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Processo nº 40/2015
(Autos de recurso civil)

Data: 5/Março/2015

Assuntos: Acção de impugnação de paternidade
Renascimento da presunção de paternidade

SUMÁRIO
    - A lei permite à mulher casada que, no acto do registo de nascimento do filho, declare que o filho não é do marido.
- Se assim for, após a indicação feita pela mãe casada de que o filho não pertence ao marido, cessa a presunção de paternidade do marido.
- Entretanto, a lei permite que essa presunção possa renascer, desde que sejam verificados os pressupostos previstos no nº 1 do artigo 1690º do Código Civil, a saber, a existência de relações entre os cônjuges que tornem verosímil a paternidade do marido, ou que o filho, na ocasião do nascimento, beneficiou de posse de estado relativamente a ambos os cônjuges.
- No tocante ao primeiro aspecto, não se exige do tribunal uma certeza da paternidade, exige-se-lhe só uma convicção acerca da probabilidade razoável do nexo causal entre as relações sexuais demonstradas e a paternidade do marido.

- No caso vertente, demonstrada está, por um lado, a existência de relações sexuais havidas no período legal da concepção entre o Autor e a Ré, e por outro, a probabilidade de 99,99% de aquele Autor ser pai biológico do filho, comprovada está a existência de relações entre os cônjuges que tornem verosímil a paternidade do marido, devendo, por isso, ser declarado o renascimento da presunção de paternidade, nos termos previstos no nº 6 do artigo 1691º e nº 1 do artigo 1690º, ambos do Código Civil.
       
O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 40/2015
(Autos de recurso civil)

Data: 5/Março/2015

Recorrente:
- B (Autor)

Recorridos
- C (1ª Ré)
- D (2º Réu)
- F (3º Réu)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B (Autor), melhor identificado nos autos, intentou contra C (1ª Ré), D (2º Réu), menor, representado pela sua mãe C, e F (3º Réu) acção ordinária de impugnação de paternidade junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM, pedindo que se declare o 2º Réu não ser filho biológico do 3º Réu, a nulidade do acto de perfilhação do 2º Réu pelo 3º Réu, e em consequência, se declare o renascimento da presunção de paternidade do marido da mãe por no período legal da concepção do 2º Réu terem existido relações entre o Autor e a 1ª Ré que tornam verosímil essa paternidade.
Realizado o julgamento, foi julgada a acção parcialmente procedente, tendo sido indeferido o último pedido.
Inconformado com aquela parte da sentença, dela interpôs o Autor o presente recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. Por sentença datada de 10 de Julho de 2004, o Tribunal a quo declarou que o 3º Réu não é o pai do 2º Réu e, em consequência, declarou a nulidade do averbamento ao registo da perfilhação e consequente cancelamento.
2. Mas negou o renascimento da presunção de paternidade do Autor, ora Recorrente, por considerar que a declaração averbada ao registo da não existência da posse de estado do 2º Réu relativamente ao Autor não permite o renascimento da presunção de paternidade.
3. Na sequência de exame laboratorial ao ácido desoxirribonucleico (ADN), do qual resultou com 99,99% de probabilidades que o Recorrente é o pai biológico do 2º Réu, o Tribunal a quo considerou provado que o Recorrente é o pai biológico do 2º Réu.
4. Considerar provado que o Recorrente é o pai biológico do 2º Réu e depois afirmar que não estão provadas relações sexuais entre aquele e a 1ª Ré no período legal da concepção é uma contradição nos termos.
5. Se o Tribunal a quo considera provado que o 2º Réu é filho biológico do Recorrente, então tem necessariamente de concluir pela existência de relações sexuais entre o Recorrente e a 1ª Ré no período legal da concepção do 2º Réu.
6. Assim, deve ser alterada a decisão da matéria de facto, nos termos do disposto nas alíneas a), primeira parte, e b) do n.º 1 do artigo 629º do CPC, e, em consequência, considerar-se provado o facto vertido no quesito 8º, ou seja, a existência de relações sexuais entre o Autor e a 1ª Ré nos primeiros 120 dias dos 300 dias que antecederam o nascimento do 2º Réu.
7. Na hipótese em que cessa a presunção de paternidade por averbamento ao registo de declaração de que na ocasião do nascimento o filho não beneficiava da posse de estado relativamente ao marido da mãe, o n.º 6 do artigo 1691º do Código Civil manda aplicar o disposto no artigo 1690º do mesmo Código.
8. O n.º 1 do artigo 1690º não se limita a estabelecer o renascimento da presunção da paternidade quando o filho, na ocasião do nascimento, beneficia da posse de estado relativamente ao marido da mãe; estabelece também o renascimento da presunção de paternidade quando se provar que no período legal da concepção existiram relações entre os cônjuges que tornam verosímil a paternidade do marido.
9. A declaração averbada ao registo da não existência da posse de estado não impede o renascimento da presunção de paternidade quando se prova que no período legal da concepção existiram relações entre os cônjuges que tornam verosímil a paternidade do marido.
10. Se o 2º Réu tem 99,99% de probabilidades de ser filho do Recorrente, o que levou inclusivamente o Tribunal a quo a dar como provado que ele o é, então está também provada a existência de relações sexuais entre o Recorrente e a 1º Ré no período legal da concepção.
11. Estando assim verificado o requisito da verosimilhança da paternidade exigido pelo n.º 1 do artigo 1690º.
12. Este requisito é necessário e suficiente para fazer renascer a presunção de paternidade.
Conclui, pedindo a revogação da sentença recorrida e, em consequência, a sua substituição por outra decisão que determine o renascimento da presunção de paternidade do recorrente relativamente ao 2º Réu.
*
Notificados, os Réus não contra-alegaram.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
O Autor casou com a 1ª Ré, mãe do 2º Réu, no dia 29 de Outubro de 1985, em San Wui, na República Popular da China.
O 2º Réu nasceu no dia 4 de Janeiro de 1998, em Macau, na constância do casamento do Autor e da 1ª Ré.
Em 19 de Março de 1998 foi averbada ao registo de nascimento do 2º Réu declaração de que o registado não beneficiou de posse do estado de filho em relação ao marido da mãe.
Em 23 de Março de 1998 foi averbado ao registo de nascimento do 2º Réu que o seu pai era o 3º Réu F (Assento de perfilhação n.º 11/98).
O 2º Réu ficou por isso registado na Conservatória do Registo Civil como sendo filho da 1ª e do 3º Réu.
Desse exame laboratorial resultou que o Autor é o pai biológico do 2º Réu, com uma probabilidade de 99,99%.
Não sendo o 3º Réu (perfilhante) o pai biológico do 2º Réu (perfilhado).
*
O caso
A sentença recorrida julgou procedente, por provado, o pedido de declaração de que o 3º Réu não é pai biológico do 2º Réu e, em consequência, determinou que se procedesse ao cancelamento do registo relativo ao averbamento do 3º Réu enquanto pai do 2º Réu.
No entanto, improcedeu o pedido de declaração de renascimento da presunção de paternidade a favor do Autor, por considerar não se encontrarem preenchidos os requisitos legais, nomeadamente por estar averbada ao registo de nascimento do 2º Réu declaração de que este não beneficiou de posse de estado relativamente a ambos os cônjuges, daí que entendeu não se aplicar a respectiva presunção de paternidade.
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Vejamos agora as questões suscitadas pelo recorrente.
1) Impugnação da matéria de facto
O Autor ora recorrente vem impugnar a decisão da matéria de facto dada pelo Tribunal a quo, pedindo que se dê como provado o artigo 8º da matéria de facto constante da petição inicial.
Questiona-se no artigo 8º o seguinte:
“Por o pai biológico do 2º Réu ser o ora Autor, já que o 2º Réu nasceu fruto das relações sexuais que o Autor manteve com a 1ª Ré, nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o seu nascimento, conforme decorre do exame laboratorial do ácido desoxirribonucleico (ADN) realizado em 2011.”
Feito o julgamento, tal artigo mereceu resposta de “não provado”.
Insurge-se agora o recorrente contra a resposta dada ao referido artigo, pugnando pela alteração da matéria de facto vertida nesse artigo, por força da prova resultante do exame laboratorial e da convicção manifestada pela Juiz a quo relativamente à paternidade do 2º Réu.
Vejamos.
Consagra-se na sentença o seguinte:
“依據已證事實,證明原告在第二被告出生時,其與第一被告存在婚姻關係,且在原告與第一及第二被告的DNA鑑定中,其結果顯示原告與第二被告之間存有親生父親血緣關係的似然比率為99.99%,依據此事實,可以認定原告為第二被告的親生父親,從而排除第三被告為第二被告的親生父親。”
Ora bem, podemos verificar que o Tribunal a quo concluiu que o Autor ora recorrente é o pai biológico do 2º Réu, daí que entendeu estar excluída a possibilidade de o 3º Réu ser pai biológico do menor.
Por outro lado, afirmou ainda o Tribunal a quo na fundamentação da decisão da matéria de facto o seguinte:
“依據卷宗第8至21頁及第141至151頁的兩份DNA親子鑑定意見書,可以認定原告為被告D的親生父親,從而排除被告F為被告D的親生父親。”
Em boa verdade, se o Tribunal a quo afirma claramente que o Autor ora recorrente é o pai biológico do 2º Réu, invocando para o efeito o resultado do exame de ADN, nele revelando uma probabilidade de 99,99% de o recorrente ser pai biológico do 2º Réu, para nós não vemos razão para não dar como provado o facto de que o Autor manteve relações sexuais com a 1ª Ré nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento do 2º Réu.
Em nossa opinião, trata-se aqui de ilações que, sendo julgadores, podemos tirar de um facto conhecido.
Preceitua o artigo 342º do CC que “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
Como observa Viriato Manuel Pinheiro de Lima, “as presunções judiciais, naturais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, e que o juiz usa na apreciação de muitas situações de facto”.1
Decidiu o Acórdão do STJ, de 24.5.1989, BTE, 2ª série, nº 10-11-12/91, página 1049, citado em termos de direito comparado: “As presunções não são propriamente meios de prova, mas processos lógicos mentais ou afirmações que são formados em regra de experiência; as mesmas presunções pressupõem a existência de um facto conhecido, para se concluir dele a existência de outro facto, dito presumido, servindo-se o julgador, para esse fim, das regras deduzidas da experiência da vida.”
No caso vertente, embora pudesse acontecer que, para além das relações sexuais entre ambos os cônjuges (Autor e 1ª Ré), a 1ª Ré teria mantido relações sexuais com outro homem, mas por que está provada a probabilidade de 99,99% de o recorrente ora Autor ser pai biológico do 2º Réu, não temos grandes dúvidas em afirmar que o nascimento do 2º Réu foi fruto das relações sexuais que o Autor manteve com a 1ª Ré nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o seu nascimento.
Nesta conformidade, aceita-se como boa uma resposta afirmativa ao artigo 8º da matéria de facto nos termos que se seguem:
“O 2º Réu nasceu fruto das relações sexuais que o Autor manteve com a 1ª Ré, nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o seu nascimento.”
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2) Renascimento da presunção de paternidade
A sentença recorrida considerou que, por estar averbada ao registo de nascimento do 2º Réu declaração de que este não beneficiou de posse de estado relativamente a ambos os cônjuges, não se aplica a respectiva presunção de paternidade, e em consequência, improcedeu o pedido de declaração de renascimento da presunção de paternidade a favor do Autor.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, julgamos que a decisão merece de algum reparo.
Dispõe o artigo 1691º do CC o seguinte:
“1. A mulher casada pode fazer a declaração de maternidade com a indicação de que o filho não é do marido.
2. Cessa a presunção de paternidade, no caso previsto no número anterior, sem prejuízo do disposto nos nº 2 e 3 do artigo 1687º, aplicável com as devidas adaptações, se for averbada ao registo declaração de que na ocasião do nascimento do filho não beneficiou de posse de estado, nos termos do nº 2 do artigo precedente, relativamente a ambos os cônjuges.
3…
4…
5…
6. Quando a presunção de paternidade houver cessado nos termos do nº 2, é aplicável o disposto no nº anterior.” – realçado nosso
Por sua vez, prevê o nº 1 do artigo 1690º que “…renasce a presunção de paternidade se, em acção intentada por um dos cônjuges ou pelo filho, se provar que no período legal da concepção existiram relações entre os cônjuges que tornam verosímil a paternidade do marido ou que o filho, na ocasião do nascimento, beneficiou de posse de estado relativamente a ambos os cônjuges.” – realçado nosso
É verdade que a lei permite à mulher casada que, no acto do registo de nascimento do filho, declare que o filho não é do marido.
Se assim for, após a indicação feita pela mãe casada de que o filho não pertence ao marido, e foi esse o caso, cessa a presunção de paternidade do marido.
Entretanto, a lei permite que essa presunção possa renascer, desde que sejam verificados os pressupostos previstos no nº 1 do artigo 1690º, a saber, a existência de relações entre os cônjuges que tornem verosímil a paternidade do marido, ou que o filho, na ocasião do nascimento, beneficiou de posse de estado relativamente a ambos os cônjuges.
No que diz respeito ao renascimento da presunção de paternidade baseada na demonstração de que “o filho, na ocasião do nascimento, beneficiou de posse de estado relativamente a ambos os cônjuges”, entende Guilherme de Oliveira que está desprovido de sentido, por que no fundo, o motivo que conduziu à cessação daquela presunção foi justamente a ausência de posse de estado.2
Resta saber se haverá lugar ao restabelecimento da presunção de paternidade baseada na demonstração da existência de relações entre os cônjuges, no período legal da concepção, que tornem verosímil a paternidade do marido.
Como observam Francisco Pereiro Coelho e Guilherme de Oliveira, aqui “não se exige do tribunal uma certeza da paternidade, exige-se-lhe só uma convicção acerca da probabilidade razoável do nexo causal entre as relações sexuais demonstradas e a paternidade do marido”3.
Ainda segundo Guilherme de Oliveira, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, interpreta “verosimilhança” como um reforço da prova normal da paternidade, como uma forte probabilidade, e não a mera possibilidade de o marido ser o pai da criança4.
Ora, no vertente caso, demonstrada está, por um lado, a existência de relações sexuais havidas no período legal da concepção entre o Autor e a 1ª Ré, e por outro, a probabilidade de 99,99% de aquele Autor ora recorrente ser pai biológico do filho, salvo o devido respeito por diferente opinião, julgamos estar comprovada a existência de relações entre os cônjuges que tornem verosímil a paternidade do marido, devendo, por isso, ser declarado o renascimento da presunção de paternidade, nos termos previstos no nº 6 do artigo 1691º e nº 1 do artigo 1690º, ambos do Código Civil.
Aqui chegados, temos que julgar provido o recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente B e, em consequência:
1) Dá-se como provado o artigo 8º da matéria de facto nos termos que se seguem:
“O 2º Réu nasceu fruto das relações sexuais que o Autor manteve com a 1ª Ré, nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o seu nascimento.”
2) Revoga-se a sentença e declara-se renascida a presunção de paternidade do recorrente relativamente ao 2º Réu D.
E confirmando-se a sentença recorrida em tudo o mais.
Sem custas nesta instância e custas na primeira instância pelo Autor, nos termos previstos no nº 2 do artigo 377º do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
***
Macau, 5 de Março de 2015

(Relator) Tong Hio Fong

(Primeiro Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto) João A. G. Gil de Oliveira
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 458
2 Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, Almedina, 7ª Reimpressão, página 75
3 Francisco Pereiro Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume II, Tomo I, Coimbra Editora, página 112
4 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, página144
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