Proc. nº 612/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 23 de Abril de 2015
Descritores:
-Revisão de sentença do exterior de Macau
-Requisitos formais
-Concessão de crédito
SUMÁRIO:
I. Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
II. Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
Proc. nº 612/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A LIMITED, Pessoa Colectiva nº ..., com sede......na Austrália, instaurou acção especial de revisão e confirmação da sentença proferida por tribunal do exterior de Macau
que condenou B, residente em Macau, RAEM, na...... - ora Requerido, ao pagamento de quantia certa à Requerente, resultante de um crédito a este concedido.
Juntou documentos.
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O requerido veio apresentar contestação, excepcionando a ausência de citação e, impugnando, negando ter havido qualquer mútuo.
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Houve resposta da requerente sobre a alegada falta de citação.
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O digno Magistrado do MP não se opõe ao deferimento do pedido.
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
1- A requerente, A Limited, desenvolve a actividade de casino no Estado de Nova Gales do Sul, na Austrália.
2- A requerente concedeu crédito ao requerido no montante de AU$750.000,00 no dia 4 de Janeiro de 2012, após o preenchimento do respectivo formulário (doc. 1, fls. 10 e 116).
3- O requerido assinou o cheque nº …, que entregou à requerente (doc. 2, fls. 13).
4- Este cheque foi apresentado a pagamento no dia 19 de Junho de 2012 (doc. 3, fls. 15).
5- A requerente instaurou acção judicial contra o requerido no dia 19/12/2012 no Tribunal Supremo de Nova Gales do Sul, na Austrália (doc. 5, fls. 19-26).
6- O requerido veio a ser condenado nessa acção no processo nº 2013/00005174 a pagar à requerente AU$950.803,48 (doc. 6, fls. 28), o que ainda não fez até ao momento.
7- No documento de fls. 116 o requerido acordou que qualquer litígio fosse sujeito às regras do Estado da Nova Gales do Sul e que qualquer notificação para um processo judicial instaurado pela SCPL contra si poderá ser feita dirigindo-a para o seu endereço postal ali especificado.
8- A fls. 166, encontra-se um documento em língua inglesa que, em português, apresenta o seguinte teor (cfr. tradução a fls. 179):
DECLARAÇÃO
Nome: C
Endereço: ...
Cargo: Procurador do requerente
Data: 28-3-2013
Afirmo:
1. Ser o procurador do requerente.
2. Ter idade superior a 16 anos.
3. A 14 de Janeiro de 2013, citei o réu B com o seguinte documento: (a) Petição inicial submetida a 24 de Dezembro de 2012.
4. A citação foi feita através de envio de uma cópia autenticada para o endereço do réu no …, Macau, no âmbito de um acordo de prestação de serviços entre o autor e o réu.
5. Coloquei uma cópia da petição inicial num envelope e verifiquei que o envelope estava endereçado da seguinte forma:
B
… Macau
6. Coloquei de seguida um selo postal e uma etiqueta de correio aéreo no envelope e verifiquei que o endereço do remetente constante no envelope era o da caixa postal do meu escritório, PO Box….
7. Coloquei, então, o envelope numa caixa postal administrada pelos Correios Australianos.
8. Não fui ainda notificado pelo réu com uma Intimação de Comparecimento ou Defesa.
9. Pretendo autorização para avançar com uma acção contra o réu nesta matéria, com base na causa da acção do presente processo, que se refere a um contrato celebrado em Sydney, no estado de New South Wales, assim como no contrato celebrado entre o autor e o réu, com base na lei aplicável, nomeadamente as leis aplicadas no estado de New South Wales.
(assinatura ilegível) (assinatura ilegível)
Declarante Testemunha
9- E a fls. 167 encontra-se um outro documento redigido em língua inglesa que, em português, apresenta o seguinte teor (cfr. tradução a fls. 180):
AFIRMADO em Sutherland
Assinatura do declarante (assinatura ilegível)
C
Nome da Testemunha D
Procurador
…
…
Endereço da Testemunha …
Competência da testemunha _______________________________________________
Juiz/Procurador/ Advogado/Comissário de Declarações/Notário Público
E, como testemunha, certifico as seguintes matérias relativas à pessoa que fez esta declaração (o declarante);
1. Vi o rosto do declarante
2. Conheço o declarante há pelo menos 12 meses.
Assinatura da Testemunha (assinatura ilegível)
O declarante e testemunha devem assinar cada página da declaração. Ver UCPR 35.7B.
D
Procurador
…
10- A sentença referida no número anterior, em inglês, tem o seguinte conteúdo:
«JUDGMENT/ORDER
COURT DETAILS
Court: Supreme Court of NSW
Division: Common Law
List: Common Law General (default)
Registry: Supreme Court Sydney
Case number: 2013/00005174
TITLE OF PROCEEDINGS
First Plaintiff: A Limited
...
First Defendant: B
DATE OF JUDGMENT/ORDER
Date made or given: 13 May 2013
Date entered: 13 May 2013
TERMS OF JUDGMENT/ORDER
Judgment:
B, First Defendant
is to pay
A Limited, First Plaintiff
the sum of $950803.48 inclusive of costs.
SEAL AND SIGNATURE
Signature: M. Ha (L.S.)
Capacity: Chief Clerk
Date: 13 May 2013».
11- A mesma sentença, traduzida para a língua portuguesa, apresenta o seguinte texto:
«SENTENÇA/ORDEM
DETALHES DO TRIBUNAL
Tribunal: Tribunal Supremo de New South Wales
Divisão: Lei Comum
Lista: Lei Comum Geral
Conservatória: Tribunal Supremo de Sidney
Processo No.: 2013/00005174
TÍTULO DO PROCESSO
Autora: A LIMITED
ACN:…
Réu: B
DATA DA SENTENÇA/ORDEM
Data atribuída: 13 de Maio de 2013
Data registada: 13 de Maio de 2013
TERMOS DA SENTENÇA/ORDEM
Sentença:
B, Réu
pagar a
A Limited, a Autora
a quantia de $950.803,48 inclusive de custas
SELO E ASSINATURA
Tribunal Supremo de New South Wales
Assinatura: M. Ha (L.S.)
Capacidade: Escrivão Chefe
Data: 13 de Maio de 2013».
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IV – O Direito
1 – Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública. 2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Neste tipo de processos não se conhece do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, uma vez que o Tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento, nem da questão de facto, nem de direito.
Ora, na contestação, o requerido veio defender-se dizendo que não chegou a ser citado no âmbito da acção que contra si foi proposta na Austrália, circunstância que, alegadamente, preencheria a previsão do art. 1200º, nº1, al. e), do CPC e que, portanto, impediria a confirmação da sentença revidenda.
Não cremos que tenha razão. Efectivamente, o preceito em causa impede a confirmação se a citação não tiver ocorrido “nos termos da lei do local do tribunal de origem”.
Ora, face aos documentos traduzidos a fls. 179-180, ter-se-ia cumprido o “2.Rule 10.6 of The Uniform Civil Procedure Rules 2005 (NSW) (“UCPR”). Na verdade esta regra dispõe o seguinte:
“10.6 Citação em conformidade com o acordo entre as partes
(1) Em qualquer processo judicial, qualquer documento (incluindo o processo originário) pode ser entregue por uma parte à outra (quer em New South Wales ou noutro sítio) no seguimento de qualquer acordo, admissão ou compromisso pela qual a parte a ser citada está vinculada.
(1A) Em relação à citação de um processo originário num processo judicial sobre uma reclamação pela posse de um terreno, o acordo, admissão ou compromisso referido em (1) deve ser feito após o processo originário dar entrada mas antes da citação.
(2) A citação em conformidade com (1) é tomada para todos os fins (incluindo para o fim de qualquer norma requerendo uma entrega pessoal) para constituir uma citação suficiente”
Ora, o requerente acordou com a requerente os termos em que ele poderia ser citado/notificado no formulário “Cheque Cashing Facility Form” (doc. 1 a fls. 10 e tradução a fls. 116 e sgs.).
E foi na sequência disso que veio a ser lavrado o “affidavit” (declaração do seu mandatário judicial), conforme documento de fls. 166 e tradução de fls.179 8tb. ver fls. 167 e tradução de fls. 180).
Significa isto que a citação teve lugar nos termos acordados e nos moldes que a legislação australiana prevê. Ou seja, a parte vencida naquele processo foi legalmente citada de acordo com a lei local da Nova Gales do Sul. E assim sendo, não se pode dizer terem sido violados os aludidos princípios, pelo que a alínea e), do nº1, do art. 1200º do CPC não constitui obstáculo à pretendida revisão e confirmação.
De tal modo que não é possível dizer que o requerido não teve oportunidade de se defender naquele processo ou que não foi observado o princípio do contraditório.
O fundamento exceptivo aduzido pelo requerido é, pois, improcedente.
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Depois, o requerido trouxe ao processo uma fundamentação impugnativa com a qual pretende afastar os fundamentos que estiveram na base da condenação pela sentença revidenda.
Mas, também aí, não tem razão.
Com efeito, como é sabido, neste tipo de processos não é possível conhecer do fundo da causa, uma vez que o Tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento, nem da questão de facto, nem de direito (v.g., Ac. TSI, de 25/09/2014, Proc. nº 209/2014). Ou seja, neste âmbito processual não é possível fazer-se uma revisão de mérito!
Vejamos, então, os requisitos do art. 1200º, do CPC, para além do já estudado.
Antes de mais, cumpre salientar que é sobre a parte requerida que recai o ónus de prova da inexistência dos requisitos de confirmação estabelecidos no art. 1200º do CPC (entre outros, na jurisprudência comparada, o Ac. STJ, de 21/02/2006,Proc. nº 05B4168).
Quer dizer, relativamente àqueles requisitos, geralmente basta ao requerente a sua invocação, ficando dispensado o requerente de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumem (neste sentido, Ac. TSI, de 3/07/2014, Proc. nº 142/2013).
Ora, os documentos constantes dos autos revelam e certificam a situação invocada pelo requerente, mostrando, para além da sua autenticidade, a sua inteligibilidade (al. a), do nº1, do art. 1200º do CPC).
E quanto ao trânsito da sentença revidenda, nada disse o requerido que ponha em causa o referido trânsito, nem os autos apresentam elementos que permitam duvidar da sua verificação.
Também não está em causa a falta de competência do tribunal onde foi proferida a sentença revidenda e o assunto tratado não versa sobre matéria que seja da exclusiva competência dos tribunais de Macau (art. 20º e al. c), do nº1, do art. 1200º, do CPC).
Também não se vê que tenha havido violação das regras de litispendência ou que tivessem sido violadas as regras de citação no âmbito daquele processo ou que não tivessem sido observados os princípios do contraditório ou da igualdade das partes.
Por tudo isto, nada obsta à procedência do pedido (art. 1204º do CPC).
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V- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder a revisão e confirmar a decisão proferida pelo Tribunal Supremo de Nova Gales do Sul, no âmbito do processo nº 2013/00005174, nos seus precisos termos, tal como acima transcritos.
Custas pelo requerido.
TSI, 23 / 04 / 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
612/2014 14