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Processo n.º 620/2014
Relator: João Gil de Oliveira
(Recurso Cível)

Data : 26/Março/2015


ASSUNTOS:
- Efeitos da falta de assinatura do contrato
- Efeitos da falta de consentimento da construtora num contrato de cessão da posição contratual de futuro adquirente da fracção
- Inalegabilidade de factos integrantes de invalidade negocial, com base em “venire contra factum propium”
- Princípio da confiança e abuso de direito


SUMÁRIO :
    1. Não pode pretender a nulidade ou anulabilidade do contrato a promitente compradora de uma dada fracção, que transmitiu a sua posição contratual a terceiros, quando o prédio estava ainda em construção, prometendo vender-lhes essa mesma fracção por um determinado preço, alegando que vendeu coisa alheia ou, assim não se entendendo, que no contrato de cessão não constava a assinatura de um dos outros contratantes, ou por falta de autorização da construtora.
    2. Quem invoca um facto para que contribuiu ou a que deu azo não deve poder alegar esse facto como causa de destruição da validade do negócio, sob pena de se estar perante uma situação de venire contra factum proprium, integrante de eventual abuso de direito, se houve quebra da confiança incutida à contraparte.
              O Relator,

João A. G. Gil de Oliveira






















Processo n.º 620/2014
(Recurso Civil)
Data : 26/Março/2015

Recorrente : B

Recorridos : - C
- D
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO

   B, inconformada com a sentença proferida nos autos supra referenciados, em acção que intentou contra C e D, todos eles mais bem identificados nos autos, pretendendo o reconhecimento da nulidade ou a anulação de contrato que com eles celebrou, vem interpor recurso, alegando, em síntese conclusiva:

1) À data da assinatura do contrato provisório de compra e venda, entre a Recorrente e a 1ª e 2º Recorridos, a Recorrente não era a proprietária do imóvel;
      2) O contrato aqui em crise nunca configurou um contrato provisório de compra e venda, mas, sim, uma cessão da posição contratual;
      3) Este contrato a ser configurado um contrato de compra e venda, dir-se-á sempre, que o contrato é nulo, na medida em que configura uma venda de bens alheios;
      4) Na medida em que a Recorrente carecer de legitimidade para proceder à venda do imóvel, a mesma terá sempre que ser considerada nula nos termos do disposto no art.º 882.º do Código Civil. Isto porque o contrato de compra e venda nos termos do art.º 869.º do Código Civil, tem como um dos efeitos, a transmissão da titularidade da coisa ou do direito, o que no presente caso, não se verifica, visto a Autora não ser a proprietária do imóvel.
  5) Socorremo-nos ainda do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Janeiro de 2014, que passamos a transcrever: “Conforme se infere do disposto no n.º 1 do artigo 892.º do Código Civil e nos dá conta Menezes Leitão “in” Direito das Obrigações, vol. III, 4ª edição, a página 93, “existe venda de bens alheios sempre que o vendedor não tenha legitimidade para realizar a venda, como sucede no caso de a coisa lhe não pertencer, ou de o direito que possui sobre ela não lhe permitir a sua alienação”.
  6) Quanto à contradição que é levantada na douta sentença do Tribunal Judicial de Base, cumpre esclarecer o seguinte. No artigo 40.º da p.i. é mencionado que o objecto do contrato provisório de compra e venda celebrado entre a Autora e a 1ª Ré destina-se a transferir o imóvel e a posição contratual da Autora nos termos da ordem de Compra (cfr. doc. 1 da p.i.). Ao passo que no artigo 41.º é referido, como conclusão do artigo anterior, que a Autora ao assinar o contrato provisório de compra e venda, transfere a sua posição contratual nos termos da Ordem de Compra.
  7) Em 22 de Setembro de 2012, a Autora e 1ª Ré e 2ª Réus assinaram um contrato provisório de compra e venda. Nesse contrato apenas foram apostas as assinaturas da Autora, ora Recorrente e da 1ª Ré, ora 1ª Recorrida, nada constando quanto à assinatura do 2º Réu.
  8) Nos termos do artigo 261.º do Código Civil, “O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”.
  9) A representação sem poderes ocorre quando o acto praticado em nome e por conta de outra pessoa é feito sem que para tanto existam os correspondentes poderes; já estaremos perante o abuso de poderes se o representante actua dentro dos limites formais dos poderes conferidos mas de modo substancialmente contrário aos fins da representação (v. P. Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 249, em anotação ao art.º 269.º).
      10) In casu, estaremos perante um caso de poderes sem representação, não obstante da douta sentença decorrer que não se fez prova bastante que a 1ª Ré representou o 2º Réu ou para representá-lo para assinar o contrato provisório de compra e venda.
  11) No caso em apreço, as partes quiseram de facto assinar um contrato mas faltou a aposição da assinatura de um dos Réus. E como é consabido, a subscrição de um acordo em nome de outrem pressupõe, para ser válida e eficaz, que o representado tenha atribuído poderes de representação para a celebração e assinatura do mesmo.
  12) Acresce que, não obstante o disposto no n.º 1 do artigo 404.º do Código Civil, o n.º 2 dispõe: “Porém, a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral”.
  13) Não nos obstamos com o entendimento do tribunal, fazendo ver que para o 2º Réu estávamos perante um promessa unilateral e que o contrato seria apenas válido para a ora Recorrente e para a 1ª Recorrida.
  14) Na verdade, tal contrato não foi ratificado e no nosso modesto entendimento, consubstancia um negócio realizado sem poderes de representação.
  15) Assim, somos do entendimento que o referido contrato deverá ser declarado anulável pelas razões supra expostas e, em consequência deverá ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base.
  16) A Recorrente não obteve o consentimento do Concessionário SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA, de modo a que a cessão de posição contratual operasse.
  17) Nos termos da cláusula 9ª do Contrato Provisório de Compra e Venda é necessário o consentimento do Concessionário para que a Autora transferisse os direitos ou vendesse o imóvel, nos termos daquela Ordem de Compra.
  18) Sucede que através do contrato provisório de compra e venda se pretendeu ceder a posição contratual mas faltou o elemento do consentimento pelo Concessionário cedido.
      19) Nos termos do Acórdão de 22 de Maio de 2003 do Supremo Tribunal de Justiça: “1. A cessão da posição contratual, definida no art.º 424.º do CC, envolve uma modificação subjectiva numa relação contratual que, todavia, permanece a mesma: a relação contratual que existia entre o utente e o cedido é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário. 2. É, porém, necessário que a substituição do cedente tenha o consentimento do cedido.
  20) Sendo o consentimento do Concessionário para o presente caso é de fulcral importância.
  21) No caso em apreço tal reconhecimento ou consentimento, não se deu. E, por muito que a douta sentença não o queira fazer reconhecer, tal é condição mister para que a cessão da posição contratual opere e produz efeitos jurídicos em relação a todas as partes.
  22) Rejeitamos assim, a posição adoptada e assumida na douta sentença e, salvo melhor entendimento, entendemos que o contrato provisório de compra e venda não deverá vincular as partes por falta de consentimento do Concessionário. Devendo assim, a douta sentença do Tribunal Judicial de Base ser revogada.
  23) A Recorrente mencionou no artigo 40.º da p.i. que o objecto do contrato provisório de compra e venda celebrado entre a Autora e a 1ª Ré destina-se a transferir o imóvel e a posição contratual da Autora nos termos da ordem de Compra (cfr. doc.1 da p.i.).
  24) Ao passo que no artigo 41.º, como conclusão do artigo anterior, refere que a Autora ao assinar o contrato provisório de compra e venda, transfere a sua posição contratual nos termos da Ordem de Compra.
      25) Daqui não resulta qualquer contradição, muito menos pode decorrer de tal e ser condenada a Autora como litigante de má fé.
  26) Resulta claro que, a Recorrente pretendia ceder a sua posição contratual e, se alguma referência é feita ao imóvel será porque este documento traduz-se numa cessão de posição contratual decorrente da Ordem de Compra assinada entre a Recorrente e SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA e, que se efectivaria com a assinatura do Contrato de Compra e Venda.
      27) Acresce que, a Recorrente nunca alterou a verdade em seu benefício e, tal, podemos demonstrá-lo com relativa facilidade, apenas demonstrando que o contrato aqui estava em causa era um contrato de cessão de posição contratual.
  28) Por último, a Recorrente nega veemente que tenha feito uso deste processo com “o fim de conseguir um objecto ilegal, impedir a descoberta da verdade…protelar, sem fundamento sério, o trânsito do julgado da decisão”.
  29) Ora, da prova que se fez não constou que a Recorrente tenha ocultado para seu próprio proveito, a intenção com que celebrou o contrato em causa.
  30) Convenhamos que de se explicar uma situação e relacioná-la com factos jurídicos e cominar uma aparente contradição com litigância de má fé, parece-nos uma medida excessiva.
     
Face ao exposto, requer, seja revogada a sentença ora recorrida, determinando-se a procedência dos pedidos da petição inicial, e a absolvição da Recorrente da condenação de litigância de má fé.
     

    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
- Em 30 de Dezembro de 2007, por acordo da encomenda de fracção habitacional da Villa ...... celebrado entre a autora e SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA, a primeira encomendou à última a fracção habitacional ... do ...º andar do Bloco ... da Villa ...... que estava a ser construída no terreno cuja concessionária (proprietária) era SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA.
   - Na altura, a Villa ...... estava a ser construída e a fracção em causa não foi completada.
   - Conforme o acordo da encomenda de fracção habitacional da Villa ...... referido, cabe à autora assinar com SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA um outro contrato-promessa de compra e venda da Villa ...... sobre a fracção referida.
   - Em 22 de Setembro de 2012, a autora e os 1ª e 2º réus celebraram o contrato provisório de compra e venda, no qual se designaram a autora como vendedora e os 1ª e 2º réus como compradores e se fixou o preço da fracção no montante de HKD$9,400,000.00, equivalente a MOP$9,682,000.00.
   - Em fls. 2 do contrato provisório de compra e venda acima mencionado, o elaborador do contrato preencheu por erro os nomes da autora (B), dos 1ª (C) e 2º réus (D) respectivamente nos espaços de “assinatura da vendedora (1ª parte)” e “assinatura de compradores (2ª parte)”, deste modo, o que se encontra nesses espaços não é assinatura da autora e dos 1ª e 2º réus.
   - A autora e a 1ª ré assinaram respectivamente nos espaços de “nome de outorgante” em 2ª fls. do contrato provisório de compra e venda.
   - Consta do contrato provisório de compra e venda referido somente a assinatura da autora e da 1ª ré, sem a assinatura do 2º réu.
   - Em 23 de Novembro de 2012, a autora e SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA celebraram o contrato-promessa de compra e venda da Villa ...... sobre a fracção em causa.
   - No contrato referido, a autora era a adquirente/ promitente-comprador da fracção, consta do documento a assinatura da autora e do representante da SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA, não tendo nada a ver com os 1ª e 2º réus.
   - Conforme o art.º 5.º do acordo da encomenda de fracção habitacional da Villa ......, “sempre que esteja prescrito o prazo de pagamento previsto, a 2ª parte (autora) deve realizar a tempo o pagamento, senão, considera-se que a 2ª parte viola o acordo e perde o sinal, a 1ª parte (SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA) terá direito de confiscar todo o dinheiro pago pela 2ª parte (autora), arrecadar gratuitamente a fracção adquirida pela 2ª parte (autora) e vendê-la ao terceiro, a 2ª parte (autora) não pode reclamar ou demandar qualquer indemnização. Ou seja, a 2ª parte (autora) deve renunciar incondicionalmente todos os direitos.”
   - Conforme o art.º 9.º do acordo da encomenda de fracção habitacional da Villa ......, “se a 2ª parte (autora) quiser vender a fracção antes da celebração da escritura pública oficial de compra e venda (designado simplesmente por “celebração da escritura”), só pode fazê-lo após obter o consentimento da 1ª parte (SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA) e paga uma comissão no valor de 1% do preço do presente contrato à 1ª parte (SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA) para alterar o comprador.”
   - Até agora, a autora e SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA ainda não celebraram a escritura pública oficial da fracção nem fizeram o registo predial.
   - SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA ainda é a proprietária dessa fracção.
   - Ao celebrar o contrato provisório de compra e venda entre a autora e os réus em 22 de Setembro de 2012, a proprietária da fracção era SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA, mas não a autora.
   - Na altura, a autora limitou-se a encomendar (prometer comprar) à SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA a fracção em causa, não foi a proprietária da fracção.
   - Antes de celebrar o contrato provisório de compra e venda referido, a autora exibiu aos réus o acordo da encomenda de fracção habitacional da Villa ...... assinado em 30 de Dezembro de 2007 pela autora e SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA.
   - Antes de assinar o contrato provisório de compra e venda, os réus sabiam bem que SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA era a proprietária da fracção e a autora se limitou a encomendar (prometer comprar) à SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA essa fracção.
   - A 1ª ré não exibiu nem entregou qualquer documento para provar que ela tinha o direito de representar o 2º réu para celebrar e assinar o contrato provisório de compra e venda referido.
   - O 2º réu não praticou qualquer acto para ratificar o contrato provisório de compra e venda.
    
    III – FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
- Inexistência de falta de legitimidade e nulidade do contrato;
- Falta de assinatura do 2º réu;
- Falta de consentimento do concessionário;
- Litigância de má-fé.

2. As questões que vêm suscitadas foram já abordadas e correctamente tratadas na douta sentença recorrida. Por isso, ao abrigo do disposto no artigo 631º, n.º 5 do CPC remetemo-nos para o texto daquela sentença, que passamos s transcrever:
“A autora intentou a presente acção e pediu que seja declarado nulo, ou anulado o contrato provisório de compra e venda celebrado em 22 de Setembro de 2012, ou declarado que o contrato não produz efeito por padecer de vícios legais.
Conforme a alegação da autora, ela e a SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA (adiante designada por “concessionária”), concessionária dum terreno sito em Zona da Areia Preta concedido por arrendamento, assinaram em 30 de Dezembro de 2007 um acordo da encomenda de fracção habitacional da Villa ......, encomendou a fracção autónoma ... do ...º andar do Bloco ... da Villa ......, que estava a ser construído no Terreno sito em Zona da Areia Preta S/N; em função do acordo, cumpria à autora e à concessionária celebrar no futuro um outro contrato-promessa de compra e venda. As partes assinaram em 23 de Novembro de 2012 um contrato-promessa de compra e venda da Villa ......, mas ainda não celebraram a escritura pública oficial ou fizeram o registo predial.
Em 22 de Setembro de 2012, a autora, em nome da proprietária da fracção referida, vendeu-a aos réus pelo preço de HKD$9,400,000, mas na altura só a autora e a 1ª ré assinaram o contrato, o 2º réu não assinou nem ratificou o contrato, a 1ª ré não tinha direito de representar o 2º réu para fazer a respectiva declaração.
Além disso, prevêem os contratos assinados pela autora e concessionária em 30 de Dezembro de 2007 e 23 de Novembro de 2012 que, se a autora quiser alienar a fracção ao terceiro, cabe obter o consentimento da concessionária e pagar a comissão, mas a autora não obteve o consentimento da concessionária antes ou depois de realizar a alienação referida.
De acordo com a qualificação jurídica feita pela autora, o contrato celebrado com os réus padece de três vícios.
Antes de mais, a autora não era a proprietária da fracção em questão, não tinha legitimidade de vender a fracção aos réus; portanto, nos termos do art.º 882.º do Código Civil, o contrato é nulo.
Segundo, como o 2º réu não assinou esse contrato e a 1ª ré não tinha direito de representar o 2º réu para assinar o contrato, o contrato é anulável ao abrigo do art.º 216.º do Código Civil.
No fim, ao celebrar o acordo entre a autora e a concessionária, previu-se expressamente que se a autora quiser alienar o direito de aquisição antes de estipular a escritura pública, cabe obter o consentimento da concessionária. Mas a transacção não foi realizada com observância da previsão, deste modo, o contrato é anulável ao abrigo do art.º 418.º do Código Civil.
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Vício da falta de legitimidade da autora na venda
De acordo com os factos provados, sem dúvida, a autora não era proprietária da fracção em causa, não podia vender em qualidade de proprietária a fracção aos réus.
Conforme a argumentação da autora, vendeu essa fracção aos réus através do contrato celebrado em 22 de Setembro de 2012.
Embora os réus não apresentem contestação após citados, a argumentação referida da autora é contrariada aos art.º 40.º e 41.º da petição inicial, pelo que não é tida como facto provado; além disso, analisados os documentos constantes das fls. 28 a 29, ou seja o contrato provisório de compra e venda, uma grande parte do conteúdo do contrato é formalmente imprimida, só uma pequena parte foi manualmente preenchida, umas expressões revelam que o contrato tem natureza de compra e venda, tais como o início e o fim do contrato, que têm a ver com a identificação das partes, e os 1º, 2º, 8º e 10º pontos; os 3º, 9º pontos e as observações mostram que as partes resolveram por acordo transferir aos réus a posição contratual da autora sobre a aquisição da fracção; os 5º a 7º e 11º a 13º pontos demonstram que o contrato tem natureza de promessa de compra e venda. Das circunstâncias referidas, permite-se ver que o contrato é o documento predefinido pelo intermediário, destinado às transacções de bens imóveis, podendo fazer supressão ou suplemento a alguns termos em função da transacção concreta, de forma a determinar a natureza da relação jurídica entre as partes.
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Dispõe o art.º 228.º do Código Civil:
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
  2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
  Dispõe o art.º 230.º do mesmo Código:
  1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
  2. Esse sentido pode, todavia, valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.
  No caso, como as partes não suprimiram qualquer parte imprimida para distinguir a natureza da transacção, o Tribunal não pode apurar com base nisso a natureza do contrato; contudo, de acordo com as informações manualmente escritas constantes dos 3º, 12º pontos e observações, as partes iriam proceder no futuro aos trâmites da alteração de comprador e pagar o preço restante à companhia da concessionária, deve-se tomar esses termos como fundamento principal da apreciação da natureza do contrato porque as informações foram acrescentadas de propósito ao contrato pelas partes. Nestes termos, a autora limitou-se a alienar aos réus a posição contratual da aquisição da fracção em causa, não vendeu essa fracção aos réus.
  Pelo que, a autora nunca vendeu aos réus a fracção, por acordo entre as partes recaiu sobre a autora apenas a obrigação de ir proceder no futuro aos trâmites da alteração de comprador perante a companhia da concessionária, a validade do contrato não é prejudicada pelo facto de que a autora não era proprietária da fracção.
  Pelo exposto, a autora não pode pedir declarar nulo o contrato com fundamento em que não goza da qualidade de proprietária.
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  Vício da falta de assinatura do 2º réu
  De acordo com a alegação da autora, o contrato em causa foi assinado apenas pela autora e 1ª ré, a última não tinha poder representativo de assinar o contrato em nome do 2º réu, o contrato só foi válido se o 2º réu, um dos cessionários, assinasse pessoalmente o contrato.
  A autora entende que a circunstância referida faz o contrato anulável ao abrigo do art.º 261.º do Código Civil.
  Os factos provados mostram que uma parte do contrato em causa é a autora, a outra é os réus, mas só a autora e a 1ª ré assinaram o contrato, a 1ª ré não tinha o poder de representar o 2º réu.
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  Dispõe o art.º 261.º do Código Civil:
  1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
  2. Contudo, o negócio celebrado por representante sem poderes é eficaz em relação ao representado, independentemente de ratificação, se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justificassem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do representante, desde que o representado tenha conscientemente contribuído para fundar a confiança do terceiro.
  3. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
  4. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
  5. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.
  Analisadas as circunstâncias descritas, não se pode qualificar como a 1ª ré não tinha o poder representativo o facto de que 2º réu não assinou o contrato em questão. Na verdade, não consta dos factos provados qualquer elemento que revela que a 1ª ré representou o 2º réu para fazer declaração, ou representar o 2º réu para assinar o contrato; pelo que, para julgar o caso, o Tribunal só se pode basear em que o 2º réu não assinou o contrato.
*
  Seguindo esse raciocínio acima referido, o que está em causa é: a autora alienou como alienante a posição contratual sobre a fracção aos réus, que receberam como cessionários a posição contratual da autora; apenas a autora e a 1ª ré assinaram o contrato. Cabe mencionar que, os factos provados demonstram somente que o 2º réu não assinou o contrato, não significa que o 2º réu não fez declaração de receber a posição contratual da autora.
  Nos termos do art.º 419.º do Código Civil, “A forma da transmissão, a capacidade de dispor e de receber, a falta e vícios da vontade e as relações entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão.”
  Dispõe o art.º 404.º do mesmo Código que, “1. À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. 2. Porém, a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.”
  O contrato foi estipulado por escrito, é preenchida a disposição legal sobre a forma do contrato de cessão. Além disso, já é analisado acima se a autora podia constituir a posição contratual no contrato de cessão quando não era proprietária, é apurado que não obsta à autora ceder aos réus a sua posição de promitente-comprador.
  Todavia, nestes termos, o contrato só vincula os contraentes quando eles o tiverem assinado.
  Com base nisso, como a autora assinou o contrato, incorreu em obrigação de transmitir aos réus a posição contratual da aquisição da fracção, no entanto, relativamente aos réus, só a 1ª ré assinou o contrato, só ela foi vinculada pelo contrato, ou seja tinha a obrigação de receber a posição contratual da autora sobre a aquisição do bem imóvel, enquanto que o 2º réu, como não assinou o contrato, não foi vinculado pelo contrato e não tinha qualquer obrigação.
  Simplesmente, para a autora e a 1ª ré, o contrato é bilateral, ambas elas tinham obrigações; mas para o 2º réu, o contrato é unilateral1, somente a autora e a 1ª ré tinham obrigações contratuais, ele não tinha obrigação, até gozou do direito de receber a posição contratual da autora.
  Assim sendo, o facto de que o 2º réu não assinou o contrato não constitui qualquer vício, a única consequência é que o contrato não vincula o 2º réu, mas sim fá-lo poder receber com a 1ª ré a posição contratual da autora sobre a aquisição da fracção.
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  Mesmo que qualifique o caso como a 1ª ré assinou o contrato em nome do 2º réu sem o poder representativo, o pedido da autora não procede.
  Conforme o invocado art.º 261.º do Código Civil, quando a 1ª ré não tinha poder representativo e se o 2º réu não ratificou o contrato, o contrato não vincula o 2º réu, ou seja a autora não pode pedir que o 2º réu cumpra a obrigação de receber a posição contratual da aquisição da fracção; mas para outros contraentes, ou seja a autora e a 1ª ré, o contrato tem força vinculativa.
  Deste modo, ao abrigo dos art.º 419.º e art.º 404.º n.º 2 ou do art.º 261.º n.º 1 do Código Civil, o contrato não se torna ineficaz por o 2º réu não ter assinado o contrato.
*
  Vício da falta do consentimento da concessionária
  A autora pediu anular o contrato com fundamento em que o contrato não respeita o acordo entre a autora e a concessionária relativamente a obter o consentimento da última.
  Os factos provados mostram que o acordo entre a autora e a concessionária prevê que se a autora quiser transmitir o seu direito a outrem antes de celebrar a escritura pública de compra e venda da fracção, é obrigada a obter o consentimento da concessionária, mas até hoje a última ainda não declara que concorda com a transacção entre a autora e os réus; além disso, dispõe o art.º 5.º do acordo da encomenda de fracção habitual da Villa ...... que “sempre que esteja prescrito o prazo de pagamento previsto, a 2ª parte (autora) deve realizar a tempo o pagamento, senão, considera-se que a 2ª parte viola o acordo e perde o sinal, a 1ª parte (SOCIEDADE DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO F, LIMITADA) terá direito de confiscar todo o dinheiro pago pela 2ª parte (autora), arrecadar gratuitamente a fracção adquirida pela 2ª parte (autora) e vendê-la ao terceiro, a 2ª parte (autora) não pode reclamar ou demandar qualquer indemnização. Ou seja, a 2ª parte (autora) deve renunciar incondicionalmente todos os direitos.”
  A autora entende que, por contrato provisório de compra e venda, transmitiu aos réus a posição do contrato celebrado com a concessionária, com base na condição referida, o contrato em causa só se torna efectiva quando é obtido o consentimento da concessionária, com fundamento jurídico no art.º 418.º do Código Civil.
  Dispõe o art.º 418.º do Código Civil que, “1. No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão. 2. Se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação ou reconhecimento.”
  Pode-se ver que, a lei permite expressamente aos cedente e cessionário celebrar previamente o contrato de cessão da posição contratual antes de obter o consentimento do outro contraente (vide Das Obrigações em Geral, João de Matos Antunes Varela, Volume I, pág. 398, 5ª Edição, Almedina, Coimbra), neste caso, a cessão produz o efeito previsto sempre que o outro contraente concorde supervenientemente com a transacção; ou seja, a cessão não produz efeito quando o outro contraente não declara o consentimento.
  Entretanto, cabe indicar que, a não produção de efeito não se origina necessariamente pela existência de vícios no contrato (Vide Teoria Geral do Direito Civil, Carlos Alberto da Mota Pinto, pág. 217 e 218, versão chinesa, Gabinete para a Tradução Jurídica e Faculdade do Direito da UM).
  Conforme a alegação da autora, o contrato é anulável porque a concessionária não declara o consentimento com o contrato de cessão entre as partes.
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  De acordo com João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, pág. 398, 5ª Edição, Almedina, Coimbra, “… Se, porém, não tiver havido consentimento prévio e o contraente cedido recusar o consentimento requerido, depois de efectuado o contrato de cessão, que consequências advirão da recusa.
  Uma primeira consequência é certa: a de que a cessão da posição contratual se não tem por consumada, independentemente da resposta a dar à questão (muito debatida entre os autores) de saber se o consentimento do cedido é elemento integrante do contrato de cessão ou é apenas um elemento exterior, em certo sentido semelhante à ratificação do negócio, posterior por conseguinte à plena formação do contrato.
  Desde que a transferência da posição contratual se não pode operar, por falta de um requisito insuprível como é a vontade do contraente cedido, e foi essa transmissão global que o cedente e o cessionário quiseram (unitariamente) levar a cabo, há muito quem sustente que o acordo celebrado entre estes dois contraentes é nulo e não produz nenhum efeito.
  Outros, porém (mais atreitos à concepção doutrinal que decompõe a cessão da posição contratual em duas operações distintas, embora complementares), distinguem, na transmissão global que os interessados pretendiam efectuar, entre as obrigações e os direitos de crédito do cedente: as primeiras não podem ser transmitidas sem o acordo do credor, que é o contraente cedido; os segundos podem ser transmitidos a terceiros, sem o consentimento do devedor. Na sequência desta cisão, a cessão da posição contratual não aprovada pelo contraente cedido seria nula, mas converter-se-ia, em regra, num contrato misto de cessão de crédito, por um lado, e de assunção cumulativa de dívida, por outro, ou numa adesão ao contrato ou numa cessão de contrato sem liberação do cedente.
  Como regra, não pode aceitar-se tal regime de conversão. A própria assunção cumulativa de dívida necessita do consentimento do credor, e a hipótese formulada é a de o contraente cedido (credor das obrigações nascidas do contrato básico para o cedente) ter recusado o seu consentimento ao contrato de cessão. Além disso, nada autoriza o intérprete a concluir que o cedente, não sendo exonerado das obrigações a seu cargo, esteja disposto a abrir mão definitiva e incondicionalmente dos direitos de crédito que tenha sobre o contraente cedido.”
  Adriano Vaz Serra sustenta em Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 111º que “Se não tiver havido consentimento anterior à cessão e o contraente cedido recusar o consentimento após a cessão, esta não fica completada, entendendo alguns autores que a convenção concluída entre o cedente e o cessionário é nula e ineficaz; para outros, há que distinguir entre as obrigações e os créditos do cedente, não podendo essas obrigações ser transmitidas sem o assentimento do contraente cedido, mas podendo ser transmitidos, sem tal consentimento, os créditos, pelo que a cessão da posição contratual não consentida pelo contraente cedido seria nula ou ineficaz, convertendo-se, porém, em regra, num contrato misto de cessão de crédito e de assunção cumulativa de dívida, ou numa adesão ao contrato ou numa cessão do contrato sem liberação do cedente”.
  Mas em função do acórdão de 26 de Setembro de 2002 do STJ, constante da Colectânea de Jurisprudência/Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano X, Tomo III, 2002, pág. 60, “I- Para que exista um contrato de cessão de determinada posição contratual é necessária para além das de cedente e cessionário, uma terceira vontade negocial que consinta na cessão. II- Não existindo essa terceira vontade existe porém um contrato oneroso válido e eficaz entre as partes que o celebraram, com assunção de recíprocas obrigações, podendo existir ainda uma cláusula penal para a hipótese de incumprimento faltoso de uma delas. III- Este incumprimento gera pois responsabilidade civil.”
  Se se admitam os primeiros dois entendimentos e se considere nulo o contrato de cessão da posição contratual quando não tiver havido o consentimento do outro contraente, no caso, cabe à autora argumentar e provar que: 1) a concessionária nunca concordou; 2) declarou após contacto que recusou o consentimento. Se não for exigido o 2º requisito, o contrato já foi nulo desde o início porque no dia da celebração do contrato entre a autora e os réus não foi obtido o consentimento da concessionária. Este entendimento provoca efectivamente que o cedente e o cessionário não podem chegar previamente a acordo e requerer posteriormente o consentimento do outro contraente como previsto no art.º 418.º do Código Civil.
  Os factos provados só revelam que a concessionária não declarou o consentimento, mas não demonstram que já recusou o consentimento ou as partes ainda não lhe deduziram o respectivo pedido (sic.), assim, nesta fase, o Tribunal não vê preenchido o requisito de que a concessionária não concordou.
  Se se apoie o entendimento do STJ, o contrato não vincula a concessionária porque não declarou o consentimento, mas não é afectada a validade do contrato, assim, a autora e os réus são vinculados pelo contrato.
  Deste modo, a autora não pode pedir anular o contrato com fundamento acima dito.
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  Litigância de má fé
  Ao alegar o 1º vício, a autora indicou claramente que o contrato no documento 3 (constante das fls. 28 a 29 dos autos) consiste em uma compra e venda, mas o Tribunal, ao analisar o vício de a autora não ter legitimidade de venda, com base no conteúdo do contrato próprio, dá assente que as partes só celebraram um contrato de cessão da posição contratual, mas não um contrato de compra e venda como alegou a autora.
  Embora os réus não apresentem contestação, é inequívoco que o conteúdo do documento referido só revele que o contrato somente se associa à cessão da posição contratual.
  Além disso, ao alegar o 3º vício, a autora qualificou sem reserva o contrato como alienação da posição contratual, o que é contrariado e incompatível com a qualificação do contrato como compra e venda.
  Dispõe o art.º 385.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil que:
  1. Tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa.
  2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
  a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
  b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
  c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
  d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
  A autora participou pessoalmente na transacção em causa, o documento por ele próprio entregue revela claramente a natureza do contrato, mas ainda distorceu o facto referido. Permite-se ver que a autora deduziu pretensão infundamentada quando o sabia bem.
  Nestes termos, a autora é litigante de má fé. Ponderadas as circunstâncias, o Tribunal condena-a em multa de 20UC.”
  
3. Não deixaremos, no entanto de dizer algo mais.
A primeira estranheza que emerge da pretensão da A., ora recorrente, é que ela pretenda a anulação de contratos por vícios que ela não desconhecia quando os celebrou. Se acha que esses vícios invalidam o contrato celebrado, por que razão os celebrou? Sabendo bem qual a posição jurídica e as condições em que se encontrava a fracção quando celebrou o aludido contrato?
    Em relação ao primeiro alegado vício, de alegada inexistência de falta de legitimidade e nulidade do contrato.
Basicamente, o que temos é que a A. deu uma ordem de encomenda de uma dada fracção à construtora que estava a edificar um prédio habitacional, comprometendo-se com esta a fazer mais tarde o contrato-promessa, não podendo transmitir a sua posição sem que a construtora autorizasse.
    O que faz a A.? Celebra um contrato com a 1ª Ré em que lhe promete vender aquela fracção que encomendara, em termos de um compromisso correspondente a uma negociação que tinha por objecto a fracção edificanda.
    Não há dúvida que quando a A. celebra o contrato com a 1ª Ré - vamos agora deixar de saber se foi com ambos os RR, por falta de assinatura de um deles - não era proprietária da fracção, e, portanto, não podia vender coisa que não tinha sob pena de nulidade, nos termos do art. 882º do C.C.. Toda a gente envolvida na relação jurídica contratual entre A. e RR tinha conhecimento desse facto.
    Pretende a A. que o negócio seja nulo porque terá vendido uma coisa de que não era proprietária.
    Não tem razão.
    O contrato que celebrou não se pode deixar de se entender como uma cessão da posição contratual que assumira com a F, a construtora, irrelevando a questão da configuração jurídica do contrato, se cessão da posição contratual, se contrato-promessa de coisa futura que se comprometera a adquirir, ainda que nos inclinemos para a configuração de um contrato misto de promessa e de cessão, visto o compromisso de venda que se tem de entender como promessa de transmissão de propriedade futura e a necessidade da autorização de terceiro, no caso, a vendedora.
    Como se sabe o nomen juris não é decisivo na qualificação da relação jurídica. Se as partes contratantes atribuem ao contrato celebrado uma qualificação que não corresponde ao concreto acordo celebrado, o regime jurídico a considerar não é o definido por essa qualificação, mas pela correspondência ente o conteúdo do contrato e o modelo típico que lhe corresponda. Subscreve-se aqui a posição no sentido de que “ a inadequação da designação dada pelas partes ao módulo negocial em causa resulta, não raro, de equívoco, de ignorância, mas também é susceptível de derivar da intenção de defraudar a lei, para extrair disso consequências jurídicas incompatíveis com o regime do negócio jurídico efectivamente pretendido. Nessa hipótese, deve aplicar-se o regime jurídico que resultar da interpretação das declarações negociais das partes, independentemente da designação que elas lhe atribuíram."2

Para além de que o artº 228º, nº 1 do Código Civil determina o modo como deve ser interpretado o sentido da declaração, estabelecendo o princípio da impressão do declaratário ou da normalidade do discurso, segundo o qual, a declaração vale com o sentido que o comum dos cidadãos lhe daria, se colocado na situação concreta do declaratário, pelo que in casu qualquer cidadão médio interpretaria as cláusulas do dito contrato no sentido que o referido contrato correspondia a um compromisso da chamada vendedora de lhe vender no futuro coisa que iria adquirir no futuro.

Para além, ainda, de que a pretensão da A. sempre esbarra com o disposto na 2ª parte do art. 882º do C.C., que prevê a inoponibilidade da nulidade da venda de bens alheios, ao comprador de boa-fé, tal como a não pode opor ao vendedor de boa-fé o comprador dolosa, traduzindo-se aqui a falta de boa-fé no conhecimento que ambas as partes tinham de que a A. não era a proprietária da fracção, donde, não sendo possível a qual delas invocar a nulidade, não sendo também possível dar-lhe cumprimento, não se excluiria a possibilidade de conversão do negócio, interpretando-se extensivamente a previsão da invalidade aposta no art. 286º do CC às consequências da invalidade.

Improcede assim a pretensão da nulidade do negócio a pedido da A.

   4. Vício da falta de assinatura do 2º réu
    O que desde logo ressalta neste fundamento do recurso é que seja a A. a pedir a anulação do contrato por uma razão que só ao R. que eventualmente não se sentisse parte aproveitaria.
    A este propósito também não se percebe o que pretende a A.. Por o 2º R. não ter assinado o contrato, por não resultar do contrato que a 1ª Ré tinha poderes de representação do 2º, na p.i., diz que o negócio é anulável (art. 37º da p.i.), invocando o art. 261, n.º 1 que prevê apenas a ineficácia do negócio em relação a que não esteja representado e não ratifique o negócio. Agora, nas alegações de recurso, vem falar apenas em ineficácia.
    Assim, com esta falta de rigor é muito difícil proceder ao enquadramento da pretensão da recorrente que parece não saber o que quer: anulação ou ineficácia do negócio? Se anulação, ela não está prevista na lei; se ineficácia contra o R. que não assinou, parece que o interesse nessa arguição não estará do seu lado.
    O que poderia acontecer é que se o 2º R. viesse exigir o cumprimento do contrato em relação à A., esta poderia contrapor o facto de não ter negociado com ele.
    Não se colocando a questão assim, o que transparece é que a A. está implicitamente a admitir que o R. cuja assinatura não foi aposta no contrato é parte nesse contrato.
    Perante a falta de assinatura do contrato por banda do 2º R., o que se verifica, tal como configurado na sentença recorrida, é apenas a vinculação das partes que assinaram o contrato.
    Daí não resulta a anulabilidade, tal como pedida. Quanto muito a falta de eficácia quanto ao 2º R., se considerarmos que a 1ª Ré agiu sem poderes representativos daquele.
    
   5. Vício da falta do consentimento da concessionária
    A A. pretende anular o contrato, dizendo que este estava dependente do consentimento de terceiro.
     Os factos provados mostram que o acordo entre a autora e a concessionária F previa que se a autora quisesse transmitir o seu direito a outrem antes de celebrar a escritura pública de compra e venda da fracção, seria obrigada a obter o consentimento da concessionária, o que não se verificou.
    Qual a consequência da falta desse consentimento?
    O enquadramento vertido na douta sentença, na parte acima transcrita, mostra-se irrepreensível e nada há a acrescentar.
    A falta de consentimento de terceiro na cessão de posição contratual não invalida o negócio, considerando-se que caberia à cedente providenciar pelo consentimento que seria necessário para transmitir a sua posição, não o podia ignorar, colocando-se assim na situação de incumprimento no caso de não lograr a obtenção de tal consentimento.
    6. Mais uma vez a A. pretende invalidar o contrato com fundamentos em pressupostos que não ignorava quando contratou com os RR., criando as condições para que a contraparte acreditasse na sua boa-fé e de que os pressupostos necessários à boa execução e cumprimento do contrato com eles se observassem.
    Choca que possa invocar em seu favor factos que já sabia que não se observavam ou que lhe cumpria garantir quando contratou com os RR. Pretender agora a anulabilidade de tais contratos soa a venire contra factum proprium, o que impede a invocação de invalidades do negócio que já o atingiam, afectavam, condicionavam ou “feriam de morte” aquando da sua realização, pois a A. deles já tinha conhecimento, estavam na sua disponibilidade de verificação e de concretização.
    Na verdade haverá "venire contra factum proprium" quando alguém exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente, reconduzindo-se a proibição do "venire …" à doutrina da confiança, isto é, pressupondo, como elemento subjectivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança. Em certa medida, o conteúdo da boa-fé coincide com a confiança que as partes põem no negócio celebrado, compreendendo-se a tutela do confiante e a menor protecção daquele que dá azo a essa confiança, devendo as soluções jurídicas materiais postergar as soluções formalistas.
Na apreciação do conteúdo material da boa-fé releva-se a materialidade da regulação jurídica, surgindo este princípio, historicamente, como uma reacção na luta contra o formalismo3
Estaremos então perante uma situação que a doutrina denomina de inalegabilidade dos vícios negociais por abuso de direito, construção feita a partir da nulidade por falta de forma invocada por quem para ela contribuiu. O Prof. Menezes Cordeiro, ainda que em casos bem vincados “admite hoje que as próprias normas formais cedam perante o sistema de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente inalegáveis.4
    Situação esta que não é nova nos nossos tribunais, já aqui se tendo entendido que “Seja por questões de ordem ética, decência e respeito pela parte contrária, seja por razões de índole de grave injustiça e de atropelo aos mais sãos princípios da confiança, pedir uma coisa de outrem a quem a tenha sido vendida parece ser um intolerável exercício do direito. A tutela da confiança e a “primazia da materialidade” não deixam outra solução que não seja a configuração do abuso.”5
    No caso presente, estamos em crer, para além das razões doutamente aduzidas na sentença proferida, que não deixa de chocar que a A. pretenda destruir um negócio, tirar proveito de vícios a partir de pressupostos impeditivos da sua consolidação quando à partida, quando negoceia, sabe que eles existem. É verdade que há que ser muito cauteloso e prudente na aplicação prática deste princípio, sob pena de se pôr em causa a segurança negocial que passa não só pela estabilização dos negócios, como pela sua destruição, quando se verifiquem causas invalidantes que não devem ser facilmente postas em crise.
    Só que, neste caso, esta linha argumentativa não constitui a prima ratio do julgamento da improcedência da acção, constituindo apenas um reforço adjuvante em nome da busca pela solução mais justa. Até porque os RR. nem contestaram a acção e não deixaria de ser importante saber da sua posição para se indagar cabalmente da quebra do princípio da confiança.
    Verificámos até, que nalgumas vertentes, no caso sub judice nem se observava causa de invalidade negocial. O argumento aqui usado, surge como uma adenda, algo mais que serve para enquadrar e justificar eticamente a solução dada no sentido da manutenção do negócio.
    É tudo o que há a dizer.
    
    7. Litigância de má-fé
    A Mma Juíza desenvolveu o seguinte raciocínio que conduziu à condenação da A. como litigante de má-fé:
  
    “Ao alegar o 1º vício, a autora indicou claramente que o contrato no documento 3 (constante das fls. 28 a 29 dos autos) consiste em uma compra e venda, mas o Tribunal, ao analisar o vício de a autora não ter legitimidade de venda, com base no conteúdo do contrato próprio, dá assente que as partes só celebraram um contrato de cessão da posição contratual, mas não um contrato de compra e venda como alegou a autora.
    Embora os réus não apresentem contestação, é inequívoco que o conteúdo do documento referido só revele que o contrato somente se associa à cessão da posição contratual.
    Além disso, ao alegar o 3º vício, a autora qualificou sem reserva o contrato como alienação da posição contratual, o que é contrariado e incompatível com a qualificação do contrato como compra e venda.
    Dispõe o art.º 385.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil que:
    1. Tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa.
    2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
    a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
    b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
    c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
    d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
    A autora participou pessoalmente na transacção em causa, o documento por ele próprio entregue revela claramente a natureza do contrato, mas ainda distorceu o facto referido. Permite-se ver que a autora deduziu pretensão infundamentada quando o sabia bem.
    Nestes termos, a autora é litigante de má fé. Ponderadas as circunstâncias, o Tribunal condena-a em multa de 20UC.”
    
    A recorrente diz que ficou bem clara a sua posição no sentido de que o que houve foi uma cessão e não há contradição entre o por si alegado no art. 40 e 41º.
    É verdade o que afirma e é verdade que o enquadramento feito pelo Tribunal é o que o contrato consubstanciou uma cessão de posição contratual, tendo nós considerado que havia um misto de contrato-promessa e de cessão.
    Para o caso pouco importa.
    Também não é menos certo que, não obstante, a recorrente insistir que também ela assim entendeu, no sentido da transmissão da posição que adquirira em relação à fracção, não deixou de formular um pedido de nulidade de compra e venda por não poder vender uma coisa que não era sua.
É uma postura que denota erro de enquadramento e não se leva à conta de uma má-fé processual. Podemos talvez interpretar assim; a recorrente celebrou um contrato infeliz em que diz que efectua uma venda, que infelizmente apoda de venda e de provisória. A partir desse elemento objectivo, a relevar-se o texto do contrato, sabendo todos os contratantes que a recorrente não era a proprietária da coisa, pede a nulidade do contrato. Se assim não se entender, tanto mais que ela própria entende ter havido apenas uma cessão da posição contratual, avança para a anulabilidade.
Não estaremos bem perante uma situação de má-fé e somos a desculpar o erro da parte, ao fazer uma leitura e tentar a sua sorte baseando-se apenas na letra do contrato.
Daí que se afaste, no limite, a sua condenação como litigante de má-fé, à luz da previsão da norma acima transcrita.
    IV – DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em conceder apenas provimento ao recurso, na parte respeitante à litigância da má-fé, revogando-se a condenação da A., ora recorrente, proferida a esse título, decidindo, no mais, pelo não provimento do recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente .
Macau, 26 de Março de 2015,

(Relator)
João A. G. Gil de Oliveira

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng

(Segundo Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
1 Vide Teoria Geral do Direito Civil, Carlos Alberto da Mota Pinto, pág. 217 e 218, versão chinesa, Gabinete para a Tradução Jurídica e Faculdade do Direito da UM; Das Obrigações em Geral, João de Matos Antunes Varela, Volume I, pág. 377 a 380, 7ª Edição, Almedina, Coimbra.
2 - Ac. RL, de 27/5/2010, Proc. n.º 5623/09.0TBVNG.P1; neste sentido, Galvão Telles e Januário Gomes, in C.J., Ano XV, Tomo 2, pág. 23 e ss
3 -Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, §§ 49º e 50º
4 - Tratado de Direito Civil Português, I Volume, Parte Geral, Tomo IV, 311.

5 - Ac. TSI, de 29/5/2014, Proc. n.º 98/2014
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620/2014 1/34