Processo nº 405/2015 Data: 21.05.2015
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Acidente de viação.
Danos não patrimoniais.
Indemnização.
SUMÁRIO
1. Os “danos não patrimoniais” são aqueles que afectam a personalidade, o corpo ou a vida, na sua dimensão complexa biológica e mental, física e psíquica, e que, “pela sua gravidade, merecem a tutela do direito”.
2. A indemnização por danos não patrimoniais tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer.
Visa, pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu”, inadequados sendo “montantes simbólicos ou miserabilistas”, sendo igualmente de se evitar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”, exigindo-se aos tribunais, com apelo a critérios de equidade, um permanente esforço de aperfeiçoamento atentas as circunstâncias (individuais) do caso.
3. A reparação dos “danos não patrimoniais” não visa uma “reparação directa” destes, pois que estes – “danos não patrimoniais” – são insusceptíveis de serem contabilizados em dinheiro, sendo pois que com o seu ressarcimento se visa tão só viabilizar um lenitivo ao lesado, (já que é impossível tirar-lhe o mal causado).
Trata-se de “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar aqueles danos não patrimoniais, compensando as dores, desgostos e contrariedades com o prazer derivado da satisfação das referidas necessidades.
Visa-se, no fundo, proporcionar à(s) pessoa(s) lesada(s) uma satisfação que, em certa medida possa contrabalançar o dano, devendo constituir verdadeiramente uma “possibilidade compensatória”, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.
4. São de ponderar circunstâncias várias, como a natureza e grau das lesões, suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e o grau de risco inerente, os internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspectivas para o futuro, entre outras…
5. Em caso de julgamento segundo a equidade, (em que os critérios que os tribunais devem seguir não são fixos), devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 405/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão datado de 06.03.2015 do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, pela prática de um crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelos art°s 142°, n.° 3 e 138°, al. c) e d), do C.P.M., e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses.
No que toca ao “pedido de indemnização civil” pela ofendida B enxertado no processo diz respeito, decidiu o Colectivo julgá-lo parcialmente procedente, condenando a demandada “C INSURANCE COMPANY LIMITED” (C保險有限公司) a pagar à demandante o montante total de MOP$1,030,869.00, sendo MOP$800,000.00 a título de danos não patrimoniais, e (os restantes) MOP$230,869.00, a título de danos patrimoniais; (cfr., fls. 218 a 223 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Tempestivamente, e porque inconformada, veio a damandada seguradora recorrer.
Motivou para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“A recorrente insurge-se com o montante atribuído a título de danos morais, por não se poder conformar com a falta de fundamentação do acordão na determinação deste montante indemnizatório e com o seu elevado e exagerado montante;
2-Na verdade, o Acordão recorrido peca por total e completa ausência de fundamentação do motivo porque foi concedido à ofendida o montante de MOP$800.000,00 a título de danos morais.
6-Ora, o montante a ser arbitrado deveria tê-lo sido com base em critérios de justiça e equidade, em face das circunstâncias dadas por assentes no texto da decisão recorrida, aos valores constantes da jurisprudência da R.A.E.M. e à luz dos critérios previstos nos artigos 487°e 489° do Código Civil, o que não aconteceu nos presentes autos, violando por isso o douto Acordão o disposto nas identificadas normas legais;
7- O valor atribuído aos danos não patrimoniais deverá ser reduzido para uma quantia que se situe à volta das MOP$400.000,00, atendendo aos danos sofridos pela lesada.
8- O valor encontrado pelo douto colectivo é demasiado elevado face aos valores correntemente atribuídos em situações semelhantes pelo que não deverá ser mantido”; (cfr., fls. 231 a 242).
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Respondendo, veio a demandante dizer o que segue:
“A - Entende a Recorrida que a sentença recorrida não merece qualquer reparo, nem padece de nenhum dos apontados vícios - erro notário na apreciação da prova e erro na aplicação da lei -, tendo o Tribunal a quo arbitrado o montante de indemnização a título de danos não patrimoniais de acordo com os factos que, fundamentadamente, deu como provados e tendo em devida conta os imperativos de justiça e de equidade que, no caso, manifestamente se fazem sentir.
B - Na verdade, contrariamente ao que sustenta a Recorrente, não existe na lei a definição de nenhum critério concreto para cálculo de uma indemnização por danos não patrimoniais.
C - Tendo em conta a própria natureza dos danos não patrimoniais, o critério ou a bitola para o apuramento da compensação a esse título resultará sempre da situação concreta e, nessa medida, dos factos que o Tribunal considerou provados.
D - Com efeito, resulta da sentença recorrida que o Tribunal a quo deu como provados todos os factos que fundamentam o pedido de indemnização cível com excepção do facto de a ora Recorrida ter ficado um dia de coma.
E - Considerando a extensa lista de factos provados do pedido de indemnização civil - os quais foram devidamente atestados perante a prova documental (onde se incluem diversos relatórios médicos), testemunhal e também pericial produzida nos autos -, e as razões de direito expostas pelo Tribunal a quo em sede de fundamentação da sentença, dúvidas não existem de que a sentença recorrida não padece de omissão de fundamentação e muito menos de qualquer erro notório na apreciação da prova.
F - As consequências do acidente de que foi vítima a ofendida foram muito graves, não merecendo ser menosprezadas tal como se faz no recurso que motiva a presente resposta.
G - E repare-se que a Recorrida estimou e pediu ao Tribunal indemnização por danos morais no valor de MOP$1.000.000,00, com base numa incapacidade que estimou encontrar-se na ordem de 50%. O Tribunal a quo ao arbitrar indemnização por danos morais em MOP$800.000,00 reduziu em 20% o valor peticionado, quando a percentagem de incapacidade permanente difere apenas em 15% em relação ao previamente alegado pela Recorrida.
H - Ora, uma incapacidade permanente de 35%, atentas as condições pessoais da ofendida, é uma incapacidade altamente limitativa, o que não poderá de deixar de ser valorado, também em sede de arbitramento da indemnização por danos não patrimoniais ou morais.
I - Com 58 anos à data dos factos, à Recorrida, possível e provavelmente, ainda sobram muitíssimos anos - quem sabe mais de 30 anos (?!) - para se defrontar com as inúmeras limitações físicas (sobretudo, motoras) e dores que hoje sofre em virtude do acidente de viação de que foi vítima.
J - Depois, contrariamente à ideia que se passa no recurso, o facto de ser de condição económica remediada em nada diminui as dores e o sofrimento da ofendida, perante quem quer que seja que sofresse de iguais danos.
K - Pelo contrário, o facto de até à data nunca ter recebido qualquer ajuda ou montante a título de compensação, apenas tem criado mais dificuldades e sofrimento à ofendida, agravando o seu sentimento de impotência e assim as necessidades de compensação.
L – Pelo que, no caso, é manifesto que foram muito graves as consequências do acidente de que vitimou a ofendida e que se impõe uma adequada compensação, nos termos que já foram devidamente ponderados pelo Tribunal a quo, o qual fez uma correcta aplicação do disposto nos artigos 489°, 487° e 560° do Código Civil”; (cfr., fls. 256 a 268).
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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I..
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 219-v a 221, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a demandada seguradora recorrer do segmento decisório ínsito no Acórdão do T.J.B. que a condenou no pagamento de MOP$1,030,869.00 à demandante dos presentes autos.
Sendo que em tal montante se inclui o de MOP$800,000.00, fixado a título de indemnização por “danos não patrimoniais” pela demandante sofridos (com o acidente de viação pelo qual foi o arguido condenado), diz, apenas e em síntese, que é tal montante “excessivo”, pedindo a sua redução para MOP$400,000.00, o que não é aceite pela demandante ora recorrida.
Sendo apenas esta a “questão” colocada e sobre a qual cumpre decidir (já que inexistem outras de conhecimento oficioso), vejamos, sem demoras, a quem assiste razão.
Como é sabido, os “danos não patrimoniais” são aqueles que afectam a personalidade, o corpo ou a vida, na sua dimensão complexa biológica e mental, física e psíquica, e que, nos termos do art. 489°, n.° 1 do C.C.M., “pela sua gravidade, merecem a tutela do direito”.
Sobre esta matéria, teve já este T.S.I. oportunidade de se pronunciar, considerando-se, nomeadamente, que “a indemnização por danos não patrimoniais tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer.
Visa, pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu”, (cfr., v.g., o Ac. de 15.05.2015, Proc. n° 26/2014), sendo também de considerar que em matérias como as em questão, inadequados são “montantes simbólicos ou miserabilistas”, (vd., M. Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, II, Direito das Obrigações, III, pág. 755, onde se afirma que “há que perder a timidez quanto às cifras…”), não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”, (cfr., v.g., o Ac. de 09.10.2014, Proc. n.° 607/2014), exigindo-se aos tribunais, com apelo a critérios de equidade, um permanente esforço de aperfeiçoamento atentas as circunstâncias (individuais) do caso.
Na verdade, a reparação dos “danos não patrimoniais” não visa uma “reparação directa” destes, pois que estes – “danos não patrimoniais” – são insusceptíveis de serem contabilizados em dinheiro, sendo pois que com o seu ressarcimento se visa tão só viabilizar um lenitivo ao lesado, (já que é impossível tirar-lhe o mal causado).
Trata-se de “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar aqueles danos não patrimoniais, compensando as dores, desgostos e contrariedades com o prazer derivado da satisfação das referidas necessidades.
Visa-se, no fundo, proporcionar à(s) pessoa(s) lesada(s) uma satisfação que, em certa medida possa contrabalançar o dano, devendo constituir verdadeiramente uma “possibilidade compensatória”, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Porém, e como sabido é, o C.C.M., não enumera os “danos não patrimoniais”, confiando ao Tribunal o encargo de os apreciar no quadro das várias situações concretas e atento o estatuído nos seus art°s 489° e 487°; (em recente Acórdão do T.R.G. de 19.02.2015, Proc. n.° 41/13, in www.dgsi.pt, consignou-se que “são de ponderar circunstâncias várias, como a natureza e grau das lesões, suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e o grau de risco inerente, os internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspectivas para o futuro, entre outras…”).
Nos temos do n.° 3 do art. 489° do dito C.C.M.: “o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; (…)”.
Por sua vez, prescreve o art. 487° deste mesmo Código que: “quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.
No caso, diz a recorrente que “excessivo” é o montante fixado, alegando que a ofendida/demandante é de “situação económica baixa e de idade avançada”.
Pois bem, não se mostra de acolher tais argumentos.
Admite-se que uma pessoa com pouco menos de 60 anos de idade não seja uma “pessoa nova” e que seja uma pessoa com “alguma idade”, mas, (face até aos últimos índices da média de vida na R.A.E.M., que ronda os 75/80 anos de vida), adequado não nos parece de a considerar como uma pessoa de “idade avançada”.
Outrossim – e também aqui, admitindo que a alegada “situação económica do lesado” não colida com o “princípio da igualdade”, (neste sentido, cfr., v.g. os Acs. do S.T.J. de 24.04.2013 e de 07.05.2014, Procs. n.° 198/06 e 1070/11, podendo-se ainda sobre a questão ver F. Matos, na R.L.J. Ano 143°, n.° 3984, pág. 194 e segs.) – importa atentar que, como decidiu o Vdo T.U.I.:
“(…) a indemnização será tanto maior quanto melhor for a situação económica do agente e tanto menor quanto melhor for a situação económica do lesado”; (cfr., o Ac. de 17.12.2009, Proc. n.° 32/2009).
No caso dos autos, certo sendo que o acidente de viação ocorreu em 01.02.2013, provado está – nomeadamente – que em resultado do acidente, a ofendida:
– sofreu contusão cerebral e hematoma intracerebral no temporal direito; fracturas do planalto tibial medial lateral esquerdo e contusão do ligamento colateral; fractura da 4ª costela axilar anterior esquerda; contusão no joelho direito (ruptura do ligamento cruzado posterior e medial proximal e contusão lateral do ligamento colateral), e múltipla abrasão dos tecidos moles;
– foi levada para o Hospital Kiang Wu, onde foi tratada e submetida a cirurgia à tíbia esquerda, tendo permanecido internada por mais de 3 meses;
– enquanto internada, precisou de utilizar suportes de fixação, não conseguindo ficar de pé, enfrentando dores e tendo de ficar sempre deitada precisando da ajuda diária para se levantar, ir à casa de banho, lavar-se, comer, etc., causando-lhe o sofrimento e a vergonha de não poder fazer nada sozinha;
– as dores que teve por causa do acidente causaram-lhe insónias, o que a impedia de dormir, ou dormindo pouco por ser acordada pelas dores;
– ainda tem de se deslocar com frequência ao hospital para consultas;
– precisou de usar cadeira de rodas, e só a partir do mês de Agosto de 2013 é que pôde utilizar muletas para se deslocar;
– não consegue ficar de pé, nem andar durante muito tempo, pois sente dores crónicas;
– continua a ter dificuldades em dormir, e quando anda na rua, tem medo de ser novamente atropelada;
– ainda não recuperou totalmente, necessitando de ser submetida a uma outra operação;
– padece de uma incapacidade parcial permanente de 35%;
– antes do acidente trabalhava como empregada de limpeza, auferindo o vencimento mensal de MOP$6.000,00.
E, assente estando também que foi o arguido o único e exclusivo culpado pela eclosão do acidente, quid iuris?
Ora, ponderando em tudo quanto se deixou exposto, tendo em conta, em especial, o sofrimento que a ofendida teve de suportar, e que, infelizmente, irá continuar a ter, até mesmo com a “incapacidade parcial permanente”, e com isto, (para, abreviar), a certamente diminuída “qualidade de vida” que passará a ter pelos restantes anos da sua vida, cremos que “excessivo” não é o montante de MOP$800.000,00 fixado como indemnização dos seus danos não patrimoniais.
Aliás, como decidiu o S.T.J. em Ac. de 18.03.2010, Proc. n.° 1786/02, e cremos ser de subscrever, “em caso de julgamento segundo a equidade (em que «os critérios que os tribunais devem seguir não são fixos»), «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida””.
Afigura-se-nos ser o caso dos autos, entendendo-se pois que a decisão recorrida não merece censura devendo assim ser confirmada.
Decisão
4. Face ao expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Macau, aos 21 de Maio de 2015
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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