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Proc. nº 104/2014
(Autos de Recurso Jurisdicional Contencioso Administrativo)

Data: 21 de Maio de 2015

Assunto:
- Reposição das quantias
- Responsabilidade disciplinar

SUMÁRIO:
- A inexistência e não comprovação da responsabilidade disciplinar não afectam a obrigação da reposição, uma vez que a responsabilidade disciplinar é irrefutavelmente distinta da obrigação/responsabilidade da reposição de verbas indevidamente recebidas, não obstante ambas emergentes da mesma origem.
O Relator,
Ho Wai Neng









Proc. nº 104/2014
(Autos de Recurso Jurisdicional Contencioso Administrativo)

Data: 21 de Maio de 2015
Recorrente: A
Objecto do Recurso: Despacho que decidiu a suspensão da instância

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por despacho de 21/10/2013, o Tribunal Administrativo da RAEM determinou a suspensão da instância até decisão a proferir e transitada em julgado nos autos de Recurso Contencioso nº 219/2010 deste TSI.
Dessa decisão, vem o Recorrente A interpor o presente recurso jurisdicional, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. Entendeu o Tribunal a quo que "existe, indubitavelmente, uma dependência interna e conexa entre os vários actos praticados pelo Exmo. Sr. Chefe do Executivo, Sr. Secretário para a Economia e Finanças e a entidade recorrida. O referido acto do Exmo. Sr. Chefe do Executivo [acto de 29 de Janeiro de 2010] foi objecto de recurso contencioso junto do TSI sob o processo n.º 219/2010 no qual será discutido o sentido bem ainda o alcance desse acto, cuja decisão poderá ter repercussões no prosseguimento dos presentes autos, sobretudo em controvérsia do presente litígio a natureza do acto recorrido, ou seja, o acto recorrido fosse "acto de execução" ou "acto consequente" daquele acto praticado pelo Exmo. Sr. Chefe do Executivo, considerando ainda a conexão dos referidos actos poderia conduzir à inutilidade superveniente da presente lide, ao abrigo dos art.º 122.º, n.º 2, alínea i) do C.P.A. e art.º 84.º, alínea e) do C.P.A.C.. Pelo que, e ao abrigo do art.º 223.º, n.º 1 do C.P.C., ex vi do art.º 1.º do C.P.A.C., determina-se a suspensão da presente instância até decisão a proferir e transitar em julgado nos autos de Recurso Contencioso com processo n.º 219/2010 do TSI" - conforme se pode ler na decisão recorrida.
B. O acto administrativo objecto do recurso contencioso de anulação que deu origem aos presentes autos diz respeito a um despacho da autoria da Directora dos Serviços de Finanças exarado sobre a Informação n.º 018/DIR/2011, datado de 14 de Julho de 2011, que mandou proceder à reposição das importâncias indevidamente recebidas, num total de MOP1.058.660,00, por tais quantias excederem alegadamente o limite de remuneração anual máximo estabelecido no artigo 176.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro ("ETAPM");
C. Por sua vez, o Despacho do Exmo. Sr. Chefe do Executivo de 29 de Janeiro de 2010 foi proferido no âmbito do Processo Disciplinar no qual o Recorrente foi arguido, tendo tal acto determinado a condenação daquele na pena disciplinar de suspensão graduada em 120 dias - esse acto foi impugnado judicialmente, encontrando-se o recurso contencioso de anulação pendente nesse Tribunal, sob o n.º 219/2010;
D. Entende o Recorrente que o sobredito Despacho de 29 de Janeiro de 2010 do Chefe do Executivo não tem relação com o acto ora recorrido, pois não incumbiu a DSF de proceder à instrução do procedimento administrativo destinado à efectivação da reposição das quantias recebidas, não sendo este último um acto consequente ou de execução daquele;
E. O Despacho em causa começa logo por delimitar o âmbito da decisão ali tomada ao indicar que é proferido ao abrigo do disposto no artigo 322.º do ETAPM, que corresponde exclusivamente à aplicação das penas de suspensão, aposentação compulsiva e demissão e não à determinação de reposição de quaisquer importâncias;
F. É certo que o autor do acto diz ali que o teor do Relatório Final "merece a minha concordância", mas também é certo que, de seguida, esclarece e determina de que forma concorda com tal Relatório, ao dizer que aplica "ao arguido a pena de suspensão graduada em 120 (cento e vinte) dias, prevista nos artigos 300.º, n.° 1, alínea c), 303.º, n.º 2, alínea a) e 314.º, n.º 3, e tendo ainda presente o disposto no artigo 316.º, n.º 2, todos do ETAPM", nada dizendo quanto à alegada reposição de dinheiros;
G. Se é pacífico que, quanto à sua fundamentação, o acto administrativo pode remeter para pareceres, documentos anexos ou outros, é também indiscutível que o conteúdo ou o sentido da decisão e o respectivo objecto tem que constar expressamente do acto, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 113.º do CPA, sob pena de o particular não compreender o alcance da decisão tomada;
H. Daí que o acto em causa tenha concordado e dado por integrado o Relatório Final, mas depois tenha expressamente determinado o sentido concreto da decisão e o respectivo objecto, ou seja, a aplicação de uma sanção disciplinar de suspensão graduada em 120 dias - nada mais, nada menos;
I. Resulta, assim, que o acto de Sua Excelência o Chefe do Executivo (que, no entendimento da Entidade Recorrida, a teria incumbido de proceder à reposição de importâncias e do qual depende, no entendimento do Tribunal a quo, o acto recorrido) não contém, afinal, qualquer decisão sobre a aludida reposição - ao contrário do que acontece com a decisão de punir disciplinarmente o Recorrente que, apesar de também proposta no Relatório Final com o qual o acto concordou, foi expressamente tomada pelo autor daquele acto;
J. Mais, o acto não contém qualquer referência a qualquer normativo legal que determine a reposição de dinheiros - também ao contrário do que acontece com a decisão punitiva, cujos artigos são expressamente ali citados;
K. Acresce ainda que não há qualquer referência à DSF no despacho em causa, nem tão pouco é ordenada a remessa do processo para aquela entidade;
L. Do que se expôs, resulta que o processo disciplinar que culminou com o Despacho do Chefe do Executivo de 29 de Janeiro de 2010 pode ter despoletado a abertura do processo administrativo para reposição de dinheiros junto da DSF, na medida em que foi no âmbito desse processo que se terá verificado que o Recorrente teria, alegadamente, ultrapassado o limite máximo anual de remuneração, mas claramente não foi o Despacho do Chefe do Executivo que incumbiu a DSF de proceder a tal reposição;
M. Neste sentido, o acto aqui recorrido não está na dependência do acto do Chefe do Executivo, não havendo, deste modo, qualquer causa prejudicial que justifique a suspensão dos presentes autos;
N. Noutros processos em tudo semelhantes, envolvendo outra arguida no processo disciplinar e no processo de reposição de quantias, já esse Tribunal se pronunciou pelo carácter autónomo do acto aqui recorrido, sendo este acto (e não qualquer outro) o acto principal e, como tal, recorrível no que diz respeito à liquidação de montantes alegadamente a repor - conforme Acórdãos n.º 18/2013, de 9 de Maio de 2013 e n.º 208/2010, proferido 2 de Dezembro de 2010;
O. Mais, e salvo o devido respeito, entende o Recorrente que cabe ao Tribunal a quo decidir nos presentes autos a natureza (jurídica) do acto recorrido, ou seja, como eventual "acto de execução" ou "acto consequente" do acto do Chefe do Executivo ou, ainda, como é opinião do Recorrente, como acto administrativo autónomo e recorrível, não sendo tal questão objecto do recurso contencioso n.º 219/2010, como parece defender a decisão recorrida;
P. Com efeito, a decisão efectiva de mandar repor quantias consta do acto recorrido praticado pela Directora dos Serviços de Finanças mandando proceder à reposição das importâncias indevidamente recebidas;
Q. Este acto, o praticado pela Directora dos Servicos de Finanças, é, efectivamente, o único acto administrativo em todo o processo administrativo que manda repor quantias e que é dirigido ao Recorrente;
R. O acto do Chefe do Executivo foi dirigido ao Recorrente, mas nunca mandou repor quaisquer quantias; e o acto do Secretário para a Economia e Finanças (que nem está em causa para efeitos da causa prejudicial considerada pelo Tribunal a quo) é apenas um acto interno que toma conhecimento da liquidação dos montantes a repor e que não se destinava, nem foi notificado ao Recorrente;
S. Foi, assim, com a prática do acto recorrido que se consolidou a decisão de reposição e se definiu a situação jurídica do Recorrente, verificando-se, nesse momento, os efeitos externos e imediatos do acto administrativo relevante para este propósito, pelo que este acto não é, nem pode ser, um mero acto de execução ou acto consequente de qualquer acto anterior;
T. Mais, a suspensão da presente instância não só não faz suspender o pagamento das prestações mensais a que o Recorrente está obrigado por via da ordem de reposição de dinheiros contida no acto recorrido, como arrasta para momento muito posterior a decisão sobre a validade ou não do acto que manda repor essas quantias, em prejuízo do Recorrente e do seu agregado familiar, que assim se vê obrigado a continuar a liquidar as referidas prestações mensais, com grande sacrifício económico (conforme consta dos documentos juntos), sem que tenha direito a ver a legalidade de tal decisão apreciada num futuro próximo;
U. Deste modo, o Tribunal a quo andou mal ao considerar que a decisão a proferir nos presentes autos depende da decisão a proferir nos autos de recurso contencioso n.º 219/2010, como também não teve em causa o prejuízo que a suspensão da instância causa ao ora Recorrente - viola, assim, a decisão recorrida o artigo 223.° do CPC;
V. Ainda, e por mera cautela, na medida em que não terá sido fundamento da decisão de suspensão da presente instância, sempre se impugna a decisão recorrida na parte em que afirma estar o acto recorrido dependente ou em conexão com o acto do Secretário para a Economia e Finanças, na medida em que aquele não pode ser visto ou entendido como acto consequente ou de execução deste último;
W. Por último, entende ainda o Recorrente que a junção dos Docs. n.ºs 1 a 7 às presentes alegações de recurso justifica-se, nos termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 616.º do CPC, aplicável por via do artigo 148.° do CPAC, na medida em que se tornaram necessários para justificar o prejuízo causado com a decisão recorrida.
*
O Ministério Público é de parecer pela procedência do presente recurso jurisdicional, a saber:
   “No douto despacho recorrido de fls.763 e verso, a MMª Juiz a quo determinou, ao abrigo do art.233º n.º1 do CPC ex vi do art.1º do CPAC, a suspensão da instância do Processo do Recurso Contencioso n.º885/11-ADM até decisão a proferir e transitar no autos de Recurso Contencioso com Processo n.º219/2010 desse TSI, cujo objecto se consubstancia no despacho do Exmo. Senhor Chefe do Executivo de 29/01/2010.
   Fundamentando a sua decisão de suspender a instância, doutamente disse a MMª Juiz a quo: Como se explicou do despacho de fls.752 e verso, existe, indubitavelmente, uma dependência interna e conexa entre os vários actos praticados por Exmº Sr. Chefe do Executivo, Sr. Secretário para a Economia e Finanças e a entidade recorrida. O referido acto do Exmº Sr. Chefe do Executivo foi objecto de recurso contencioso junto do TSI sob o processo n.º 219/2010 no qual será discutido o sentido bem ainda o alcance desse acto, cuja decisão poderá ter repercussões no prosseguimento dos presentes autos, sobretudo em controvérsia do presente litígio a natureza do acto recorrido, ou seja, o acto recorrido fosse “acto de execução” ou “acto consequente” daquele acto praticado pelo Exmº Sr. Chefe do Executivo, considerando ainda a conexão dos referidos actos poderia conduzir à inutilidade superveniente da presente lide, ao abrigo dos art.º 122.º, n.º 2, alínea i) do C.P.A. e art.º 84.º, alínea e) do C.P.A.C..
   Com muito respeito pela opinião diferente, e em homenagem com a sensata jurisprudência fixada pelo Venerando TSI no Acórdão prolatado, por unanimidade, no Processo n.º18/2013, afigura-se-nos procedente o presente recurso jurisdicional.
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   Repare-se que no seu despacho datado de 29/01/2010 (vide. fls.91 dos autos), o Exmo. Sr. Chefe do Executivo aplicou à recorrente a pena disciplinar de suspensão de 120 dias, alegadamente prevista nos arts.300.º/1-c), 303.º/2-a) e 314.º/3, «e tendo presente ainda o disposto no artigo 316.º, n.º 2, todos do ETAPM.»
   Interpretando em harmonia com a Informação n.º018/DIR/2011 e o ofício n.º10013/DAF/2011 (docs. de fls.72 a 89 e 58 a 61 dos autos), podemos ter por adquirido que o despacho contenciosamente impugnado nestes autos consiste em ordenar a recorrente à reposição das verbas indevidamente recebidas pela mesma, nos termos do n.º1 do art.34.º do R.A. n.º6/2006 na redacção introduzida pelo R.A. n.º28/2009, por tais verbas ultrapassar o «limite anual máximo» consignado no n.º1 do art.176.º do ETAPM.
   No plano do direito substantivo, a responsabilidade disciplinar é irrefutavelmente distinta da obrigação/responsabilidade da reposição de verbas indevidamente recebidas – sendo mesmo ambas emergentes da mesma origem. Nesta medida, o acto da Directora da DSF não pode ser encaixado no acto de execução ou acto consequente do aludido despacho do Exmo. Senhor Chefe do Executivo de 29/01/2010.
   Com efeito, a inexistência e não comprovação da responsabilidade disciplinar não afectam a obrigação da reposição. Daí não é difícil prever que a improcedência do recurso contencioso do despacho do Exmo. Sr. Chefe do Executivo de 29/01/2010 não tem virtude de garantir a sanidade ou validade do despacho da Directora da DSF, e a anulação daquele acto não determina a inevitável nulidade ou anulação deste.
   Deste molde, e a nível do direito processual, parece-nos que o despacho do recurso contencioso do despacho do Exmo. Senhor Chefe do Executivo de 29/01/2010 – seja procedente seja vão – não pode conduzir forçosamente à impossibilidade ou inutilidade superveniente do recurso interposto do despacho da Directora da DSF.
***
   Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência do presente recurso jurisdicional.”
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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II – Factos
- Em 18/10/2011, o Recorrente interpôs recurso contencioso contra o acto da Directora dos Serviços de Finanças de 14/07/2011.
- Por despacho de 21/10/2013, o Mmº Juíz a quo determinou a suspensão da instância com os fundamentos constantes de fls. 763 e verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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III – Fundamentação
O fundamento da suspensão da instância consiste no entendimento de que a decisão final a proferir no Proc. nº 219/2010 deste TSI pode conduzir eventualmente à inutilidade superveniente do presente recurso contencioso.
Salvo o devido respeito, não podemos sufragar esta posição do Tribunal a quo.
No caso sub justice, o acto recorrido é a decisão da Directora dos Serviços de Finanças de 14/07/2011, pela qual se determinou a reposição de importâncias por parte do Recorrente.
É certo que este acto foi praticado na sequência da punição disciplinar do Recorrente.
Porém, tal facto não significa que o acto recorrido é o acto de execução ou o acto consequente do acto punitivo disciplinar, ou dependente desse último.
Na realidade, como bem observou o Dignº Magistrado do Mº Pº junto deste Tribunal que “a inexistência e não comprovação da responsabilidade disciplinar não afectam a obrigação da reposição”, uma vez que “a responsabilidade disciplinar é irrefutavelmente distinta da obrigação/responsabilidade da reposição de verbas indevidamente recebidas”, não obstante ambas emergentes da mesma origem.
Por outro lado, o Recorrente alegou, como fundamento do recurso contencioso, os vícios próprios do acto recorrido, a saber:
- falta de audiência prévia do interessado;
- incompetência da entidade recorrida para determinar a reposição das quantias; e
- erro nos pressupostos de facto e de direito.
Neste contexto, o acto recorrido, ainda que seja um acto de execução ou consequente do acto punitivo disciplinar, pode ser objecto autónomo de recurso contencioso nos termos do nº 2 do artº 30º do CPAC e a apreciação dos vícios em causa não depende do resultado do Proc. nº 219/2010 deste TSI.
Face ao expendido e sem necessidade de demais delongas, o presente recurso jurisdicional não deixará de se julgar provido.
*
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto, revogando a decisão recorrida.
*
Sem custas.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 21 de Maio de 2015.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong

Fui presente
Mai Man Ieng




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