Processo nº 384/2015 Data: 11.06.2015
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “homicídio por negligência”.
Valoração de provas.
Nulidade.
SUMÁRIO
1. Constando da fundamentação da sentença que para a decisão da matéria de facto ponderou o Tribunal em imagens captadas do momento da “ocorrência” – (crime) – que se encontravam registadas num disco junto aos autos, sem que as mesmas tenham sido visualizadas ou objecto de qualquer apreciação em audiência de julgamento, verificada está a violação do art. 336° do C.P.P.M. que regula a matéria da “valoração de provas (em audiência de julgamento)”, pois que o Tribunal formou a sua convicção com recurso a provas que não foram “produzidas ou examinadas em audiência”, (cfr., n.° 1).
2. Tal vício (que atinge a convicção do Tribunal) gera a nulidade da (própria) audiência de julgamento, implicando a sua repetição, o que prejudica também o conhecimento de outras questões – ainda que relacionadas com a “decisão da matéria de facto” – que pelo recorrente possam ter sido colocadas.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 384/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença prolatada pelo Mmo Juiz do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguida com os sinais dos autos, como autora material da prática de um crime de “homicídio por negligência”, p. e p. pelo art. 134°, n.° 1 do C.P.M. e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 2 anos de prisão, e na pena acessória de inibição de condução por um período de 2 anos; (cfr., fls. 242 a 247 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada, a arguida recorreu.
Na sua (longa) motivação e (extensas) conclusões, coloca, em síntese, as questões seguintes:
- “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”; (cfr., concl. 1ª a 31ª);
- “valoração proibida de prova”; (cfr., concl. 32ª a 50ª);
- “excesso de pronúncia”, e “alteração não substancial dos factos”; (cfr., concl. 55ª a 61ª)’
- “excesso de pena”; (cfr., concl. 62ª a 87ª ).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 326 a 333-v).
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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer, subscrevendo (em grande parte) a posição do seu Exmo. Colega da 1ª Instância, divergindo unicamente no que toca à questão da peticionada “suspensão da execução da pena” que considera viável; (cfr., fls. 341 a 342-v).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 243-v a 244-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a arguida dos presentes autos recorrer da sentença prolatada pelo Mmo Juiz do T.J.B. que a condenou como autora da prática de um crime de “homicídio por negligência”, p. e p. pelo art. 134°, n.° 1 do C.P.M. e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 2 anos de prisão, e na pena acessória de inibição de condução por um período de 2 anos.
E, como se viu, várias são as questões que, no âmbito do seu recurso trás à apreciação e decisão deste T.S.I..
No que toca à “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, diz, em síntese, a recorrente que alegou “factos indubitavelmente importantes para a boa decisão da causa, no sentido de se poder estabelecer se a arguida violou, efectivamente, o dever de condução com prudência e ainda, em caso afirmativo, com que grau de intensidade, isto é, factos sem os quais não podia a Meritíssima Juiz a quo alcançar as soluções de direito que na douta sentença propugna, designadamente que a ora Recorrente violou aquele dever de cuidado e que essa violação foi intensa!”, sendo “que tais factos não figuram no elenco dos factos provados e não provados plasmado na douta sentença recorrida”, e que, “ao fundamentar a sua decisão a Meritíssima Juiz a quo acaba por alcançar conclusões não alicerçadas na lista de factos provados e não provados constantes da douta sentença recorrida”, assim concluindo pela verificação do assacado vício.
Quanto ao vício de “valoração proibida da prova” diz – essencialmente – que “pela leitura da douta sentença recorrida, constata-se que a convicção formada pela Meritíssima Juiz a quo que conduziu à decisão de condenação da ora Recorrente se alicerça fundamentalmente nas imagens captadas por uma câmara de vídeo”, que “durante a audiência de julgamento, em nenhum momento o Ministério Público ou a Meritíssima Juiz instou ou confrontou a arguida com o conteúdo das imagens alegadamente captadas, isto sem prejuízo da sua nitidez ou falta dela”, que “nas alegações finais o Ministério Público não fez qualquer alusão às mesmas imagens” e que o aludido disco nem sequer estava “apenso” ao processo.
Quanto ao “excesso de pronúncia” e “alteração não substancial dos factos”, e se bem ajuizamos, diz a recorrente que a gravação constante do atrás aludido disco não constava da acusação como meio de prova, pelo que, se o Tribunal a tivesse considerado, relevante deveria ter ordenado o seu visionamento em audiência, em conformidade com o estatuído no art. 321°, n.° 1 e 2 do C.P.P.M., o que por não ter sucedido implicou a condenação da recorrente com base em factos não constantes da acusação sem que dos mesmos tenha sido previamente informada.
Por fim, e quanto à “pena”, considera-a excessiva, pedindo a sua redução e suspensão na sua execução.
Aqui chegados, e face ao que se expôs, que dizer.
Vejamos.
Como temos vindo a entender, o Tribunal de recurso não está – nem podia estar – vinculado a conhecer das questões que lhe são colocadas na mesma ordem em que elas vem apresentadas e suscitadas pelo recorrente: com efeito, e como se mostra evidente, adequado não parece de se começar por proceder à apreciação de questões relacionadas com a “decisão de direito”, (v.g., enquadramento jurídico-penal e correspondente adequação da pena), conhecendo-se, só depois, de eventuais vícios da “decisão da matéria de facto”, pois que, sem uma, “boa decisão de facto”, (clara e sem vícios), viável não é uma (boa) “decisão de direito”.
Dito isto, (e assim justificado que cremos ter ficado o que atrás se deixou consignado), que dizer das questões pela recorrente suscitadas?
–– Mostra-se de começar pela assacada “valoração proibida de prova”.
De facto, esta “questão”, para além de se relacionar directamente com a “decisão da matéria de facto”, afigura-se-nos que está com a mesma intrinsecamente ligada, (sendo mesmo “anterior” aquela), mostrando-se-nos de, sobre a mesma, emitir desde já pronúncia, antes do conhecimento de outras questões, nomeadamente, em relação à alegada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, já que, a se verificar, acarreta, necessariamente, a nulidade da própria audiência de julgamento, e assim, a própria decisão da matéria de facto que, como é óbvio, não se pode manter.
Com efeito, se o próprio “processo de formação da convicção do Tribunal” padece de “vícios”, escusado é ver se se deve, (ainda assim), manter a decisão que proferiu sobre a “matéria” (de facto) que era objecto de julgamento.
Nesta conformidade, comecemos pois pela identificada questão da “valoração da prova”.
Vejamos.
O nosso C.P.P.M. trata da matéria da “valoração da prova” no art. 336° do seu Capítulo III, dedicado à “Produção da prova”, e que, por sua vez, encontra-se inserido no Título II, referente à “Audiência”.
E, como sabido é, o “processo penal”, como “prática ordenada de actos processuais”, é (ou pode ser) constituído (ou composto) por diferentes fases – a do Inquérito, da Instrução, do Julgamento, dos Recursos, … – com finalidades também distintas e autónomas entre si.
Daí que – esta autonomia e diferenciação de finalidade – implique, a não “imediata e integral comunicação” (transmissão) das suas respectivas “bases”, (processado), “governando-se cada uma delas com os meios que nela própria seja possível alcançar, independentemente do que se serviu de sustentáculo às opções tomadas em outras fases”; (cfr., L. Henriques, in “Anot. e Com. ao C.P.P.M.”, Vol. II, pág. 680 e segs., e onde, exemplificando, considera que: “é por isso que na fase do inquérito, que se desenvolve em moldes praticamente inquisitoriais, o respectivo titular (M.° P.°) apenas tenha que se preocupar com a reunião de simples indícios que o habilitem a optar pela transposição do evento criminal para a fase de julgamento (mediante acusação) ou pela abstenção de o fazer (através de despacho de arquivamento), não tendo tais indícios outro objectivo ou utilidade que não seja essa: possibilitar a tomada de posição sobre o destino futuro do processo.
Já na fase da instrução (se a houver, pois que se trata de uma fase meramente facultativa), o seu dominus (o juiz de instrução) responde por uma outra responsabilidade, competindo-lhe avaliar se a posição assumida pelo M.° P.° no fim do inquérito (acusação ou arquivamento) se justifica ou não, isto em face da prova, ainda também simplesmente indiciária, que das diligências até então feitas ou dos dados recolhidos nessa fase, vierem a resultar.
Dessa avaliação sairá, assim, um veredicto confirmativo ou infirmativo da opção tomada após o inquérito, que poderá, consoante os resultados atingidos, conduzir ou não ao avanço para uma nova fase, que é a do julgamento (despacho de pronúncia ou de não pronúncia).
Sendo de submeter o feito ao juízo de um tribunal, que terá que fazer finalmente justiça no caso concreto, agora já em termos de certeza, esse tribunal vai naturalmente apoiar-se em meios de prova próprios, produzidos ou testados na audiência e em obediência a princípios específicos, rígidos e muito claros, com predominância dos seguintes:
- o da publicidade;
- o da investigação;
- o da imediação;
- o do contraditório
(…)”.
Ora, é pois atentas estas “especificidades” do processo penal que se insere a questão da “valoração da prova”, (no caso, em “audiência de julgamento”), reflectindo a atrás enunciada “autonomia das diversas fases do processo”, valendo a pena aqui sublinhar a importância do “princípio da imediação”, como ordenador da forma de alcançar a decisão em processo penal, traduzindo a relação de proximidade que deve existir entre o julgador do facto e os meios de (sua) prova; (cfr., J. Boaventura Martins in “Da valoração das declarações de arguido prestadas em fase anterior ao julgamento”, pág. 40 e segs.).
Na situação em apreciação, e como resulta do próprio texto da sentença recorrida, (da sua fundamentação), para a “decisão da matéria de facto” (provada e não provada), socorreu-se o Tribunal de imagens captadas por uma câmara instalada no local onde ocorreu o “acidente” dos autos.
Porém, como igualmente resulta do processado, (em especial), da acta de julgamento, as ditas imagens não foram “visionadas” ou “objecto de qualquer apreciação” em sede da audiência de julgamento que teve lugar antes da prolação da sentença recorrida, colidindo assim tal “procedimento” com o estatuído no art. 336° do C.P.P.M., onde se preceitua que:
“1. Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes”.
Com efeito, o transcrito comando legal reflecte (em letra de lei) a dita “autonomia das diferentes fases processuais”, e referindo-se à audiência de julgamento, estatui expressamente que para a convicção do Tribunal não valem outras provas que não tiverem sido “produzidas” – portanto, aquelas que ocorrem em audiência, perante o Tribunal em obediência aos princípios de imediação e contraditório – e “examinadas em audiência”, (aquelas que, embora produzidas em fase anterior ou constantes de documentos ou relatórios integrados no processo, são trazidas à audiência para exame).
In casu, as “imagens” (captadas da ocorrência) não integram a ressalva prevista no n.° 2 do mencionado art. 336°, e, como também não foram “visualizadas”, “produzidas ou examinadas em audiência”, não podiam ter servido para a formação da convicção do Tribunal.
Tendo sido, como efectivamente foi, incorreu-se em violação do estatuído no art. 336°, n.° 1, inquinada estando (toda) a convicção do Tribunal a quo, o que não pode deixar de acarretar a nulidade do julgamento efectuado e a sua repetição – cfr., v.g., “C.P.P. Com. e Notas Práticas do Mag. do Ministério Público do Porto”, pág. 890 – prejudicadas ficando as restantes questões pela recorrente colocadas.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso interposto, devolvendo-se os presentes autos ao T.J.B. para se proceder em conformidade com o decidido.
Sem tributação.
Macau, aos 11 de Junho de 2015
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 384/2015 Pág. 16
Proc. 384/2015 Pág. 15