Processo n.º 783/2014 Data do acórdão: 2015-5-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– toxicodependente
– prorrogação do período da suspensão da execução da pena
– regime de prova com obrigação de desintoxicação
– internamento para desintoxicação
– informação do pessoal técnico
– recusa de tratamento em internamento
– violação grosseira da regra de conduta
– revogação da pena suspensa
– art.º 54.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal
S U M Á R I O
1. O arguido, em relação ao qual foi decidido judicialmente prorrogar o período de suspensão da execução da pena de prisão sob condição de ficar sujeito ao regime de prova com obrigação de desintoxicação (incluindo a sujeição ao tratamento da toxicodependência em regime de internamento a ser tido por necessário por assistente social), se achasse injusta ou desrazoável essa ordem judicial na parte relativa à sujeição ao tratamento da toxicodependência em regime de internamento, deveria ter então recorrido disso, e como não usou tempestivamente do seu direito de recurso, deixando essa ordem ter transitado em julgado em 11 de Junho de 2014, a ele só restava o dever de cumprimento da ordem tal como nela se continha.
2. Segundo a informação de 12 de Agosto de 2014 do pessoal técnico do Departamento de Reinserção Social, o arguido teve reacção positiva à Ketamina no teste de urina feito em 17 de Julho de 2014, e depois foi-lhe prescrito o tratamento da toxicodependência em internamento por um ano, internamento esse que foi recusado por ele com alegação de que um ano seria demasiado longo e como tal estaria disposto a cumprir a prisão de dois meses e quinze dias.
3. Trata-se essa recusa ao internamento de uma autêntica violação grosseira da regra de conduta imposta no despacho de prorrogação do período de suspensão da pena, proferido precisamente depois de o arguido ter pedido então ao tribunal que lhe desse mais uma oportunidade.
4. Daí que já não se pode acreditar mais que as finalidades que estavam na base da suspensão da pena possam vir a ser alcançadas ainda com a manutenção da suspensão da pena, pelo que é de manter a ora recorrida decisão revogatória da suspensão da pena, tomada nos termos do art.º 54.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 783/2014
(Recurso em processo penal)
Recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o despacho judicial proferido a fls. 146 a 146v dos autos de Processo Comum Singular n.o CR4-13-0245-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) que lhe revogou, nos aí citados termos do art.o 54.o, n.o 1, alínea a), do Código Penal (CP), a suspensão da execução da pena única de dois meses e quinze dias de prisão então imposta nesses autos por causa de um crime de consumo ilícito de estupefaciente e de um crime de detenção indevida de utensílio, veio o arguido condenado A, já melhor identificado nesses autos, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a invalidação desse despacho, através de um conjunto de razões expostas na motivação de recurso apresentada a fls. 167 a 173 dos presentes autos correspondentes, e por ele sintetizadas de seguinte maneira:
– <<[…]
1.ª O presente recurso vem interposto do despacho que revogou a medida de suspensão da execução da pena de prisão de dois meses e quinze dias aplicada ao recorrente em cúmulo jurídico.
2.ª O despacho recorrido baseou-se no facto de que o recorrente acusou o consumo de estupefacientes e se recusou a submeter ao subsequente tratamento sugerido pela técnica de reinserção social.
3.ª O consumo de estupefacientes no passado ditou a extensão do período de suspensão da execução da medida de prisão por um ano adicional.
4.ª Sob pena da violação do princípio da dupla valoração de tais factos e também do princípio ne bis in idem, devemos entender que os efeitos perniciosos dos mesmos se esgotaram no decretamento de tal extensão.
5.ª O recorrente novamente acusou positivamente o consumo de estupefacientes nos testes à urina efectuados a 23 de Maio de 2014 e a 17 de Julho de 2014.
6.ª Não se podem valorar autonomamente os efeitos do primeiro consumo, porque nada nos garante que este consumo se terá verificado depois de tal despacho ser decretado, e porque o despacho recorrido baseou-se na promoção da técnica de reinserção social, que valorou a violação do plano de desintoxicação traçado no mês de Junho de 2014, numa data posterior à primeira infracção verificada.
7.ª Não se afigura, de todo o modo, que o despacho recorrido tenha pretendido valorar o primeiro dos consumos acima elencados.
8.ª Resta-nos o isolado rasto de consumo de ketamina verificado a 17 de Julho de 2014 que desencadeou as sugestões subsequentemente apresentadas pela técnica de reinserção social.
9.ª Partir de um caso isolado, sem mais, para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, apenas porque o recorrente não aceitou o regime de prova proposto pela técnica de reinserção social, parece manifestamente exagerado e desproporcional.
10.ª O que resulta do último relatório de avaliação periódica é que o recorrente se encontrava comparativamente numa fase de franca recuperação, apenas tendo por uma vez sofrido um relapso no seu esforço de acatar com as obrigações impostas.
11.ª O art.º 53.º, al. c) do Código Penal permite ao Tribunal “impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação”, o que sucedeu nos presentes autos.
12.ª As regras de conduta sugeridas foram manifestamente desproporcionais, devendo o Tribunal optar por um meio-termo que vá de encontro às necessidades de ressocialização do recorrente e que não resvale simplesmente na revogação da suspensão da pena de prisão.
13.a O art.º 50.º, n.º 3 do Código Penal permite que, sempre que o recorrente aquiescer, o tribunal possa determinar um tratamento ou cura em instituição adequada.
14.a A técnica de reinserção social que tem acompanhado o recorrente sugeriu que o recorrente fosse internado no centro para reabilitação de toxicodependentes pelo período de um ano, em regime de confinamento absoluto.
15.a O art.º 49.º, n.º 2 do Código Penal (aplicável também em virtude do art.º 50.º, n.º 4 para as regras de conduta) estabelece com tempestiva razão que “[o]s deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir”.
16.a A medida sugerida pela assistente social colide frontalmente não só com o aludido preceito mas também com o disposto no art.º 50.º, n.º 1 do Código Penal, lá onde determina que as regras de conduta impostas ao recorrente devem almejar “facilitar a sua reintegração na sociedade”.
17.a Tal plano, além de implicar uma limitação impensável da liberdade do recorrente, aliada ao incindível e abrupto afastamento da sociedade, não pode de forma alguma consubstanciar uma regra de conduta conducente à reintegração do recorrente na sociedade.
18.a Não devemos menosprezar o facto de que a droga cujo consumo as análises revelaram é uma droga considerada leve.
19.a Não devemos, em última análise, olvidar o facto de que também o regime de prova visa, nos termos do art.º 51.º, n.º 1 do Código Penal, a reintegração do condenado na sociedade.
20.a Os malefícios trazidos pelo afastamento do recorrente por um ano da sociedade, arrancando-o do seu habitat social, destruirão mais do que auxiliarão as suas futuras possibilidades de ressocialização.
21.a Não deve ser censurada a decisão do recorrente que optou por não acolher uma regra de conduta que contém em si consequências bem mais gravosas do que as da própria condenação que se pretende evitar.
22.a O douto tribunal a quo, com a sugestão da técnica de reinserção social, poderá facilmente impor ao recorrente regras de conduta mais razoáveis, que visem facilitar a sua efectiva reintegração na sociedade.
23.a Do que resulta do relatório de avaliação periódica, o recorrente tem demonstrado uma integração positiva, desenvolvendo alguns negócios na China, dedicando tempo à prática desportiva e atenção aos familiares, que por seu turno também lhe retribuem a atenção e carinho.
24.ª A revogação da suspensão da execução da pena de prisão potenciará desnecessariamente o efeito criminógeno particularmente activo das penas de privação da liberdade de curta duração.
25.ª Parece desmesurada a execução da pena de prisão ao recorrente, neste momento e pelos factos que a determinaram, quando outras soluções não privativas da liberdade se revelam mais aliciantes não só para o recorrente como para a comunidade em geral.
26.ª O acórdão recorrido violou, nos termos expostos, o disposto no art.º 49.º, n.º 3, no art.º 50.º, n.ºs 1, 3 e 4, no art.º 51.º, n.º 1 e no art.º 53.º, al. c), todos do Código Penal, ao violar os preceitos legais neles ínsitos, e o disposto no art.º 54.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, ao aplicá-lo>> (cfr. as conclusões da motivação a fls. 171 a 173 dos autos).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 175 a 177, no sentido de manifesta improcedência da argumentação do recorrente.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 186 a 187, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Com pertinência à decisão, é de coligir dos autos os seguintes dados:
– Por sentença lida em 8 de Outubro de 2013 no âmbito dos ora subjacentes autos de Processo Comum Singular n.o CR4-13-0245-PCS do 4.o Juízo Criminal do TJB, e transitada em julgado em 18 de Outubro de 2013, o ora recorrente ficou condenado, pela prática em 8 de Outubro de 2012, em autoria material e na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefaciente e de um crime de detenção indevida de utensílio, na pena única de dois meses e quinze dias de prisão, suspensa na execução por dois anos, com regime de prova e sob condição de cumprimento da obrigação de desintoxicação (cfr. o teor dessa sentença, a fls. 82 a 85v dos autos, e a nota do trânsito em julgado da decisão lançada a fl. 92 dos autos);
– Em 20 de Maio de 2014, e logo após a audição (para efeitos de decisão ou não da revogação da pena suspensa) da própria pessoa do recorrente que pediu ao tribunal que lhe desse mais uma oportunidade, a M.ma Juíza titular dos autos em primeira instância proferiu despacho (cujo texto ficou disponibilizado em 22 de Maio de 2014, despacho esse que veio depois transitar em julgado em 11 de Junho de 2014 – cfr. a nota lançada a fl. 123 dos autos) de prorrogação, por um ano, do período inicial de suspensão da pena, com o seguinte imposto simultaneamente ao recorrente: durante o período da suspensão da pena, ele fica sujeito ao regime de prova com obrigação de desintoxicação (incluindo a sujeição ao tratamento da toxicodependência em regime de internamento a ser tido por necessário por assistente social). Logo proferido esse despacho, a mesma M.ma Juíza advertiu solenemente o recorrente de que no subsequente período da suspensão da pena, ele, sob pena de possível revogação da pena suspensa, tinha que cumprir o regime de prova, realizar rigorosamente o tratamento da toxicodependência, não podendo faltar a teste de urina, e tinha que aceitar o acompanhamento por assistente social, incluindo o tratamento da toxicodependência em regime de internamento a ser tido por necessário por assistente social (cfr. o auto da audição lavrado a fls. 120 a 121v dos autos);
– Em 12 de Agosto de 2014, veio junta (a fls. 132 a 133 dos autos) uma informação elaborada nesse próprio dia pelo pessoal técnico do Departamento de Reinserção Social da Direcção dos Serviços de Justiça, segundo a qual o recorrente teve reacção positiva à Ketamina no teste de urina feito em 17 de Julho de 2014, e depois foi prescrito o tratamento da toxicodependência em regime de internamento por um ano, internamento esse que foi recusado pelo próprio recorrente com alegação de que um ano seria demasiado longo e como tal estaria disposto a cumprir a prisão de dois meses e quinze dias;
– Na sequência disso, a mesma M.ma Juíza voltou a ouvir o recorrente em 7 de Outubro de 2014, em sede do que este declarou, inclusivamente, que: não estava disposto a ser internado para tratamento da toxicodependência, porque um ano de internamento lhe seria demasiado longo; a detecção da reacção positiva à substância estupefaciente em teste de urina se deveu possivelmente ao consumo de droga sob influência de bebida alcoólica tomada; estava disposto a continuar a fazer teste de urina, e já deixou de consumir a droga; e sentia profundo remorso;
– Depois dessa audição, a M.ma Juíza acabou por decidir em revogar, nos citados termos do art.º 54.º, n.o 1, alínea a), do CP, a suspensão da execução da pena do recorrente (cfr. o despacho proferido a fls. 146 a 146v).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Apesar da extensão da argumentação tecida pelo recorrente para rogar a invalidação do despacho revogatório da pena suspensa, a chave da solução do presente recurso está na análise da conduta assumida por ele depois do trânsito em julgado da anterior decisão judicial de prorrogação do período inicial da suspensão da execução da pena de prisão.
Dos elementos processuais acima coligidos dos autos, vê-se que na referida decisão de prorrogação do período da suspensão, a M.ma Juíza impôs simultaneamente a seguinte ordem ao recorrente: durante o período da suspensão da pena, ele fica sujeito ao regime de prova com obrigação de desintoxicação (incluindo a sujeição ao tratamento da toxicodependência em regime de internamento a ser tido por necessário por assistente social).
Pois bem, se achasse injusta ou desrazoável essa ordem judicial na parte relativa à sujeição ao tratamento da toxicodependência em regime de internamento a ser tido por necessário por assistente social, o recorrente deveria ter então recorrido disso. E como não usou tempestivamente do seu direito de recurso, deixando essa ordem judicial ter transitado em julgado em 11 de Junho de 2014, a ele só restava o dever de cumprimento da mesma ordem tal como nela se continha.
Daí que não pode o recorrente vir agora, através do recurso do ora despacho revogatório da pena suspensa, fazer questão – sob escudo do art.º 49.º, n.º 2, do CP – da alegada desrazoabilidade do tratamento da toxicodependência em regime de internamento por um ano como tal prescrito por assistente social.
Assente isso, há que ver agora se a conduta assumida por ele após o trânsito em julgado da anterior decisão de prorrogação do período inicial de suspensão da pena é subsumível à situação prevista no art.º 54.º, n.º 1, alínea a), do CP.
Segundo a informação de 12 de Agosto de 2014 do pessoal técnico do Departamento de Reinserção Social já referida na parte II do presente acórdão de recurso, o recorrente teve reacção positiva à Ketamina no teste de urina feito em 17 de Julho de 2014, e depois foi-lhe prescrito o tratamento da toxicodependência em regime de internamento por um ano, internamento esse que foi recusado pelo próprio recorrente com alegação de que um ano seria demasiado longo e como tal estaria disposto a cumprir a prisão de dois meses e quinze dias.
Trata-se essa recusa ao internamento de uma autêntica violação grosseira da regra de conduta imposta no anterior despacho judicial de prorrogação do período inicial de suspensão da pena de prisão, isto porque apenas decorrido um mês e tal contado do trânsito em julgado (em 11 de Junho de 2014) desse despacho de prorrogação do período de suspensão da pena, o recorrente já decidiu, por vontade nítida sua, em não acatar a ordem dada pela M.ma Juíza nesse despacho de prorrogação, na parte respeitante à sujeição dele ao tratamento da toxicodependência em regime de internamento a ser tido por necessário por assistente social.
Nesse quadro das coisas, com a agravante de que a anterior decisão de prorrogação do período da suspensão da pena foi tomada precisamente depois de o recorrente ter pedido então à M.ma Juíza que lhe desse mais uma oportunidade, já não se pode acreditar agora mais que as finalidades que estavam na base da suspensão da pena possam vir a ser alcançadas ainda com a manutenção da suspensão da pena, pelo que é de manter a ora recorrida decisão revogatória da suspensão da pena, tomada nos termos do art.º 54.º, n.º 1, alínea a), do CP.
Ante o acima analisado, já não é mister conhecer de todo o remanescente alegado pelo recorrente na sua motivação de recurso para sustentar a procedência da sua pretensão de invalidação da decisão ora recorrida.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo recorrente, com quatro UC de taxa de justiça.
Comunique ao Departamento de Reinserção Social da Direcção dos Serviços de Justiça e ao Instituto de Acção Social.
Macau, 28 de Maio de 2015.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 783/2014 Pág. 13/13