrigação colocar-se à disposição da entidade patronal para a prestação de trabalho.

In casu, em vez de resolver o contrato com os Autores mediante o pagamento de indemnização, foi a Ré, por acto voluntário e no seu exclusivo interesse, quem mantinha os trabalhadores, incluindo os Autores, à sua disposição aguardando a ocorrência de um facto futuro muito incerto, senão pouco provável, que é o eventual levantamento da ordem da suspensão das obras.

Assim, não vemos razões para responsabilizar a RAEM pelo encargo resultante da manutenção da disponibilidade dos trabalhadores enquanto não for levantada a ordem de suspensão e não terminar a vigência do contrato de trabalho.

De facto, a situação em apreço é, bem vistas as coisas, semelhante senão igual a esta outra, de configuração mais facilmente compreensível: se o trabalhador demanda o patrão de uma fábrica para que lhe pague o salário em falta, este patrão não pode provocar a intervenção acessória de um cliente seu que, por lhe ter cancelado uma encomenda, o impossibilitara de pagar salário ao trabalhador.

Pelo exposto, entendemos que se não verificando assim o condicionalismo descrito no artº 272º do CPC, o presente recurso não deve merecer provimento.

Resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar improcedente o recurso interposto pela Ré chamante C Construções e Fomento Predial Limitada, mantendo a decisão recorrida, embora com fundamentos diversos.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.

RAEM, 23ABR2015

Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng