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Processo nº 765/2014
(Autos de recurso civil)

Data: 14/Maio/2015

Assuntos: Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Rejeição do recurso (artigo 599º, nº 1 e 2 do CPC)

SUMÁRIO
- Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
- Verificando-se que a decisão do Colectivo de primeira instância sobre a matéria de facto controvertida fundamentou-se, com base em provas documentais e depoimentos testemunhais, e tencionando a Autora ora recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, entretanto havendo gravação da prova, ela terá que especificar, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo nele realizado, e indicar as passagens da gravação em que se funda o erro imputado.
- Não logrando a recorrente especificar os concretos meios de prova nem indicar para o efeito as passagens da gravação que permitam infirmar a decisão sobre a matéria de facto provada, tal implica a rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto no artigo 599º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Civil.


O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 765/2014
(Autos de recurso civil)

Data: 14/Maio/2015

Recorrente:
- A (Autora)

Recorrida:
- B (Ré)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, Autora da acção de processo ordinário que corre termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformada com a sentença final que julgou improcedente o pedido de reconhecimento da mesma como dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada por letra “I” do 12º andar do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal sito na Avenida XXXX, nº XXXX a XXXX, Jardim XXXX Taipa, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX, a fls. XXXX do Livro XXXX, bem assim o pedido de restituição à Autora daquela fracção autónoma, totalmente livre e devoluta de pessoas e bens, dela interpôs o presente recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. O presente recurso é limitado à parte da sentença proferida pelo douto Tribunal a quo que julgou infundados os seguintes pedidos da recorrente, deles absolvendo a recorrida: a) Declarar a Autora dona e legitima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “I” do 12º andar do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida XXXX n.º XXXX a XXXX, Jardim XXXX Taipa, descrito na C.R.P. sob o n.º XXXX (XXXX, XXXX) com aquisição registada a seu favor pela inscrição n.º XXXX; b) reconhecer à A. aquele direito de propriedade bem como a restituir à A. aquela fracção autónoma, totalmente livre e devoluta de pessoas e bens.
2. Face à matéria constante nos autos e dos meios probatórios que serviram de base aos factos considerados como assentes e às provas documentais apresentadas, nunca poderia o douto tribunal considerar provada a matéria dos quesitos 17º e 18º da Base Instrutória, os quais foram fundamentais para o tribunal decidir pelo afastamento da presunção da titularidade do imóvel a favor da recorrente.
3. Ora, a resposta a estes quesitos baseou-se, apenas nos depoimentos testemunhais apresentados e não na prova documental.
4. A sentença recorrida olvidou o facto do empréstimo bancário, no montante de HK$432.000,00, ter sido directamente à recorrida pelo Banco E, SARL., através de “cashier order” e esta não ter feito nos autos qualquer prova (e nem sequer mencionado!!!) que tivesse, por alguma forma, devolvido este dinheiro à recorrente.
5. Apenas se a recorrida tivesse feito prova da devolução deste montante à recorrente poderiam ter sido dados como provados os quesitos 17º e 18º, pois só nesse caso seria possível concluir que a recorrida não tinha recebido o preço do imóvel.
6. A presunção legal da propriedade existente a favor da recorrente apenas poderia ter sido ilidida caso fosse demonstrado concretamente que a recorrida não tinha recebido qualquer montante a título de preço (ou que o teria recebido e depois devolvido à recorrente) o que não foi feito.
7. Analisando-se toda a prova documental sindicada pelo douto Tribunal e por este valorada, não se encontra, em parte alguma, matéria probatória que permita identificar e sustentar um qualquer direito real ou pessoal que beneficie a recorrida e que pudesse obstar à restituição à recorrente da fracção em causa nos autos.
8. Ao decidir como decidiu a douta sentença violou directa e necessariamente os princípios da presunção registral de acordo com o disposto no artigo 7º do Código do Registo Predial e ainda o disposto nos artigos 1235º e 1241º do Código Civil, devendo, assim, ser substituída por outra que declare a recorrente proprietária da fracção em causa nos autos e condene a recorrida na sua restituição à recorrente totalmente livre e devoluta de pessoas e bens.
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Devidamente notificada, a Ré apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
a) As respostas aos quesitos da Base Instrutória não foram objectos de reclamação ou impugnação, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 430º e 556º do CPC, respectivamente em tempo oportuno.
b) A pretexto das alegações feitas, a Recorrente pretende obter uma “reapreciação” das provas produzidas no caso em apreço, o que não é legalmente viável em face da lei processual.
c) Não se pode pôr em causa o juízo de valor do Tribunal a quo na apreciação das provas segundo a sua prudente convicção em nome do princípio de livre apreciação das provas.
d) No caso sub judice, não se verifica qualquer erro na apreciação na matéria de facto, nem tão-pouco qualquer contradição entre a matéria dada com assente e a resposta dada aos quesitos.
e) As provas produzidas nos presentes autos foram correcta e legalmente apreciadas pelo Tribunal a quo segundo a sua prudente convicção.
f) Tal como foi apreciado e decidido na sentença recorrida, de forma correcta, a presunção legal de titularidade ora em causa é perfeitamente possível de ser ilidida no tribunal por via judicial, e
g) É precisamente o que acontece no caso sub judice, perante a prova feita – vide as respostas aos quesitos, sobretudo, os n.ºs 17º e 18º da Base Instrutória, ficou ilidida a referida presunção de titularidade em causa.
h) A douta sentença ora recorrida é perfeitamente correcta, adequada e legal, e não sofreu de nenhum vício, nem violou, nenhum princípio legal, nem os alegados princípios da presunção registral (artigo 7º do Código do Registo Predial e os artigos 1235º e 1241º do Código Civil), que possa(m) comprometer a sua validade.
Conclui, pugnando pela negação de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida na íntegra.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Realizada a audiência e discussão de julgamento, a sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Encontra-se registada em nome da Autora A a fracção autónoma, para habitação, designada pela letra “I” do 12º andar do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal sito na Avª XXXX, nº XXXX, Jardim XXXX Taipa, descrito na CRP sob o n.º XXXX, pela inscrição n.º XXXX, conforme documento a fls. 11 a 19 dos autos (alínea A) dos factos assentes).
A referida fracção encontra-se inscrita na matriz predial urbana sob o n.º XXXX em nome da Autora A, conforme documento a fls. 20 dos autos (alínea B) dos factos assentes).
Mediante escritura pública outorgada a 9.01.2002, C, na qualidade de procuradora substabelecida da sociedade comercial por quotas “D, LDA.”, com sede em Macau, na Rua XXXX, 26, declarou que, pelo preço de quinhentas mil patacas, já recebidos pela sua representada, vende à segunda outorgante A a fracção autónoma para habitação designada por “I – do décimo segundo andar” do prédio urbano nºs XXXX a XXXX da Avª XXXX, declarando, por sua vez a segunda outorgante A que aceita esta venda e que a fracção se destina a habitação própria, conforme documento a fls. 21 a 30 dos autos (alínea C) dos factos assentes).
Ainda na mesma escritura pública a segunda outorgante A confessou-se devedora ao Banco “E, SA” da quantia de MOP$445.608,90, para cujo reembolso e pagamento de despesas e demais encargos constituiu a favor do mesmo banco hipoteca sobre aludida fracção, hipoteca esta aceite pelo dito banco, conforme documento a fls. 21 a 30 dos autos (alínea D) dos factos assentes).
A Ré vem ocupando/habitando a fracção acima identificada (alínea E) dos factos assentes).
A 6.11.2006, a Autora, através dos seus Mandatários, enviou à Ré a carta de fls. 33/34, intimando-a para, em 15 dias, a contar da recepção da dita carta restituir o imóvel acima descrito (alínea F) dos factos assentes).
Após a dita carta, a Ré continuou a ocupar o imóvel (alínea G) dos factos assentes).
A Autora deixou de viver na fracção autónoma referida na alínea a) dos factos assentes (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
Por recurso às vias judiciais, a Autora pagará de honorários e despesas aos seus Mandatários a quantia de MOP$20.000,00 (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
Tendo em vista a adquisição da fracção autónoma em causa, a Ré pagou à Empresa de Construção Civil F (F建築置業公司) a quantia total de MOP$480.000,00 (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
A Ré e a Autora eram amigas (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
Antes da outorga da escritura pública referida na alínea c) dos factos assentes, a Autora pediu à Ré para que lhe permitisse figurar na escritura como compradora (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
Para ela, Autora, obter junto de um banco um financiamento e puder beneficiar de subsídio de residência como trabalhadora da Administração Pública, para resolver as suas dificuldades financeiras (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
Tendo a Autora se comprometido a outorgar, em simultâneo, uma procuração a favor da Ré para puder transferir de novo a fracção para o nome da Ré, quando as prestações mensais do financiamento bancário estivessem totalmente pagas (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
A Ré acabou por aceder ao pedido da Autora (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
A Ré fê-lo apenas para ajudar a Autora (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
A Autora, porém, nunca chegou a outorgar a procuração referida sobre o art. 12º da base instrutória (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
A Autora, através do negócio referido em C) dos factos assentes, nunca quis adquirir a referida fracção (resposta ao quesito 17º da base instrutória).
Nem a Ré nunca quis vender a mesma fracção à Autora, nem recebeu desta nenhum preço (resposta ao quesito 18º da base instrutória).
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Impugnação da matéria de facto
A Autora ora recorrente começa por impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto provada, alegando ter havido erro na apreciação da prova, pugnando pela alteração das respostas dadas aos quesitos 17º e 18º da base instrutória.
O Colectivo de primeira instância respondeu aos quesitos 17º e 18º da seguinte forma:
“A Autora, através do negócio referido em C) dos factos assentes, nunca quis adquirir a referida fracção” e “Nem a Ré nunca quis vender a mesma fracção à Autora, nem recebeu desta nenhum preço”.
Alega a recorrente que a resposta do Colectivo a esses quesitos baseou-se apenas nos depoimentos testemunhais apresentados e não na prova documental, mas entende que os mesmos quesitos só poderiam ter sido provados se a recorrida tivesse feito prova da devolução à recorrente do cheque no montante de HKD$432.000,00 que foi entregue à recorrida directamente pelo Banco E, SARL.
Vejamos.
Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Não obstante, a parte que não está conformada com a decisão da matéria de facto pode, em sede de recurso, impugná-la, “incumbindo-lhe a indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa referência às provas produzidas…”1.
Isto é o que resulta dos nºs 1 e 2 do artigo 599º do Código de Processo Civil:
“1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios de probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.”
No caso vertente, a recorrente vem questionar da resposta dada pelo Colectivo de primeira instância aos quesitos 17º e 18º da base instrutória, indicando como fundamento a falta de prova documental.
Ora bem, não há margem para dúvidas que, para além da prova documental, a decisão proferida pelo Colectivo de primeira instância sobre a matéria de facto controvertida fundamentou-se ainda com base em depoimentos testemunhais.
E atendendo ao facto de inexistir qualquer disposição expressa da lei que exija para determinados factos certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de qualquer meio de prova, é admissível qualquer meio de prova e cuja valoração encontra-se submetida ao princípio da livre apreciação do juiz.
Aqui chegados, somos a entender que, tencionando a Autora ora recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, entretanto havendo gravação da prova, ela terá que especificar, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo nele realizado, e indicar as passagens da gravação em que se funda o erro imputado.
Conforme referiu Lopes de Rego, “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância manifestando genérica discordância com o decidido.”2
No presente caso, podemos verificar que a recorrente limita-se a questionar sobre a resposta dada aos quesitos 17º e 18º, defendendo simplesmente que não podia o Colectivo de primeira instância dar-se como provada a tal matéria com fundamento na falta de prova, mormente, documental.
Considerando que a recorrente não logrou especificar os concretos meios de prova nem indicar para o efeito as passagens da gravação que permitam infirmar a decisão sobre a matéria de facto provada, tal implica, a nosso ver, a rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto no artigo 599º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Civil.
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Mérito da causa
Com base na matéria de facto dada como provada, não há outra alternativa senão confirmar a sentença recorrida, considerando que, não obstante que se presume ser a recorrente titular do direito de propriedade sobre o bem imóvel em causa conforme o registo, mas não é menos verdade que, de acordo com os factos provados, ela não é a verdadeira proprietária da fracção, ao invés, retira-se que a Ré ora recorrida é que comprou a fracção autónoma em causa, tendo pago para o efeito a quantia de MOP$480.000,00 à Empresa de Construção Civil F, e apenas por causa do pedido formulado pela recorrente e com o intuito de a ajudar é que esta recorrente passou a figurar na respectiva escritura pública como a compradora e consequentemente como titular do direito de propriedade inscrito no registo predial.
Uma vez ilidida a presunção de titularidade, improcedem as conclusões aduzidas pela recorrente.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela Autora A contra a Ré B, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente nesta instância.
Registe e notifique.
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RAEM, 14 de Maio de 2015
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Coimbra Editora, página 53
2 Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2004, 2ª edição, Almedina, página 584
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Recurso Civil 765/2014 Página 13