Processo nº 238/2015
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data: 11/Junho/2015
Assuntos:
- Resolução do contrato-promessa por impossibilidade de cumprimento
- Interpretação do contrato e nomen júris
- Valor das escrituras de papel de seda
SUMÁRIO :
1. Se o Autor celebrou um contrato-promessa com o pai dos RR, prometendo comprar e este prometendo vender dois troços do terreno sito em Coloane, Ká Hó, que lhe disse terem sido transmitidos pelos seus antepassados, se o Autor já pagou àquele a totalidade do preço na quantia de HKD$6.878.339,40, se nunca foi celebrado o cumprimento do contrato definitivo, que não tinha prazo e não se provando culpa do promitente vendedor, se o A. nega a transmissão da posse, o que não é verdade, também ele podendo ter tratado do reconhecimento do direito de propriedade, por via da transmissão da posse que se operou a partir do momento do contrato-promessa, até ao estabelecimento da RAEM, já depois deste estabelecimento, perante a inviabilidade desse reconhecimento o contrato prometido torna-se inviável, o que determina a resolução do contrato.
2. Na qualificação jurídica da relação estabelecida pelas partes só se releva o conteúdo das convenções estipuladas pelas partes subsumível ao conceito jurídico e não a designação atribuída pelos contratantes, sendo a interpretação do contrato, no sentido da determinação da vontade negocial dos contratantes, matéria de facto.
3. Se o Saneador é perspectivado em função de um contrato-promessa, tendo em vista a realização futura de um contrato de transmissão da propriedade e as partes aceitam essa configuração, não podem, em sede de recurso, defender que o contrato foi outra coisa e o que quiseram foi transmitir meramente a posse dos terrenos.
4. Sobre o terreno titulado por papel de seda, é pacífico o entendimento de que o titular do papel de seda não pode ser considerado juridicamente titular de direito real sobre o terreno, constituindo tal documento um elemento indiciador dos actos de posse sobre a coisa e reconhecimento dessa posição pela comunidade ou pelas associações de moradores.
5. Não havendo prazo certo para a celebração da escritura de compra e venda, só há mora dos promitentes, após estes terem sido interpelados para tal. Não resultando provado que as partes tivessem estipulado prazo para a outorga da escritura pública, devia o credor proceder a interpelação do devedor para cumprir a sua obrigação.
6. Com a entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, a usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade reconhecida deixou de ser legalmente permitida face ao disposto do art. 7º do citado diploma legal e se os RR. que estavam adstritos ao cumprimento do contrato definitivo não demonstram esse reconhecimento anterior, enfrentamos uma situação de impossibilidade objectiva de incumprimento geradora da resolução do contrato.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 238/2015
(Recurso Civil)
Data : 11/Junho/2015
Recorrentes : - A
- B
- C
Recorrido : - D
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. D, mais bem identificado nos autos, interpôs no TJB contra:
A, B, C, e
HERDEIROS INCERTOS DO E (E之不確定繼承人) ;
Acção declarativa, invocando um contrato-promessa de compra e venda de dois terrenos em Coloane ao falecido pai dos Réus e incumprimento por parte deste,
Tendo concluído que fosse julgada procedente, por provada, e em consequência:
a) declarado resolvido o contrato celebrado em 29 Abril 1992 entre o Autor e E (E) ;
b) os RR. condenados a pagar ao Autor a quantia de MOP$7.085.124,25, acrescida de juros legais, contados desde a data da citação até integral pagamento.
Os Réus contestaram a acção, pedindo que fossem julgados improcedentes os pedidos do Autor e a condenação deste na indemnização não inferior a cem mil patacas por litigância de má fé.
A acção veio a ser julgada e, a final, decidido:
“- Declara-se resolvido o acordo celebrado entre o Autor De E em 29 de Abril de 1992.
- Condena-se os Réus, na qualidade de herdeiros de E e nos limites estatuídos no disposto do art. 1909° do C.C., a pagar ao Autor a quantia de HKD$6.878.339,40 (seis milhões oitocentos e setenta e oito mil, trezentos e trinta e nove dólares de Hong Kong e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data de citação.
*
- Condena o Autor no pagamento de multa em 3Uc por litigância de má fé.
*
- Absolve-se o Autor do pedido de indemnização formulado pelos 1º a 3º Réus.
*
Custas do processo pelos Réus e do pedido de indemnização formulado pelo 1° a 3° Réus por esses Réus, e do incidente de litigância de má fé em 2 Uc pelo Autor.”
2. A, B e C, Réus nos autos em epígrafe e neles mais bem identificados, inconformados com a sentença proferida, vêm recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, alegando, em síntese:
1) Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo a fls. 322 a 334 dos autos, que resolveu o contrato celebrado entre o Autor e E, e condenou os Réus, na qualidade de herdeiros de E e nos limites estatuídos no artigo 1909.º do Código Civil, a pagar ao Autor a quantia de HKD$6,878,339.40 (seis milhões, oitocentos e setenta e oito mil, trezentos e trinta e nove Hong Kong dólares e quarenta cêntimos), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação.
2) Ressalvado o devido respeito, as conclusões do acórdão recorrido estão viciadas por um erro de interpretação e qualificação do contrato em discussão nos presentes autos, designadamente quando qualifica o contrato celebrado entre as [ali] partes como um "contrato-promessa".
3) Não é verdade que o contrato tivesse em vista a promessa de transferência do direito de propriedade sobre o terreno, designadamente através da outorga, no futuro, de uma escritura pública de compra e venda, sendo precisamente neste ponto que naufraga toda a argumentação expendida pelo Mm.º Tribunal a quo, nomeadamente no que concerne ao incumprimento da obrigação de celebração do contrato definitivo (obrigação inexistente, pois não está em causa um contrato-promessa).
4) A realidade do contrato impõe-se ao "nomen iuris" atribuído pelas respectivas partes, e do contrato (e de todos os actos materiais em execução do mesmo) resulta que as partes pretenderam realizar uma transmissão da posse do E para o Autor mediante o pagamento de uma determinada quantia, negócio legalmente atípico mas socialmente típico em Macau, considerando a problemática das "escrituras em papel de seda".
5) O contrato, na sua 4.ª Cláusula, não oferece dúvidas quanto ao sentido e alcance com que as partes entenderam o negócio, tanto assim que o próprio Autor vem alegar um incumprimento do E do dever de colaboração, já que supostamente não teria ajudado o Autor a ser reconhecido pelo Governo de Macau como novo proprietário do terreno [em rigor, concessionário].
6) Como é óbvio, seria contraditório e incompatível que o E tivesse de ajudar o Autor para que este fosse reconhecido como novo proprietário pelo Governo de Macau e, posteriormente, fosse suposto ainda celebrar uma escritura pública de compra e venda daquele terreno!
7) Donde se retira que o fito do Autor era obter a posse do terreno para negociar uma concessão por arrendamento junto do Governo de Macau.
8) Aliás, logo em Setembro de 1992 (no mês à conclusão de todas as obrigações resultantes do contrato em apreço), o Autor encetou negociações com o Governo do Território de Macau para obtenção de uma concessão por arrendamento, elaborando um projecto para o aproveitamento daqueles terrenos no âmbito de um projecto de construção predial em sociedade com terceiros, aos quais cedeu parte dos terrenos (tudo conforme documento a fls. 117 a 121 dos autos).
9) Assim, perante o estipulado no contrato (mormente na sua 4ª Cláusula) e os factos que se sucederam, é patente que não está em causa um contrato-promessa, já que as [ali] partes não pretendiam comprometer-se à celebração de um contrato futuro, pois bem sabiam que era impossível celebrar uma escritura pública de compra e venda de um terreno titulado por "Sá Chi Kai".
10) Ficando antes demonstrado que o contrato pretendia titular, em termos formais, a sucessão do Autor na posse daquele terreno, permitindo-lhe, então, apresentar-se junto da Administração como possuidor e negociar o respectivo aproveitamento.
11) No limite, ainda que assim não fosse de entender, isto é, que não estivesse em causa uma "legitimação formal" da posse do Autor, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se dirá que o que o Autor e o E pretenderam foi acordar na desocupação daquela parcela de terreno contra o pagamento de uma certa maquia, de modo a que o Autor pudesse então procurar obter uma concessão administrativa, junto do Governo de Macau, para aproveitamento do terreno.
12) E nunca obter um suposto de direito de propriedade sobre aquele terreno através de uma escritura pública a celebrar com o E.
13) A qualificação de um contrato é um juízo predicativo que tem por conteúdo o reconhecimento desse contrato corresponder, ou não, a este ou àquele tipo, no caso, ao tipo legal do "contrato-promessa",
14) Partindo dos índices do tipo, designadamente da causa do negócio, entendida objectivamente como função, o fim, a estipulação do tipo, o objecto, a contrapartida, a configuração, o sentido, as qualidades das partes e a forma, para a realização daqueles sub-juízos, chega-se à conclusão que, para além do "nomen iuris", nenhum dos demais índices do tipo permite qualificar o contrato em discussão nos presentes autos como um "contrato-promessa".
15) Logo à partida, em momento algum o contrato tinha por fim e objecto a celebração de um qualquer contrato ulterior (elemento essencial dos contratos-promessa, nos quais as partes se comprometem a celebrar um contrato).
16) Pelo que uma interpretação que defenda que foi com essa configuração e sentido (de "contrato-promessa") que as partes celebraram o acordo em questão, viola o disposto no artigo 230.º do Código Civil, pois nunca o Autor e o E, no âmbito do contrato, "prometem" comprar e vender, respectivamente, o terreno em causa.
17) Pelo contrário, como se disse, o Autor acusou o E de não ter cumprido com o dever de colaboração previsto na 4.ª Cláusula do contrato, impedindo-o de ser reconhecido pelo Governo de Macau como novo proprietário do terreno [em rigor, concessionário ou foreiro].
18) Ainda assim, poderia argumentar-se que o contrato se refere a uma compra e venda do terreno, pelo que não seria um contrato através do qual se procura legitimar, em termos formais, a transferência da posse do E para o Autor.
19) No entanto, salvo o devido respeito por melhor opinião, tal objecção omite a referência contratual ao "título" existente sobre o terreno (a "escritura em papel de seda", que no limite, poderia funcionar como facto que assistia na comprovação da posse) e, também, o facto de no próprio contrato se consagrar a necessidade de diligências junto dos departamentos do Governo de Macau para aproveitamento do terreno.
20) Com efeito, tal entendimento esquece a tipicidade social do contrato em causa, resultante das particularidades de Macau.
21) Por outro lado, não cabendo dúvidas que está em causa um contrato legalmente atípico, não se pode esquecer que o negócio jurídico e todas as cláusulas reguladores foram incorporadas num documento escrito, estando por isso sujeitas à norma interpretativa contida no artigo 230.º do Código Civil.
22) Ora, das diversas cláusulas do contrato não resulta qualquer obrigação para as partes de, no futuro, celebrarem um contrato definitivo (pois este já era o contrato definitivo!), pelo que a interpretação do Mm.º Tribunal a quo viola o disposto no artigo 230.º, n.º 1, do Código Civil.
23) Como última objecção a este entendimento quanto ao real alcance do negócio, poder-so-á dizer que o contrato refere a realização de uma compra e venda, não tendo um mínimo de correspondência verbal a argumentação de que o mesmo se limita a uma mera transferência de posse.
24) Só que, como se disse, a realização do contrato naqueles termos tem por base uma realidade histórica e social típica de Macau, que justifica os termos empregues no contrato.
25) De todo o modo, o próprio contrato prevê a necessidade de formalidades a serem realizadas junto da Administração do Território para aproveitamento do terreno.
26) O que conjugado, uma vez mais, com o que o próprio Autor refere a propósito de um suposto incumprimento de um dever de colaboração do E, o qual alegadamente teria impedido o reconhecimento pelo Governo de Macau do Autor enquanto proprietário [em rigor, concessionário] daquele terreno,
27) Revela que o verdadeiro sentido das declarações das partes consubstanciadas no contrato se prendia, tão somente, com uma "legitimação formal" da transmissão da situação de facto que o E, pai dos Réus, tinha sobre o terreno.
28) Devendo, caso fosse de entender que aquela transmissão de posse não tinha um mínimo de correspondência verbal no texto do contrato - o que por mera cautela de patrocínio se concebe -, ser o contrato interpretado de acordo com aquela vontade real das partes (que se retira de vários factos provados nos presentes autos, nomeadamente a entrega do terreno e as diligências iniciadas pelo Autor junto da competente entidade governamental).
29) Sendo ainda de referir que, não sendo um contrato legalmente típico, não se verificam quaisquer razões determinantes da forma do negócio que se oponham à interpretação do mesmo com o sentido dado pela vontade real das partes.
30) Ainda que assim não fosse de entender, isto é, caso não estivesse em causa uma "legitimação formal" da posse do Autor, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se dirá que, no limite, o que o Autor e o E pretenderam foi acordar na desocupação daquela parcela de terreno contra o pagamento de uma certa maquia, de modo a que o Autor pudesse então procurar obter uma concessão administrativa, junto do Governo de Macau, para aproveitamento do terreno.
31) Matéria que, de qualquer um dos modos, colide com uma qualquer vinculação à celebração de um suposto contrato prometido.
32) Nestes termos, não estando em causa um "contrato-promessa" - sem prejuízo do nomen iuris atribuído pelas partes -, verifica-se que todas as obrigações resultantes do contrato celebrado entre as partes foram integralmente cumpridas pelo E, pai dos ora Recorrentes, conforme se retira das respostas aos quesitos 2.º a 5.º e 9.º da Base Instrutória.
33) Não tendo sido prometida a celebração de qualquer contrato, inexistem quaisquer razões para se considerar o contrato incumprido.
34) Assim sendo, a falta de promoção de uma acção de usucapião é irrelevante, até porque o contrato não poderia impor a tradição do terreno e, ao mesmo tempo, obrigar o E a intentar uma acção de usucapião para aquisição do direito de propriedade sobre o terreno, já que com a tradição o Réu deixa de ter a necessária posse!
35) Salvo o devido respeito, o raciocínio elaborado pelo Mm.º Tribunal a quo está viciado à partida, na medida em que procura forçar a realidade a encaixar na teoria preconcebida do "contrato-promessa", ao invés de se partir da realidade contratual e factual para se apurar o conteúdo e alcance do negócio jurídico concluído entre as partes.
36) Para além disso, a própria argumentação é contraditória, na medida em que, conforme os Acórdãos citados pelo Mm.º Tribunal a quo, só com a Lei n.º 2/94/M, de 4 de Julho, é que o legislador "(…) Na contemplação das situações de posse optou por dar a possibilidade de os possuidores obterem o estatuto de foreiros do Território, reconhecida que seja, judicialmente, a situação de posse com a duração de vinte anos. (...)" (cfr. Assento do Tribunal Superior de Justiça de 18 de Outubro de 1995, proferido no âmbito do Processo n.º 295, que continua a constituir jurisprudência obrigatória para os Tribunais da RAEM, nos termos do artigo 2.º, n.º 6, alínea b), do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8 de Outubro).
37) Caso contrário, uma acção de usucapião estaria vetada ao fracasso por falta de título formal de aquisição, através do qual o terreno tivesse ingressado na propriedade privada.
38) Como é óbvio, em Abril de 1992, quando as partes celebraram o negócio jurídico em apreço nos presentes autos, não podiam contar com uma lei que só viria a surgir dois anos mais tarde, muito depois de efectuada a tradição do terreno exigida pelo Autor.
39) Pelo que, também por esta razão, não tem qualquer sentido pressupor que as partes pretenderam celebrar um contrato definitivo de compra e venda e que foi o Réu que se colocou na impossibilidade de o cumprir por não ter intentado uma acção de usucapião
40) Não se vislumbrando, assim, quaisquer outras razões que fundamentem a resolução do contrato, resulta claro que foi o facto de ter, erradamente, qualificado o negócio jurídico como "contrato-promessa" que levou o Mmº Tribunal a quo a concluir que o suposto contrato prometido nunca veio a ser realizado, por culpa do Réu, e não sendo já possível o cumprimento daquele contrato, o Réu teria de devolver ao Autor as quantias recebidas.
Nestes termos, e no mais de Direito, deverão V. Ex.ªs, Venerandos Juízes do Tribunal de Segunda Instância, revogar o acórdão recorrido, substituindo-o por decisão que considere a acção movida pelo Autor totalmente improcedente e, por conseguinte, absolva os Réus do peticionado pelo Autor, assim se fazendo JUSTIÇA.
3. D, Autor nos autos acima cotados, notificado das alegações de recurso apresentadas pelos Réus, vem, nos termos do art. 631.°, n.º 2, do C.P.C., oferecer a sua RESPOSTA, dizendo, em sede de conclusões:
I - A decisão judicial de 8 OUT 2014 foi justa e acertada pois os factos juridicamente relevantes que constituem os fundamentos do peticionado pelo Autor ficaram provados e tais factos encontram pleno acolhimento e subsumem-se no Direito, tendo o Tribunal feito uma correcta aplicação do direito ao caso concreto, atentos os justos e acertados argumentos e fundamentos de facto e de direito em que assentou.
II - Deverá, por conseguinte, tal decisão manter-se inalterada in totum na ordem jurídica.
TERMOS EM QUE
deverá ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida inteiramente válida na ordem jurídica, com as demais consequências legais.
4. Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 29 de Abril de 1992, o Autor e E (E), portador do BIRM n.º XXX, celebraram um contrato-promessa de compra e venda. (alínea A) dos factos assentes)
- Por via de tal contrato-promessa, o Autor prometeu comprar e o referido E (E) prometeu vender-lhe dois troços de um terreno sito em Coloane, Ká Hó. (alínea B) dos factos assentes)
- O primeiro era o troço 8 da Área de Terreno B. (alínea C) dos factos assentes)
- O segundo era o troço 11 da Área de Terreno A. (alínea D) dos factos assentes)
- De acordo com o intróito do contrato-promessa, o referido E (E) manifestou a sua vontade de vender ao Autor esse terreno do tipo de escritura de papel de seda. (alínea E) dos factos assentes)
- Nos termos da cláusula 4ª, o Autor e o E (E) acordaram que depois da celebração do contrato-promessa, este:
i. deveria fornecer os respectivos documentos comprovativos; e
ii. deveria ter as obrigações de ajudar o Autor a tratar das formalidades nos respectivos departamentos do Governo e aproveitar o referido lote de terreno. (alínea F) dos factos assentes)
- O Autor pagou ao E (E) a totalidade do preço de venda acordado, ou sejam, HKD6.878.339,40 (seis milhões oitocentos e setenta e oito mil trezentos e trinta e nove dólares de Hong Kong e quarenta cêntimos). (alínea G) dos factos assentes)
- Valor este que se obtém considerando o preço unitário de HKD170,00 por cada ft2 e, por outro lado, a área do troço 8 da Área de Terreno B, ou seja, 24,211.07 ft2, a área do troço 11 da Área de Terreno A, ou seja, 16,249.75 ft2. (alínea H) dos factos assentes)
- O contrato definitivo de compra e venda nunca foi, celebrado. (alínea I) dos factos assentes)
- E (E) faleceu em 2 de Novembro de 2006. (alínea J) dos factos assentes)
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Da Base Instrutória:
- O terreno, segundo o referido intróito, havia sido deixado ao E (E) pelos seus antepassados. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O E entregou ao Autor as parcelas de terreno que lhe prometeu vender. (resposta ao quesito 5° e 9° da base instrutória)
- Mediante notificação judicial avulsa requerida em 16 de Agosto de 2011, o Autor pretendeu interpelar o E (E) para cumprir o contrato cujo teor consta de doc. fls. 20 a 24. (resposta ao quesito 6° da base instrutória)
- No âmbito da referida notificação judicial avulsa veio a ser apurado que o E (E) já teria falecido. (resposta ao quesito 7° da base instrutória)
- Desde pelo menos 29 de Abril de 1992 até 20 de Dezembro de 1999, o E (E) não promoveu o reconhecimento judicial via usucapião do direito de propriedade sobre o terreno sub judice. (resposta ao quesito 8° da base instrutória)”
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III) DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga parcialmente procedente a acção formulada pelo Autor e, em consequência, decide:
- Declara-se resolvido o acordo celebrado entre o Autor De E em 29 de Abril de 1992.
- Condena-se os Réus, na qualidade de herdeiros de E e nos limites estatuídas no disposto do art. 1909° do C.C., a pagar ao Autor a quantia de HKD$6.878.339,40 (seis milhões oitocentos e setenta e oito mil, trezentos e trinta e nove dólares de Hong Kong e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data de citação.
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- Condena o Autor no pagamento de multa em 3Uc por litigância de má fé.
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- Absolve-se o Autor do pedido de indemnização formulado pelos 1º a 3º Réus.
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Custas do processo pelos Réus e do pedido de indemnização formulado pelo 1° a 3° Réus por esses Réus, e do incidente de litigância de má fé em 2 Uc pelo Autor.
*
Registe e Notifique.
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據上論結, 本院裁定訴訟理由部份成立, 裁決如下 :
宣告解除原告D與E於一九九二年四月二十九日簽訂之合同;
判處各被告, 以E繼承人的身份及在«民法典»第一千九百零九條的條件下, 向原告支付港幣$6,878,339.40 (港幣陸佰捌拾柒萬捌仟叁佰叁拾玖圓肆角), 附加自傳喚之日起以法定利息計算的遲延利息;
判處原告惡意訴訟罰款三個計算單位;
裁定第一至第三被告提出的賠償請求不成立。
訴訟費用由被告共同負擔、第一至第三被告的賠償請求的訴訟費用由此等被告支付, 以及由原告負擔兩個計算單位惡意訴訟的附隨事項費用。
依法作出通知及登錄本判決。
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Macau, aos 08 de Outubro de 2014
Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo do TJB
Cheong Un Mei
IV – FUNDAMENTOS
1. Importa referir que se sufraga o acerto da sentença proferida e para onde nos remetemos, pelo que a passamos a transcrever na parte respeitante à fundamentação respectiva:
“FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Com a presente acção, pretende o Autor a resolução do acordo celebrado em 29 de Abril de 1992 com E, pais dos Réus, e a condenação destes na restituição do preço que aquele tinha entregue ao pais destes para aquisição do terreno no cumprimento do contrato.
Fundamentando o Autor que celebrou um contrato-promessa com o E nos termos do qual aquele promete comprar e este prometeu vender dois troços do terreno sito em Coloane, Ká Hó que lhe alegou ter sido transmitidos pelos seus antepassados. O Autor já pagou a E a totalidade do preço na quantia de HKD$6.878.339,40, mas este não cumpriu as obrigações de fornecer os documentos comprovativos nem de ajudar o Autor para tratar as formalidades junto da Administração estipuladas na cláusula 4a do contrato, não foi entregue as parcelas do terreno ao Autor e nunca foi celebrado o contrato definitivo de contrato de compra e venda, pretendendo o Autor a revogação do contrato e reaver o valor pago ao E com base no incumprimento definitivo bem como na impossibilidade objectiva da prestação, por já deixar de poder adquirir o direito real sobre o terreno por via de acção judicial após o estabelecimento da RAEM.
Na contestação, os 1° a 3° Réus defenderam que o Autor já dispôs de todos os documentos necessário para diligenciar junto do Governo de Macau e que também entregou a este as parcelas do terreno referido no contrato, entendendo que não houve por parte do E incumprimento e que a impossibilidade de obtenção do direito sobre o terreno por via de usucapião é devido à culpa do próprio Autor.
Conhecendo.
*
Questão sobre os factos constantes da alínea D) dos Factos assentes
Nas alegações apresentadas pelos 1° a 3° Réus, vieram esses Réus levantar a questão sobre os factos constantes da alínea D) dos Factos Assentes, entendendo que o Tribunal deve considerar como não escrito esse facto, por violação à prova documental junta aos autos nos termos do n.º 4° do art. 549° do C.P.C.
Não se afigura que a esses Réus assiste qualquer razão.
Para já, não se vê tal erro na tradução do documento apresentado pelas partes, isto é o acordo celebrado entre o Autor e o E.
Por outro lado, o facto em causa foi aceite plenamente pelos mencionados Réus na sua contestação no art. 3°, e acredita que por essa razão que levou o Tribunal a dar como assente esse facto.
Ao suscitar a questão em causa, os Réus mais não são é que pretendem ter como não dito o que tinham dito, o que, não pode ser, como é óbvio, acolhido.
*
Considerando as posições das partes, para a resolução do presente litígio, urge apreciar as seguintes questões:
- A natureza jurídica do acordo celebrado entre as partes;
- Incumprimento por parte do E. Mora
- Resolução do Contrato
- Incumprimento definitivo
- Impossibilidade objectiva de prestação
- Pedido do Autor
- Litigância de Má Fé
A natureza jurídica do acordo celebrado entre as partes
Na petição inicial, o Autor alegou que celebrou um contrato-promessa que tem por objecto dois troços do terreno em Coloane, Ká Hó, titulado por escritura de papel de seda que o E, pais dos Réus alegou ter sido deixado pelos seus antepassados.
Na contestação, os Réus não impugnaram a natureza jurídica atribuída pelo Autor a esse acordo. Entretanto, já nas alegações de direito, os Réus terão pretendido mudar a posição firmada, pois não aceitando o nomem iuris adoptado no documento (art. 13° a 26°) e dizendo que o objecto do contrato é a legitimação formal da posse e não a propriedade do terreno, defendendo com isso que não há lugar incumprimento por sua parte por o terreno já ter sido entregue ao Autor.
A primeira questão a abordar é saber se o acordo celebrado entre o Autor e E se trata dum contrato-promessa ou outros tipos de contratos?
Vejamos.
Tendo em conta o acordo em causa ter sido celebrado em 1992, a esse contrato é aplicável o regime regulado na vigência do C.C. antigo, face ao disposto do art. 6° e 16°, ambos do Decreto-Lei n.º 39/99/M de 3 de Agosto.
Segundo o art. 410° do C.C. de 1966, "l. À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. 2. Porém, a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se consta de documento assinado pelos promitentes".
"O contrato-promessa é convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato." (Prof. Antunes Varela, in Obrigações em Geral, Vol. I. pago 312)
A propósito da matéria de facto, por acordo das partes, ficam assentes os seguintes:
"Em 29 de Abril de 1992, o Autor e o E (E), celebraram um contrato-promessa de compra e venda. Por via de tal contrato-promessa, o Autor prometeu comprar e o E (E) prometeu vender-lhe dois troços dum terreno sito em Coloane, Ká Hó. O primeiro era troço 8 da área de terreno B. O segundo era troço 11 da área de terreno A. De acordo com o intróito do contrato-promessa, o E (E) manifestou a sua vontade de vender ao Autor esse terreno do tipo de escritura de papel de seda.
Mais se provou que nos termos da cláusula 4ª, o Autor e o E (E) acordaram que, depois da celebração do contrato-promessa, o E (E) deveria fornecer os respectivos documentos comprovativos e deveria ter as obrigações de ajudar o Autor a tratar das formalidades nos respectivos departamentos do governo e aproveitar o referido lote de terreno."
Como se sabe, na qualificação jurídica da relação estabelecida pelas partes só se releva o conteúdo das convenções estipuladas pelas partes subsumível ao conceito jurídico e não a designação atribuída pelas partes ao acordo.
Portanto, pese que fique assente que o Autor e o E celebraram um contrato-promessa de compra e venda, não significa necessariamente que a relação jurídica entre as partes é contrato-promessa. A correcta qualificação do acordo colocado pelas partes há de ser sempre feita através das cláusulas contratuais estipuladas pelos intervenientes.
No caso vertente, independentemente do nomem iuris usado, vem provado que 29 de Abril de 1992, foi estipulado um acordo entre o Autor e o E, por via do qual o Autor prometeu comprar e o E prometeu vender-lhe dois troços de um terreno sito em Co1oane, Ká Hó. De acordo com o seu intróito, o E manifestou a sua vontade de vender ao Autor esse terreno do tipo de escritura de papel de seda. Nos termos da cláusula 1ª do acordo, o Autor e o E acordaram que o preço de cálculo de venda do citado terreno seria de HKD170.00 por pé quadrado1.
Decorre desses factos que o Autor ficava adstrito a comprar o terreno identificado nesse acordo e por outro lado, o E ficava adstrito lho vender.
Os 1º a 3ª Réus apontaram que o objecto do contrato se refere apenas à legitimação de posse e não o direito sobre o terreno tem razão?
Não obstante de se mencionar no acordo que o terreno está titulado da escritura do papel de seda, isso per si não implica automaticamente que o acordo das partes tem por objecto apenas a posse e não o direito real sobre o terreno. Ora, do referido acordo, não consta, em nenhum lugar, que o Autor só vendeu a posse possuída sobre o terreno e que o Réu aceitou apenas a adquirir a posse que o Autor tinha. Ao contrário, da redacção redigida em chinês deduz-se que o Autor alegou ser titular do terreno em causa (甲方自願將其名下先祖遺留之沙紙契地座落於路環九澳村所擁有之地段). Assim, na falta de prova em contrária, não pode acolher a posição dos Réus que o objecto do acordo é a legitimação formal da posse.
Assim, o E, atento o objecto dessa promessa, estava obrigado a emitir uma declaração de vontade de venda do bem prometido ao Autor e este estava no direito de exigir a celebração da respectiva escritura pública. O facto de que o E ainda não era titular de direito do terreno não prejudica que as partes celebraram contrato-promessa.2
Ademais, de acordo com a cláusula 6ª do contrato, as partes estipularam também que é aplicável ao acordo o disposto do art. 830° do C.C. Como se sabe esse preceito destina-se a dar execução do contrato-promessa não cumprido, daí se reforça a ideia de que as partes queriam realmente celebrar um contrato-promessa e não o contrato de transmissão comunas da posse.
Nestes termos, dúvidas não restam que estamos perante um contrato-promessa de compra e venda que tem por objecto mediato dois troço do terreno identificado no acordo.
Quanto à forma do contrato, dado que o contrato diz respeito ao imóvel, de acordo com o disposto do n.º 2 do artigo acima transcrito e do art. 875° do mesmo Código, o acordo é válido se for celebrado pela forma escrita.
Como a promessa emitida pelas partes consta do documento junto aos autos a fls. 14 e 15, o contrato invocado pelo Autor satisfaz a forma exigida por lei.
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Incumprimento do contrato por parte do E. Mora
Qualificamos que entre o Autor e E foi celebrado um contrato-promessa, debruçamos então saber se o E deixou de cumprir a sua promessa.
Alega o Autor que o E falhou no cumprimento das obrigações de fornecimento dos documentos comprovativos e de ajudar ou colaborar com o Autor para este ser reconhecido pelos departamentos governamentais como novo titular da escritura pública de papel de seda, não efectuou a tradição do troço do terreno, bem como não promoveu a celebração do contrato definitivo de compra e venda, concluindo assim que houve por parte do E o incumprimento definitivo.
Após a audiência da discussão e o julgamento, apenas ficou assente que o contrato definitivo de compra e venda não foi celebrado, não ficaram provados factos quanto ao não fornecimento dos documentos comprovativos nem da exibição da escritura de papel de seda nem da falta de ajuda ou colaboração por parte do Réu com o Autor para ser reconhecido como titular da escritura de papel de seda.
De acordo com a factual idade assente, é suficiente para afirmar que o E já cumpriu a obrigação decorrente do contrato-promessa?
Apreciamos.
Como se expõe acima, o contrato-promessa produz efeitos meramente obrigacionais. Resultam dele para as partes a obrigação essencial de celebração do contrato definitivo.
"O objecto dessas obrigações é uma prestação de facere jurídica, a emissão da declaração negocial integradora do contrato-promessa." (Ana Prata, obra citada, pág. 573 a 574)
A obrigação principal ou típica que integra o contrato-promessa é a realização do contrato prometido.
Portanto, sendo o objecto principal a celebração do contrato prometido, deve ser à volta dessa obrigação principal é que se discute se houve incumprimento do contrato-promessa.
Como é evidente, por força do princípio da liberdade contratual, no contrato-promessa, é admissível a estipulação doutras obrigações a que uma ou ambas das partes ficam adstritas a cumprir, ou de que dependem a celebração do contrato definitivo.
No caso vertente, o Autor não se logrou provar que o Réu não forneceu os documentos necessário nem que o mesmo não ajudou ou colaborou as formalidades que se referiam a cláusula 4ª do contrato, é claro que não houve incumprimento dessas obrigações estipuladas.
No que tocante à obrigação de contratar, houve incumprimento por parte do Réu, perante a falta de celebração do contrato de compra e venda?
Antes de apreciar essa questão, convém esclarecer um ponto levantado pelo Réu. De acordo com a posição exposta pelo Réu, não obstante não ter impugnado a qualificação como contrato-promessa do acordo, entendendo que a celebração do contrato de compra e venda não era procedimento adequado à situação por se tratar de terreno titulado por escritura de papel de seda.
Sobre o terreno titulado por papel de seda, é pacífico o entendimento de que o titular do papel de seda não pode ser considerado juridicamente titular de direito real sobre o terreno, também é verdade que não é possível a outorga da escritura pública de transmissão e do registo desse acto sobre terreno apenas titulado por escritura de papel de seda.
Apesar da situação jurídica legalmente não reconhecida do terreno, não podemos afastar a hipótese de existência do negócio jurídico sobre esse tipo de terreno, face ao princípio de liberdade contratual.
No mundo do negócio jurídico, as partes podem estipular os negócios jurídicos com conteúdo que se propicia aos próprios interesses. Portanto, se as partes cientes da situação jurídica do terreno, nada impede que as partes celebrem contrato-promessa que tem por objecto bens que o promitente-vendedor ainda não é titular de direito.
Portanto, não é por o promitente-vendedor não ser titular de direito sobre o bem é que este fica exonerado de cumprir as obrigações assumidas do contrato.
Ora, segundo o preceito do art. 777° do C.C., "Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela."
"Não havendo prazo certo para a celebração da escritura de compra e venda, só há mora dos promitentes, após estes terem sido interpelados, nos termos do art. 805°, n.º 1 do CC" (cfr. Acórdão do S.T.J. de 06 de Março de 1986, in BMJ 355, 352)
No caso em apreço, não se resulta provado que as partes tinham estipulado prazo para a outorga da escritura pública. Assim, na falta de estipulação do prazo, deve o credor proceder a interpelação do devedor para cumprir a sua obrigação, em conformidade com o preceito acima transcrito
Está assente que mediante notificação judicial avulsa em 16 de Agosto de 2011, o Autor pretendeu interpelar o E para vir cumprir o contrato. Porém, tal notificação nunca chegou ao conhecimento do E visto que no âmbito da notificação judicial veio a saber que o E já tinha sido falecido.
Ou seja, não houve interpelação com efeito para cumprimento do contrato.
Assim, não tendo feito a interpelação pelo Autor a contraparte para fixação dum prazo do cumprimento do acordo, isto é, a outorga da escritura pública a que se refere o contrato-promessa, não pode dizer que existe em mora no cumprimento por parte do E ou promitente-vendedor.
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Resolução do contrato
Vem o Autor pedir a resolução do contrato com fundamento do incumprimento definitivo por parte do Réu e também da impossibilidade objectivo do seu cumprimento.
Urge aquilatar se assiste ao Autor o direito de resolução do contrato.
Dispõe-se o n.º 1 do art. 432° do CC66, "A resolução do contrato só é admitida fim dado na lei ou em convenção".
Segundo as jurisprudências e doutrina dominante, a resolução do contrato-promessa por via de lei, só pode ocorrer perante um incumprimento definitivo.
Consagra-se no artigo 762°, n.º 1 do CC66 que "O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado."
Há incumprimento quando o devedor falta culposamente ao cumprimento da obrigação, nos termos do artigo art. 798º do CC66.
"Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro." (art. 801º do C.C. 66)
Segundo o acórdão do Tribunal da Segunda Instância, no processo 1245, de 24 de Fevereiro de 2000, "O incumprimento definitivo do contrato-promessa encontra-se pela verificação de situações (declaração antecipada de não cumprir, termo essencial, cláusula resolutiva expressa, impossibilidade da prestação e perda de interesse na prestação que a induzam."
Em termos de direito comparado, decidiu-se no Acórdão de 13 de Julho de 2004, do STJ, in CJ II, p. 145, o seguinte:
"De qualquer modo, a resolução do contrato fundada na lei pressupõe que uma das partes falte culposamente ao seu cumprimento e a outra o tenha cumprido ou diligenciado pelo seu cumprimento.
Assim, pode incluir-se na falta de cumprimento ou inexecução obrigacional lato sensu, para além da impossibilidade de cumprimento, o incumprimento definitivo propriamente dito, o incumprimento definitivo oriundo da conversão da situação de mora e a recusa categórica de cumprir."
"A mora do devedor só dá ao credor o direito a resolver o contrato, por incumprimento definitivo, no caso de perda do seu interesse na prestação, ou no caso de esta não poder ser realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.' (cfr. Acórdão do T.R.P. de 19 de Janeiro de 1993, in CJ, Ano XVIII, Tomo I, 203)
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Feitas as considerações sobre a modalidade de incumprimento, vamos analisar se no caso sub judice ocorreu o fundamento de resolução do contrato.
De acordo com o preceituado no n.º 1 do art. 808º do CC66, o credor, tem direito a resolver o contrato se em consequência da mora do devedor, perder aquele o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.
Da análise acima referida se conclui que não houve mora no cumprimento do por parte do promitente-vendedor, logo fica afastada a hipótese de verificação do incumprimento definitivo oriundo da conversão da situação de mora.
Também não consta dos autos qualquer facto quanto à recusa peremptória do cumprimento.
Assim, não se verifica, no caso, qualquer situação de incumprimento definitivo propriamente dito.
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Resta ainda apurar outro fundamento invocado pelo Autor para a resolução do contrato, que é impossibilidade do cumprimento por deixar de ser possível a aquisição da propriedade sobre o terreno por meio de usucapião depois de 20 de Dezembro de 1999, perante a posição firmada pelas jurisprudências do Tribunal da RAEM.
Segundo os factos assentes, os troços do terreno objecto do contrato-promessa é terreno de tipo de escritura de papel de escrita. Embora não fosse junto aos autos a certidão do registo predial quanto ao terreno, dúvida não se haverá que o terreno em causa se trata do terreno titulado por escritura de papel de escrita ocupado pelos residentes de Coloane.
Em relação à situação jurídica do terreno do tipo de escritura de papel de seda, tem sido entendimento unânime da jurisprudência local de que não é admissível a aquisição do direito real através da usucapião desses terrenos após o estabelecimento da RAEM.
"Nunca surgiu a regulamentação jurídica dos terrenos de "Sá Chi Kai.
Entretanto, o legislador, através da Lei n.º 2/94/M, de 4 Julho, aditou o n.º 4 para o art. 5° da Lei de Terras, estabelecendo que "não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil."
Com isto, evidencia a intenção legislativa no sentido de que os terrenos sem titularidade registada pertencem ao então Território de Macau, sem prejuízo da possibilidade da aquisição do domínio útil dos mesmos por usucapião.
Ou seja, afastou, duma forma implícita ou indirecta, a propriedade privada dos terrenos com base no papel de seda.
Mais tarde, com a entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, a usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade registada deixou de ser legalmente permitida face ao disposto do art. 7º do citado diploma legal, nos termos do qual"Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau". (cfr. Acórdão n.º 970/2010 de 24/11/2011 do T.S.I., também, acórdão n.º 296/2011 de 19/07/2012, a título exemplicativo)
No caso, os troços do terreno que o E ficava obrigado a vender ao Autor é apenas titulado por papel de seda. Está assente também que até 20 de Dezembro de 1999, o E não promoveu o reconhecimento judicial via usucapião do direito de propriedade sobre o terreno discutido nos autos. Perante esse enquadramento fáctico e a posição tomada pelas jurisprudências locais, não é difícil de concluir que já não é possível o reconhecimento do direito sobre o terreno por via de usucapião, por quem quer que seja.
Sob a perspectiva jurídica, o terreno em causa é considerado como terreno da RAEM.
De facto, o E não tinha legitimidade para vender o terreno ao Autor e não iria adquirir tal legitimidade após o estabelecimento da RAEM, sendo, objectivamente, impossível nem para o E nem os seus sucessores celebrar a escritura pública da compra e venda em relação ao terreno.
Portanto, é evidente que, após o estabelecimento da RAEM sem que o E adquirisse o direito de propriedade sobre o terreno objecto do contrato, este já não poderia mais cumprir a promessa perante o Autor.
Verifica-se, efectivamente, a impossibilidade de cumprimento, por parte do E e, actualmente, dos seus sucessores.
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Ainda tem que apurar se a impossibilidade da prestação é imputável ou não ao devedor, ora Réu ou ambas as partes são imputáveis pela impossibilidade.
Concluímos que entre o Autor e E celebrado contrato-promessa, incumbe a este, na qualidade de promitente-vendedor a outorgar o contrato definitivo de compra e venda que tem por objecto o terreno discutido nos autos, pois é quem alegou como titular do terreno e com legitimidade para o alienar.
Assim, a impossibilidade de prestação (celebração do contrato definitivo) resultante da impossibilidade de aquisição original do direito real sobre o terreno, nomeadamente, por meio de acção judicial, só pode ser imputável ao E, ora promitente-vendedor, pois, foi ele quem alegou como titular do direito e prometeu vender o terreno ao Autor com esse título.
O facto de haver tradição do terreno pelo E ao Autor não altera a conclusão chegada, pois o que está em causa é a obrigação de facere, celebração do contrato definitivo e não a mera transmissão da posse, que é a obrigação essencial a que o E ficava obrigado a cumprir com a celebração do contrato-promessa. Obrigação essa não fica dispensada mesmo com a tradição da coisa.
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Pedido do Autor
Preceitua-se o art. 801º do CC66 que:
"Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.
Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro."
Concluímos que ao E é imputável pela impossibilidade de prestação, assiste ao Autor o direito de exigir a resolução do contrato celebrado entre as partes.
Assim, esse pedido do Autor não pode deixar de julgar procedente.
Para além da resolução do contrato, o Autor exigiu também a restituição da quantia paga ao Réu.
Tendo o acordo com natureza bilateral e o Autor realizado a sua prestação no cumprimento do acordo, com a resolução do contrato, pode o Autor exigir a contraparte a restituição da prestação já efectuada.
Comprovou-se que o Autor pagou ao E o montante de HKD6.878.339,40, este devia ser responsável pela restituição da quantia àquele.
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Juros de mora
Vem o Autor exigir o pagamento de juros de mora, à taxa legal, a partir da data de citação.
Uma vez provada a impossibilidade de prestação é imputável ao E, toma-se responsável pelo prejuízo que causou ao Autor, nos termos do 798°, ex vi, n.º1 do art. 801° do CC66.
No caso de simples mora, "constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor" (art. 804° do CC66).
Ao abrigo do disposto n.º 1 do artigo 805°, do Código Civil de 1966, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir ou quando tiver verificado alguma das situações previstas no n° 2 do mesmo artigo, a saber, se a obrigação tiver certo prazo, se provier de facto ilícito ou se o próprio devedor impedir a interpelação.
Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (artigo 806°, n° 1 do mesmo Código).
Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal (artigo 806°, n° 2).
In casu, não houve interpelação feita pelo Autor para a resolução do contrato e a restituição da quantia paga antes do seu óbito, os Réus só foram interpelados para resolução do contrato e a restituição da quantia paga por citação realizada nos autos, a partir da citação, até à presente data, nenhum pagamento foi efectuado pelo mesmo, pelo que, são devidos juros de mora à taxa legal de 9,75% ao ano, sobre a quantia em dívida, contabilizados a partir da data de citação, até efectivo e integral pagamento.
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Responsabilidade dos Réus
Ora, nos presentes autos, os Réus foram demandados por serem herdeiros do E, com quem o Autor celebrou o contrato-promessa em 1992.
Mas, como se sabe, os herdeiros não são responsáveis pelas dívidas deixadas pelo de cujus além da força da herança. Apenas a herança deixada é que respondem pelas dívidas do falecido.
Pelos encargos da herança é responsável a massa patrimonial que constitui a herança, nos termos do art. 1906° do C.C. 99.
A herança é um património autónomo, o qual directamente responsável pelos encargos.
"Os herdeiros vêm a ser responsável pelos encargos da herança apenas porque titulares dessas massas patrimoniais autónoma e por isso mesmo a sua responsabilidade não se processa ultra vires hereditatis."( cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, 3ª ed., Vol. II. Pag.79)
Dispõe-se o art. 1909° do C.C. de 1999 que:
"1. Sendo a herança aceite a beneficio de inventário, só respondem pelos encargos respectivos os bens inventariados, salvo se os credores ou legatários provaram a existência de outros bens.
2. Sendo a herança aceite pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe, neste caso, ao herdeiro provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos."
Dos autos não decorrem elementos para concluir se a herança deixada pelo falecido E é aceite ou não, menos saber o modo de aceitação. Portanto, não podemos delimitar a medida de responsabilidade de cada um dos herdeiros na proporção da sua quota hereditária. Mas é certo que a responsabilidade dos Réus por ser co-titulares da herança não pode extravasar aquilo que receber da herança.
Pelo que o pedido do pagamento formulado Autor contra os. Réus é procedente mas nos limites da responsabilidade estatuída no art. 1909° do C.C.99.
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Litigância de má fé
Na contestação, os 1° a 3° Réus alegaram que o terreno foi entregue pelo E ao Autor, o qual o passou a administrar, logo que pagasse a totalidade do preço. Com esse facto, esses Réus imputam ao Autor ter litigiado com má fé, pedindo que seja indemnizado das despesas efectuadas por causa da presente lide.
Relativa ao problema de má fé, preceitua-se o art. 385° do C.P.C. , cujo n.º 2 diz:
Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
"a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta d fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção de justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão."
Aí se distingue entre dolo substancial e dolo instrumental.
"O dolo substancial diz respeito ao fundo da causa, ou melhor, à relação jurídica material ou de direito substantivo; o dolo instrumental diz respeito à relação jurídica processual" Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, pág. 263.
Ora, in casu, o Autor alegou na p.i. que o Chang Kei não efectuou a tradição dos troços de terreno, mais, após o julgamento, provou-se que o E entregou, efectivamente, ao Autor a parcela do terreno.
Na verdade, o Autor não disse a verdade nesse aspecto. Um dos fundamentos de facto que o Autor imputa ao Réu o incumprimento contratual é justamente a falta de tradição da parcela do terreno, pelo que esse facto não é irrelevante para a causa, na perspectiva do Autor.
Daí não podemos deixar de considerar esse comportamento como má fé.
Nestes termos, ao abrigo do disposto do n.º 1 do art. 385° do C.P.C., condena o Autor em 3 Uc de multa.
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Em relação ao pedido de indemnização formulado pelos 1° a 3° Réus, segundo os factos assentes, não se provou o valor concreto das despesas e dos honorários que os mesmos têm dispensado para a presente lide, por um lado, e por outro lado, apesar de o Tribunal considerar o Autor ter agido com má fé, por mentir sobre alguns dos factos, não se pode olvidar que, apesar disso, o Tribunal deu razão ao Autor as pretensões formuladas, por isso, não se entende que existe nexo de causalidade adequada entre o pedido de indemnização dos Réus e os factos que levaram a condenação do Autor como litigante de má fé. Pois, mesmo sem esse comportamento censurável do Autor, a razão do litígio ainda está no lado deste, os Réus também teriam de responder em juízo por acção formulada pelo Autor.
Face aos acima expendidos, julga-se improcedente o pedido de indemnização formulado por esses Réus.
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Tudo visto, resta decidir.”
2. Não obstante, não deixaremos de nos pronunciar sobre as questões que vêm concretamente levantadas, e se reconduzem a um pretenso erro de interpretação e qualificação do contrato.
Pretendem agora os recorrentes dar o dito por não dito e dizer que não houve um contrato-promessa de venda de terrenos, mas antes um contrato de transmissão da posse, tanto assim que o Autor pagou integralmente o preço e que os passou a ocupar.
Vêm agora invocar factos que não invocaram aquando da contestação, sustentando que até houve uma deficiente tradução do contrato, que o preço foi estabelecido em função do números de pés quadrados a apurar, que o transmitente se comprometia a ajudar o adquirente a tratar das formalidades conducentes à efectivação da titularidade do direito sobre a coisa transmitida, que as partes bem sabiam que se tratava de um contrato relativo a terrenos de papel de seda com as condicionantes que daí advinham, da dificuldade no reconhecimento dessas situações jurídicas, enfatizando até o conteúdo da cláusula 4ª do contrato - Depois da assinatura do presente contrato, o 1º contratante terá a obrigação de auxiliar o 2º contratante a tratar das necessárias formalidades junto dos Departamentos Governamentais e do uso da supracitada parcela de terreno;"
A tese dos RR. não deixa de ser peregrina, pois, à partida, não se compreende muito bem que alguém pague aqueles milhões por terrenos, na incerteza sobre a titularidade jurídica dos bens e sem garantia de que a situação advinda desse contrato se confirme em termos de estabilidade na ordem jurídica.
Os Réus não deixam de aceitar expressamente que existiu um contrato-promessa, bastando ver para tanto, desde logo a confissão que resulta do artigo 1º da contestação, limitando-se a dizer que o seu pai não foi responsável por qualquer incumprimento.
Na verdade, enquanto era possível fazê-lo, até 20 de Dezembro de 1999, o Autor não empreendeu qualquer interpelação ao promitente vendedor para que cumprisse fosse o que fosse, entregasse quaisquer documentos, que, aliás, também não especifica na sua petição ou empreendesse qualquer actuação judicial ou outra no sentido de dar execução à referida promessa.
3. Importa atentar em dois factos alegados pelo Autor e que desmontam em parte a sua pretensão. Um, refere-se ao documento de papel de seda que o pai do réus não podia entregar, pois não estaria na sua posse, mas sim numa Comissão de Moradores que teria o registo; outro, relativamente à traditio da coisa e transmissão da posse que o Autor nega ter acontecido e se veio a comprovar, pelo que, aliás, não deixou de ser condenado como litigante de má-fé.
Como se sabe, a partir de 20 de Dezembro de 1999, face ao disposto no artigo 7º da Lei Básica, só passaram a ser reconhecidos como propriedade privada o domínio privado até aí reconhecido como tal “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.”
Não havendo prazo para o cumprimento de futuras obrigações advindas da celebração do contrato-promessa caberia ao Autor promover a interpelação para o cumprimento que entendesse ser devido. Não o tendo feito, não se vê como possa assacar culpa pelo incumprimento ao pai dos Réus até esse momento.
4. Mas admitamos até que, não obstante o nomen juris do contrato celebrado, as partes quiseram tão-somente transmitir a posse dominial da coisa e nesse sentido caberia ao adquirente, com a colaboração do cedente, tratar das coisas para pôr os terrenos em seu nome, o que passaria pelas formalidades junto do Governo, fosse para garantir uma concessão, fosse, como podia ser, abstractamente considerando, para o próprio Autor intentar uma acção de usucapião, já que passaria a ser o dono e senhor desses prédios.
Se assim era, onde está o incumprimento do pai dos Réus?
De nenhum facto se retira a omissão de algum dever a que estivesse adstrito
São os próprios recorrentes que dizem expressamente e repetem nas suas alegações de recurso que era “a obrigação dos contratantes tratarem dos respectivos documentos e medirem a área exacta da parcela de terreno em causa”.
5. No que à interpretação do contrato concerne, isto é, se as partes quiseram um contrato-promessa ou um contrato de transmissão da posse, estando em causa a determinação do alcance da vontade negocial dos contratantes, caímos na análise da matéria de facto e o que se verifica é que os RR. aceitaram a existência de um contrato-promessa e não reagiram quanto a eventual falta de quesitação de base instrutória que afastasse a existência de tal contrato, configurado como tal, em face, quer da matéria especificada nas alíneas A, B, E, F, I, quer dos quesitos 1º, 2º, 4º, 6º.
É curioso observar que esse saneador plasma bem a intencionalidade de transmissão futura de uma propriedade e aquisição por parte da mesma por banda do recorrido e já não uma mera transmissão da posse, que, só agora, os recorrentes configuram.
6. A base instrutória que estava em jogo era muito simples e elucida bem o que vimos dizendo. Aí se perguntava se o terreno e a correspectiva escritura de papel de seda haviam sido deixados pelos antepassados do E; resposta: provado apenas em relação ao terreno. Se nunca foram fornecidos pelo A. os documentos comprovativos que conforme a cláusula 4º do contrato (especificadas na al. F) e referentes aos documentos comprovativos), cabia ao E ter entregado ao A. logo após o contrato-promessa; resposta: não provado. Se o E nunca exibiu nem entregou ao A. a escritura de papel de seda nem provou que esse terreno lhe pertencia em virtude de ser dos seus antepassados e ter por estes sido transmitido; resposta: não provado. Se o E não ajudou ou colaborou com o A. para este ser reconhecido pelos departamentos governamentais como novo titular do papel de seda e para ser reconhecido como o novo proprietário nem para que este obtivesse junto daqueles departamentos autorização para mudar a finalidade do terreno; resposta: não provado. Antes se prova, dos quesitos 5º a 9º, que :
“O E entregou ao Autor as parcelas de terreno que lhe prometeu vender. (resposta ao quesito 5° e 9° da base instrutória)
- Mediante notificação judicial avulsa requerida em 16 de Agosto de 2011, o Autor pretendeu interpelar o E (E) para cumprir o contrato cujo teor consta de doc. fls. 20 a 24. (resposta ao quesito 6° da base instrutória)
- No âmbito da referida notificação judicial avulsa veio a ser apurado que o E (E) já teria falecido. (resposta ao quesito 7° da base instrutória)
- Desde pelo menos 29 de Abril de 1992 até 20 de Dezembro de 1999, o E (E) não promoveu o reconhecimento judicial via usucapião do direito de propriedade sobre o terreno sub judice. (resposta ao quesito 8° da base instrutória)”.
7. É evidente que, mesmo que os recorrentes procurem ver nalguns poucos quesitos a base de sustentação da sua tese, no sentido de que, cedida a posse, o A. deveria apresentar-se como o novo “dono” e novo titular da escritura de papel de seda e que o pai dos recorrentes frustrou tal expectativa, trata-se de uma construção que ruiu completamente. Porquê? Por um lado, porque essa tese não se comprova; por outro, é o próprio Autor que nega que tenha havido tradição da coisa, o que se não comprovou, antes pelo contrário, vindo o A. – e muito bem – a ser condenado como litigante de má-fé por isso mesmo.
Este último argumento parece numa primeira aparência apontar para um reforço da tese dos RR. isto é, se o A. até tomou posse dos terrenos, então é porque o que houve foi uma cedência da posse e nada mais. Se pensarmos, no entanto, que em muitos dos contratos-promessa de transmissão da coisa, esses contratos são desde logo acompanhados da respectiva traditio, logo se vê facilmente que essa posse, aliás, negada pelo A. (porque lhe convinha, imputando assim mais facilmente o incumprimento ao pai dos recorrentes), mas comprovada nos autos, não é incompatível com a celebração de um contrato-promessa.
Contrato esse celebrado sem prazo, dependente de um reconhecimento do direito de propriedade do promitente-vendedor, mas que, à falta de estipulação, bem podia ter sido empreendido por ambos os contratantes.
8. Por outro lado, o pagamento do preço, integral e feito de imediato, pelo Autor ao Réu, teve do outro lado - do Réu - a correspectiva contraprestação, que foi a da entrega da coisa e tomada de posse por parte do A..
Nada de estranho e perfeitamente compatível com inúmeras situações contratuais, no âmbito dos contratos-promessa, em que o promitente comprador toma de imediato a posse da coisa, paga o preço e passa até a agir como dono da coisa, o que lhe confere até um estatuto especial habilitante para executar especificamente o contrato.
Só que neste caso sobreveio uma impossibilidade superveniente do cumprimento acordado pelas partes, não se podendo imputar responsabilidade pelo incumprimento a qualquer delas.
Dir-se-á que a prestação do Autor, confrontado com essa possibilidade superveniente, se tomou vazia e destituída de qualquer causa juridicamente atendível, justificando-se a resolução do contrato.
9. Não se deixa ainda de referir que as escrituras de papel de seda não titulam qualquer direito real, como se tem entendido nesta Instância.3
Podem ter alguma relevância em termos demonstrativos de actos de posse e de reconhecimento desta perante terceiros e perante uma determinada comunidade, entendimento este que não é apenas post RAEM, mas que já se vinha perfilhando nos Tribunais de Macau. Ora, se assim era, as partes sabiam bem, ou deviam saber, ao que iam, ao embarcar num contrato de tal natureza.
Como assinalámos já, até ao estabelecimento da RAEM, qualquer das partes podia ter empreendido o reconhecimento do terreno como propriedade privada.
Depois do estabelecimento da RAEM, não se mostrando reconhecido anteriormente essa propriedade privada, mostra-se de realização legalmente impossível, face ao disposto no art. 7º da Lei Básica, pelo que somos a sufragar o entendimento sobre a matéria vertido na douta sentença recorrida.
10. Pelo que se formulam as seguintes conclusões:
- Se o Autor celebrou um contrato-promessa com o pai dos RR, prometendo comprar e este prometendo vender dois troços do terreno sito em Coloane, Ká Hó que lhe alegou ter sido transmitidos pelos seus antepassados, se o Autor já pagou àquele a totalidade do preço na quantia de HKD$6.878.339,40, se nunca foi celebrado o cumprimento do contrato definitivo, que não tinha prazo e não se provando culpa do promitente vendedor, se o A. nega a transmissão da posse, o que não é verdade, também ele podendo ter tratado do reconhecimento do direito de propriedade, por via da transmissão da posse que se operou a partir do momento do contrato-promessa, até ao momento do estabelecimento da RAEM, já depois deste estabelecimento, perante a inviabilidade desse reconhecimento o contrato prometido torna-se inviável, o que determina a resolução do contrato.
- Na qualificação jurídica da relação estabelecida pelas partes só se releva o conteúdo das convenções estipuladas pelas partes subsumível ao conceito jurídico e não a designação atribuída pelas partes ao acordo, sendo a interpretação do contrato, no sentido da determinação da vontade negocial dos contratantes, matéria de facto.
- Se o Saneador é perspectivado em função de um contrato-promessa, tendo em vista a realização futura de um contrato de transmissão da propriedade e as partes aceitam essa configuração, não podem, em sede de recurso, defender que o contrato foi outra coisa e o que quiseram foi transmitir meramente a posse dos terrenos.
- Sobre o terreno titulado por papel de seda, é pacífico o entendimento de que o titular do papel de seda não pode ser considerado juridicamente titular de direito real sobre o terreno, constituindo tal documento um elemento indiciador dos actos de posse sobre a coisa e reconhecimento dessa posição pela comunidade ou pelas associações de moradores.
- Não havendo prazo certo para a celebração da escritura de compra e venda, só há mora dos promitentes, após estes terem sido interpelados para tal. Não resultando provado que as partes tivessem estipulado prazo para a outorga da escritura pública, devia o credor proceder a interpelação do devedor para cumprir a sua obrigação.
- Com a entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, a usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade reconhecida deixou de ser legalmente permitida face ao disposto do art. 7º do citado diploma legal e se os RR. que estavam adstritos ao cumprimento do contrato definitivo não demonstram esse reconhecimento anterior, enfrentamos uma situação de impossibilidade objectiva de incumprimento geradora da resolução do contrato.
Razões por que se sufraga e reproduzem os argumentos expendidos na douta sentença proferida na 1ª Instância, não se deixando de negar provimento ao presente recurso.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 11 de Junho de 2015,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 A redacção do contrato não é bem esclarecida quanto a intenção das partes, mas isso fica superada com o acordo quanto aos factos nos articulados.
2 Cfr. Acórdão do TRC de 2/5/1993 in BMJ, 447º, 581 e do TRL de 29/4/1993 in BMJ 426º, 515
3 - Ac. TSI, de 24/11/2010, Proc. n.º 970/2010; de 19/7/2012, Proc. n.º 296/2011
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238/2015 51/51