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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 24 / 2006

Recorrentes: A
Secretária para a Administração e Justiça
Recorridas: Secretária para a Administração e Justiça
A






1. Relatório
   A recorrente A interpôs recurso contencioso do despacho da Secretária para a Administração e Justiça que lhe aplicou a pena disciplinar da cassação da licença de notário privado.
   Por acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido no processo n.° 212/2005, foi julgado procedente o recurso contencioso e anulou o acto administrativo.
   Deste acórdão recorreram as duas partes para este Tribunal de Última Instância.
   A recorrente A formulou as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   1. O acórdão recorrido não indicou os factos dados como provados e a reprodução integral do relatório final do processo disciplinar e do despacho punitivo não exprime o cumprimento da exigência legal;
   2. O acórdão recorrido está eivado do vício de falta de fundamentação, resultante da violação da exigência estabelecida nas norma dos n.ºs 2 e 3 do art.º 562.º do CPC, ex vi do art.º 1.º do CPAC, e que é causa da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC;
   3. O acórdão recorrido não contém a motivação da decisão de facto e de direito no que respeita à decisão sobre a totalidade dos vícios arguidos pela ora recorrente, com excepção dos vícios de violação de lei por erro nos pressupostos de facto no que respeita à decisão sobre a factualidade constante dos pontos 17 e 19 do relatório final do processo disciplinar e sobre o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito por que o despacho punitivo veio a ser anulado e sobre os vícios cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão de provimento;
   4. É à Administração que cabe a prova da verificação dos pressupostos da sua actuação, sendo que é a Administração que tem de suportar a desvantagem de não ter sido feita a prova da verificação dos pressupostos legais;
   5. A convicção do douto Tribunal recorrido formou-se com base no facto de a arguida não ter feito a contraprova dos factos que lhe foram imputados e não na prova dos factos que competia à Administração;
   6. O acórdão recorrido, ao ter dado como provados os factos referidos nos pontos 17 e 19 do relatório final do processo disciplinar, por considerar que esta os não conseguiu infirmar pela prova dos factos contrários por si alegados e ao não ter dado provimento, por essa razão, ao vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, violou o mesmo o princípio da presunção da inocência do arguido e os princípios da proibição da inversão do ónus da prova em desfavor do arguido e in dubio pro reo;
   7. A violação do princípio in dubio pro reo mais se realça quando se verifica que as “considerações especiais” tecidas pelo acórdão recorrido se baseiam em conclusões erradas resultantes de uma errada interpretação dos preceitos legais;
   8. Os “documentos de entrada” na Região só podem ser documentos adequados à verificação da identidade dos outorgantes se corresponderem aos documentos que vêm previstos no n.º 2 do art.º 68.º do CN;
   9. O art.º 44.º do CN (conjugado com o n.º 2 do art.º 68.º) e o n.º 1 do art.º 19.º do Regulamento Administrativo n.º 22/2002 (em substituição do indicado n.º 1 do art.º 14.º do Decreto-Lei n.º 54/97/M, de 28 de Novembro), não determinam o arquivo das cópias dos “documentos de entrada”, utilizados para a verificação da identidade dos outorgantes numa procuração simples;
   10. O Tribunal recorrido não podia tirar a conclusão de que a recorrente não tinha chegado a exigir e examinar os documentos que permitiram a entrada na Região de Macau aos dois mandantes, pois que, caso contrário, a ora recorrente teria arquivado esses documentos;
   11. O acórdão recorrido contraria a lei, quando afirma, sem mais, que a recorrente não exigiu dos mandantes a exibição dos documentos de entrada, pois que, caso contrário, a recorrente teria feito constar também nas procurações a menção a esses “documentos meramente exibidos”;
   12. Não é verdade que o mecanismo da verificação da identidade por declaração de abonadores, em situações normais, não deve ser utilizado em detrimento de outras formas, mais directas e seguras, de verificação da identidade, previstas nas al.s a) e b) do mesmo n.º 2 do art.º 68.º;
   13. O notário apenas deve recusar a intervenção de abonadores «sempre que tenha fundadas razões para duvidar da sua idoneidade» e “fundadas razões” exige que se esteja perante razões sérias, consistentes, inultrapassáveis;
   14. O juízo sobre a idoneidade dos abonadores pertence exclusivamente a notário;
   15. O sistema da abonação é um sistema de identificação tão válido como qualquer outro;
   16. Não corresponde à verdade que a arguida tenha violado com negligência grave o dever de zelo;
   17. O juízo sobre a identidade das partes não é uma afirmação de carácter absoluto;
   18. O conjunto dos aspectos ponderados pela recorrente, no momento em que aceitou a abonação sobre a identidade dos mandantes confirma claramente que a mesma não agiu com erro manifesto ou com total desrazoabilidade no exercício do seu ofício;
   19. O acórdão recorrido ao confirmar a validade deste entendimento numa situação em que se verifica a afronta às normas da al. a) do n.º 1 do art.º 18.° do Estatuto dos Notários Privados e da al. b) do n.º 1 e do n.º 4 do art.º 279.º do ETAPM, ficou a padecer do vício de violação de lei resultante da violação desses preceitos;
   20. O acórdão recorrido violou, nomeadamente, as normas dos art.ºs 76.° do CPAC, dos art.ºs 562.°, n.º 2 e 631.°, n.º 2 e 562.°, n.ºs 2 e 3 do CPC dos art.ºs 44.°, 66.º, n.º 1, al. i) e 68.°, n.º 2, al. b) e c) e do n.º 4 do CN e do art.º 19.°, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 22/2002; al. b) do n.º 2 e n.º 4 do art.º 279.° do ETAPM, al. a) do art.º 18.° do ENP e os princípios da presunção de inocência, consagrado no art.º 29.º da Lei Básica da Região de Macau, da proibição do ónus da prova em detrimento do arguido e in dubio pro reo e violação ainda das normas dos artigos.
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso e ordenada a baixa do processo ao Tribunal de Segunda Instância para reformar a decisão anulada ou proferindo decisão que conheça dos vícios invocados.
   
   A recorrente Secretária para a Administração e Justiça apresentou as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   “1. A punição administrativa não valorou a circunstância agravante prevista na al. j) do n.º 1 do art.º 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, pelo que não tem cabimento a anulação do acto punitivo com base num inexistente vício de violação de lei.
   2. Com efeito, apenas existe uma referência àquela circunstância agravante da responsabilidade disciplinar na motivação do relatório final, referência que é incidental e que não teve desenvolvimentos na parte decisória do relatório final e no despacho recorrido.
   3. Mas mesmo que se entenda que a referida circunstância agravante esteve presente no processo de escolha da sanção disciplinar a aplicar, a verdade é que ela deve ser considerada irrelevante para efeitos de aferição da validade jurídica da decisão punitiva.
   4. A opção pela pena de cassação de licença é uma opção lógica, que vale coerentemente por si e que dispensa a invocação de outros circunstancialismos adicionais.
   5. E essa opção lógica é perceptível face ao teor literal do despacho punitivo, sendo de concluir, com segurança, que a referida circunstância agravante não teve qualquer relevância na determinação da pena aplicada.
   6. O legislador remeteu a regulação dos aspectos disciplinares dos notários privados, em termos gerais, para o regime da função pública, tendo ressalvado algumas especialidades; mas, de entre essas especialidades, não consta a inaplicabilidade do art.º 283.º do ETAPM.
   7. A circunstância agravante da responsabilidade disciplinar que tem por base a responsabilidade do cargo e o grau de instrução do infractor é uma circunstância objectiva que se aplica “em massa”, forçosamente, a quem esteja nessas circunstâncias (médicos e notários públicos, por exemplo). Foi essa a vontade do legislador.
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso e alterada a decisão recorrida conforme as conclusões exaradas.
   
   O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer:
   “Inconformada com o douto acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância na parte que decidiu julgar procedente o vício de violação de lei por errada valoração da circunstância agravante da al. j) do n.º 1 do art.º 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e anular, por conseguinte, a punição administrativa, vem a Senhora Secretária para a Administração e Justiça interpor recurso.
   Invoca a irrelevância para a decisão administrativa punitiva da referida circunstância agravante da responsabilidade disciplinar, a não aplicação desta circunstância naquela decisão bem como a aplicabilidade da mesma circunstância no caso vertente.
   Vejamos.
   
   Alega a recorrente que a circunstância agravante em causa não teve qualquer relevância na determinação da pena aplicada.
   Salvo o devido respeito, custa-nos um pouco a aceitar tal interpretação.
   Constata-se no relatório final elaborado pelo Sr. Instrutor do processo disciplinar, para o qual remete a decisão da ora recorrente, o seguinte:
   “36. A responsabilidade do cargo exercido e o grau de instrução são elevados, sendo a arguida, em consequência, prejudicada pelas circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar previstas nas al.s b) e j) do n.º 1 do art.º 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.”
   Face a uma afirmação como esta, somos levados a crer que não só a agravante prevista na al. b) mas também prevista na al. j) foram levadas em conta, em princípio, para tomar a decisão punitiva, a não ser que da mesma decisão resulte o sentido em contrário, o que não sucedeu no caso vertente.
   Ora, a referência a qualquer elemento ou circunstância, agravante ou atenuante, verificados no caso concreto assume a sua relevância, sob pena de presumir a inclusão, por parte da Administração, da matéria impertinente na decisão.
   Se é verdade que, ao formular a proposta de aplicação da pena de cassação de licença nas conclusões (Conclusão 2ª), o autor do relatório final enuncia as normas legais em que fundamentam tal proposta, sem ter incluído a referência à al. j) do n.º 1 do art.º 283.º, certo é que tal facto não implica necessariamente que a agravante aí previsto não tenha assumido relevância na determinação da pena disciplinar.
   
   Quanto à aplicabilidade daquela circunstância agravante no caso vertente, concordamos com as judiciosas considerações do nosso Colega explanadas no seu parecer dado no recurso contencioso, que mereceram acolhimento do Tribunal ora recorrido, no sentido de que, sendo considerada para a aplicação da pena disciplinar, a referida circunstância agravante foi duplamente valorada, o que implica a verificação do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito.
   Nos termos do n.º 1 do art.º 18.º do Estatuto dos Notários Privados, estão previstas apenas duas sanções disciplinares aplicáveis aos notários privados: suspensão administrativa até 2 anos ou cassação de licença.
   E “são subsidiariamente aplicáveis aos notários privados, com as necessárias adaptações, as disposições sobre regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública” – art.º 21.º do mesmo diploma.
   Discute-se a questão da aplicabilidade no caso vertente da circunstância agravante prevista na al. j) do n.º 1 do art.º 283.º do ETAPM, que se refere à responsabilidade do cargo exercido e o grau de instrução do infractor.
   Em concordância com o entendimento da entidade recorrente, também nos parece que, com a previsão de apenas duas sanções disciplinares, de suspensão administrativa até 2 anos ou de cassação de licença, que é muito diferente do regime geral estipulado para os trabalhadores da Administração Pública, o legislador pretende estabelecer um regime sancionatório mais gravoso para os notários privados.
   E encontramos a justificação desta maior gravosidade da regime nas considerações sobre as funções exercidas pelos notários privados, a sua especificidade e responsabilidade, sendo que, “ao contemplar esse regime sancionatório/disciplinar mais gravoso, se teve já em conta a situação específica de tais profissionais, da qual não poderá deixar de fazer parte o respectivo e exigível grau de instrução, em associação com a responsabilidade do cargo exercido”, tal como opina o nosso Colega no seu parecer.
   Daí que nos parece que o acto administrativo impugnado padece do vício de violação de lei por ter considerado a circunstância agravante em causa para efeitos de aplicação da pena disciplinar.
   
   Admita-se a hipótese de que, mesmo sem ter tomado em consideração a circunstância agravante em causa, seria de aplicar sempre a pena de cassação de licença.
   No entanto, trata-se duma questão diferente, que não cabe ao tribunal para pronunciar, face ao sagrado princípio da separação dos poderes.
   Tal como foi decidido nos acórdãos proferidos por este Alto Tribunal de Última Instância, “se o tribunal considerar que um dos dois factos em que se assentou a sanção não existe, tem de anular o acto, não lhe competindo opinar que o outro facto provado justificaria a mesma sanção. É à Administração que compete fazer tal avaliação, em sede de execução da sentença anulatória, tanto podendo, em abstracto, manter a sanção, como atenuá-la, como, até não aplicar sanção alguma” (cfr. Ac.s de 17-12-2003 e de 10-5-2006, nos processos n.º 29/2003 e n.º 7/2006).
    * * *
   Por sua vez e inconformando também com o mesmo acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, vem A interpor recurso, invocando os seguintes vícios:
   - Nulidade por falta de indicação dos factos considerados provados;
   - Nulidade por falta de fundamentação;
   - Violação dos princípios da presunção de inocência do arguido, da proibição do ónus da prova em detrimento do arguido e in dubio pro reo bem como das normas contidas nos art.ºs 44.º, 66.º, n.º 1, al. i) e 68.º, n.º 2, al. a) do Código do Notariado e no art.º 19.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 22/2002;
   - Violação das normas da al. c) do n.º 2 do art.º 68.º e do n.º 4 do art.º 85.º do Código do Notariado; e
   - Violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.
   Vejamos.
   
   I - Desde logo, não se verifica a alegada falta de indicação dos factos provados nem a falta de fundamentação, com violação do disposto nos art.ºs 76.º do CPAC, 562.º, n.ºs 2 e 3 e 571.º, n.º 1, al. b) do CPC.
   Por um lado, constata-se no douto acórdão ora recorrido que o Tribunal a quo não deixou de indicar a matéria de facto dada como assente, fazendo consignar no mesmo aresto que, vistos todos os elementos probatórios constantes do processo, incluindo os decorrentes do exame do processo administrativo apensado, o Tribunal está convicto de que “os factos então invocados pela entidade recorrida e como tal descritos no relatório final do processo disciplinar em questão para sustentar a sua decisão punitiva contra a recorrente não se encontram abalados na presente sede contencioso, mas, antes pelo contrário, integralmente corroborados”.
   E com a transcrição no douto acórdão do teor do relatório final do processo disciplinar, fica devidamente especificada a matéria de facto considerada assente pelo Tribunal a quo.
   Por outro lado, também resulta claramente do douto acórdão recorrido que o Tribunal a quo chegou a pronunciar-se sobre as questões concretamente colocadas pelo recorrente, tais como o erro nos pressupostos de facto, o erro nos pressupostos de direito na emissão, por parte da Administração, do juízo de verificação efectiva das irregularidades graves nos actos praticados pela ora recorrente, a violação das normas indicadas pela recorrente, com excepção da matéria atinente designadamente à medida concreta da pena aplicada, cujo conhecimento entendeu ficar prejudicado pela decisão que julgou procedente o imputado vício de violação de lei por errada valoração da circunstância agravante da al. j) do n.º 1 do art.º 283.º do ETAPM (parte esta que não foi posta em causa no presente recurso).
   Não pode ter cabimento o argumento sobre a falta de motivação de facto e de direito que justificaram a decisão ora em causa, dado que, nomeadamente com a transcrição do teor do relatório final e da decisão administrativa tomada pela Senhor Secretária para a Administração e Justiça e as suas considerações tecidas sobre as questões suscitadas pela recorrente, o Tribunal a quo acabou por fundamentar devidamente a sua decisão.
   Nota-se ainda que a jurisprudência tem entendido que só a falta absoluta, e não insuficiente, da fundamentação que conduz à nulidade da decisão.
   
   II – Quanto à invocada violação dos princípios da presunção de inocência do arguido, da proibição do ónus da prova em detrimento do arguido e in dubio pro reo bem como das normas contidas nos art.ºs 44.º, 66.º, n.º 1, al. i) e 68.º, n.º 2, al. a) do Código do Notariado e no art.º 19.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 22/2002, a mesma prende-se com a matéria que toca ao raciocínio seguido e as considerações tecidas pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua convicção sobre os factos.
   Não obstante a imputação da violação das disposições legais, certo é que a referência pelo Tribunal a quo às normas legais se verifica no processo e no caminho de raciocínio que o levou a formar a sua convicção sobre a matéria de facto.
   Desde logo, é de recordar que o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional de decisões do Tribunal de Segunda Instância, não conhece de matéria de facto, mas apenas de direito, tendo de aceitar os factos que este Tribunal considere provados (art.º 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso).
   E “o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes”(cfr. Ac. do TUI, de 2-6-2004, proc. n.º 17/20030).
   Neste aspecto, parece-nos que, tal como evidencia a entidade recorrida nas suas contra-alegações, cujas judiciosas considerações merecem a nossa concordância, não se verifica o vício invocado pela recorrente da violação de lei; e mesmo existindo, não assume relevância pretendida pela recorrente, já que não lhe foi imputado o facto de não ter arquivado cópias dos documentos em causa ou não ter efectuado a sua menção nas respectivas procurações.
   
   III – Invoca a recorrente a violação das normas contidas na al. c) do n.º 2 do art.º 68.º e no n.º 4 do art.º 85.º do Código do Notariado.
   Nos termos dos n.ºs 1 e 2 art.º 68.º deste diploma, salvo quando seja do seu conhecimento pessoal, o notário deve sempre verificar a identidade dos outorgantes, podendo tal verificação ser feita: a) pela exibição do bilhete de identidade de residente de Macau ou de documento equivalente; b) pela exibição do passaporte; e c) pela declaração de dois abonadores.
   Neste último caso, cabe ao notário verificar a identidade dos abonadores por uma das formas referidas nas al.s a) e b), exceptuando situações em que a sua identidade seja do conhecimento pessoal do notário.
   É verdade que, prevista como uma das formas para conferir a identidade dos outorgantes, a abonação deve ser vista como uma forma tão válida como as outras, não existindo uma relação de subsidiariedade entre as várias formas de verificação.
   No entanto, o que não se pode negar é que a verificação pela exibição de documentos é, naturalmente, a forma mais simples, mais directa e normalmente mais segura para o efeito.
   Por um lado, no caso de abonação o notário tem a obrigação legal de verificar a identidade dos abonadores.
   Por outro lado, nos termos do n.º 4 do art.º 85.º do Código do Notariado, o notário deve ainda recusar a intervenção dos abonadores, “sempre que tenha fundadas razões para duvidar da sua idoneidade”, uma vez que, sendo intervenientes acidentais, os abonadores devem “satisfazer as exigências de capacidade legalmente previstas e possuir também a idoneidade requerida segundo o juízo pessoal do notário. Não bastará que sejam idóneos, antes disso é preciso que sejam capazes; mas também não bastará que sejam capazes, porque, a mais disso, é indispensável que o notário ou tenha como dignos de crédito” (Prática Notarial, de Borges Araújo, pág. 66).
   Nota-se que o juízo sobre a idoneidade dos abonadores fica ao critério e à responsabilidade do próprio notário.
   Daí cremos que, em situações normais e para qualquer homem médio e prudente, a verificação da identidade por abonação é, na prática quotidiana e em comparação com os outros meios, o menos preferível pelo notário.
   
   Alega a recorrente que no momento em que aceitou a intervenção dos abonadores não teve dúvidas sobre a sua idoneidade ou credibilidade.
   No entanto e face à factualidade apurada nos autos, as dúvidas deviam ter surgido se fosse utilizada a exigida prudência e cautela.
   Por um lado, os mandantes que se identificaram como B (乙) e C (丙) eram chineses, portadores de documentos de identificação emitidos na RPC, que não continham a romanização do nome, enquanto os nome dos proprietários dos terrenos referidos nas certidões prediais apenas estavam romanizados, podendo corresponder a diversos caracteres chineses.
   Não obstante ambos os mandantes terem declarado serem residentes na RAEM, indicando as respectivas moradas aqui em Macau, a recorrente não exigiu dos mesmos documento de identificação emitido pelas autoridades da RAEM.
   E apesar de ser a prática habitual do seu cartório verificar sempre os documentos comprovativos de entrada legal na RAEM dos indivíduos titulares de documentos emitidos fora de Macau, a recorrente não exigiu daqueles mandantes o documento que lhes permitiu entrar na RAEM, em que consta a romanização dos seus nomes.
   Acresce que, em ambas as procurações outorgadas no mesmo mês (1 e 15 de Novembro de 2004, respectivamente), interveio um abonador comum D.
   Parece-nos que todo este contexto factual, se tivesse sido analisado com parcimónia e diligência, devia fazer surgir as dúvidas sobre a identificação dos outorgantes bem como a credibilidade dos abonadores, impondo ao notário a recusa da intervenção dos abonadores.
   Concluindo, não se verifica o alegado vício da violação de lei.
   
   IV - Também não nos parece assistir razão à recorrente quando invoca a violação de lei por erro nos pressupostos de facto (por errada apreciação dos factos) e por erro nos pressupostos de direito (por errada interpretação e aplicação das normas da al. a) do n.º 1 do art.º 18.º do Estatuto dos Notários Privados e da al. b) do n.º 2 e n.º 4 do art.º 279.º do ETAPM.
   É verdade que, admitindo a verificação por abonação da identidade dos outorgantes, naturalmente pode ocorrer o risco de cometer erro quanto à idoneidade e credibilidade desses abonadores.
   No entanto, a existência deste risco não deve, nem pode, servir para desculpar todos os erros decorrentes da identificação por este meio e verificados nos actos notariais.
   Impõe-se ao notário o dever de verificar a idoneidade dos abonadores e, consequentemente, recusar a sua intervenção quando tiver dúvidas sobre a idoneidade exigida.
   Neste aspecto, o notário tem que usar das devidas parcimónia e diligência, actuando com o devido cuidado.
   A factualidade apurada nos autos permite concluir pela existência de várias irregularidades nos actos notariais praticados pela recorrente, que devem ser consideradas como “graves”, não só pela gravidade das suas consequências, que afectam gravemente a imagem da Administração, o exercício das funções dos notários e a fé pública conferida aos actos notariais, mas também pela evidência da negligência verificada porque “não poderiam ter passado despercebidas à recorrente, se tivesse actuado de acordo com o padrão de comportamento que lhe era exigido no exercício da sua actividade de notária”, tal como afirma a entidade recorrida nas suas contra-alegações.
   E mostra-se a falta de empenhamento, por parte da recorrente, no exercício das suas funções, que implica a violação do dever de zelo imposto nos termos da al. b) do n.º 2 e n.º 4 do art.º 279.º do ETAPM.
   
   Pelo exposto, entendemos que os recursos interpostos não merecem provimento.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Afigura-se-nos que o Tribunal de Segunda Instância deu como provados os seguintes factos:
   Em 20 de Junho de 2005, foi elaborada a seguinte informação (e relatório final) n.° 30/DSAJ/DAT/2005 pelo Senhor Instrutor do Processo Disciplinar n.° 02/DSAJ/DAT/2005 no qual vinha acusada a Notária Privada Dr.ª A (cfr. o teor literal de fls. 00212 a 00199 desse processo administrativo ora apensado aos presentes autos):
“Exmo. Senhor
Director dos Serviços de Assuntos de Justiça
   Por despacho de Sua Exa. a Secretária para a Administração e Justiça, de 22 de Março de 2005, foi instaurado o Processo Disciplinar n.º 02/DSAJ/DAT/2005 contra a notária privada Dr.ª A.
   Finda a instrução do processo, e nos termos do n.º 1 do art.º 337.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, ora se elabora,
RELATÓRIO FINAL
   1. A arguida é notária privada.
   2. A arguida lavrou uma procuração, outorgada em 1/11/2004, em que constava como mandante B (乙) e como mandatário E (戊).
   3. A arguida lavrou uma procuração, outorgada em 15/11/2004, em que constava como mandante C (丙) e como mandatário E (戊).
   4. Os mandantes eram chineses, portadores de documentos de identificação emitidos na República Popular da China (RPC).
   5. A identidade dos mandantes foi abonada por testemunhas porque o nome daqueles, nas referidas certidões prediais, apenas estava romanizado e os documentos de identificação da RPC não continham a sua romanização.
   6. Os abonadores da procuração outorgada em 01/11/2004 foram D e F.
   7. Os abonadores da procuração outorgada em 15/11/2004 foram D e G.
   8. O abonador D interviu em ambas as procurações afirmando conhecer os mandantes “乙”e “丙”, portadores de documento de identificação emitido na RPC, e afirmando conhecer que as romanizações dos seus nomes correspondem a “B” e “C”, respectivamente.
   9. O abonador D (丁一) foi identificado como D (丁二) na procuração referida em 2..
   10. O mandante B faleceu em Hong Kong no dia 15/04/1984.
   11. Do registo predial consta que B é concessionário do terreno situado na Taipa, na Estrada Nova Miradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, inscrito a seu favor sob o n.º da inscrição XXXX (L.º FX, fls. XXXv).
   12. Do registo predial consta que C é proprietário do terreno rústico situado na Taipa, na Povoação de Sam Ka, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, inscrito a seu favor sob o n.º da inscrição XXXXX (L.º GXX, fls. XXX).
   13. Pelo Despacho n.º XXX/84 de XX/XX/1984, publicado no B.O. n.º XX de XX/XX/1984, o Governador de Macau declarou a caducidade da concessão referida em 11., tendo o referido terreno revertido para o Território.
   14. E, apresentando a procuração referida em 3., outorgou uma escritura de compra e venda celebrada em 19/11/2004, na qualidade de procurador de C, vendendo o terreno referido em 12. à Sociedade.
   15. E, apresentando a procuração referida em 2., outorgou uma escritura de compra e venda celebrada em 24/11/2004, na qualidade de procurador de B, vendendo o terreno referido em 11. à Sociedade.
   16. Os nomes “B” e “C” são nomes romanizados podendo corresponder a diversos caracteres chineses.
   17. A arguida não exigiu dos mandantes documento de identificação emitido pelas autoridades da RAEM, apesar de ambos declararem nas respectivas procurações que são residentes na RAEM, indicando B residir na [Endereço(1)], e C na mesma Avenida, n.º XXX.
   18. É prática habitual do seu cartório verificar sempre os documentos comprovativos de entrada legal na RAEM, caso se tratem de titulares de outra identificação que não da RAEM.
   19. A arguida não exigiu dos mandantes o documento de identificação que lhes permitiu a entrada na RAEM, em que consta a romanização dos seus nomes, como o Salvo-Conduto ou Passaporte da RPC.
   20. B e C declararam nas respectivas procurações que são casados com 辛, no regime da separação de bens, de nacionalidade chinesa e com 壬, no regime da separação de bens, de nacionalidade chinesa, respectivamente.
   21. A arguida possui formação superior em Direito e é, para além de notária privada, advogada.
   22. Para poder exercer as funções de notária privada, a arguida frequentou com aproveitamento o necessário curso específico de formação.
   23. Dispõe o n.º 2 do art.º 68.º do Código do Notariado que a verificação da identidade dos outorgantes no acto pode ser feita pela exibição do bilhete de identidade de residente de Macau ou de documento equivalente, pela exibição do passaporte ou pela declaração de dois abonadores.
   24. Nos termos do n.º 4 do art.º 85.º do Código do Notariado, o notário deve recusar a intervenção de abonadores sempre que tenha fundadas razões para duvidar da sua idoneidade.
   25. O caso em apreço possui contornos que se tivessem sido analisados com parcimónia e diligência teriam causado dúvidas sobre a identidade dos outorgantes e intervenientes e, consequentemente, sobre a idoneidade dos seus abonadores.
   26. Desde logo, e em primeiro lugar, o facto de ambos os mandantes recorrerem ao expediente da identificação pela utilização de abonadores quando seria inquestionavelmente mais fácil, rápido, expedito e eficiente a identificação por utilização de documento de identificação emitido pelas autoridades da RAEM (ambos declararam ser residentes em Macau e cá serem proprietários de imóveis tão valiosos quanto os que foram objecto das escrituras de compra e venda) ou por passaporte ou salvo-conduto da RPC, na medida em que ambos possuem romanização dos seus nomes.
   27. Por outro lado, ambos os mandantes declararam nas procurações que outorgaram serem casados com os respectivos cônjuges no regime de separação de bens. Contudo, segundo a lei pessoal, tanto para a residência habitual como para a nacionalidade, o regime de bens dos mandantes deveria ser, em princípio, de comunhão de adquiridos.
   28. A arguida, ao não ter exigido a apresentação de outros meios de identificação que se revelassem mais idóneos, designadamente, por possuírem a romanização do nome dos mandantes, oferecendo clareza e maior segurança ao comércio jurídico, violou os deveres de zelo que estão intimamente ligados com a actividade desempenhada pelos notários privados, a de conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais – cfr. art.º 1.º do Código do Notariado.
   29. Tanto mais que a arguida declarou ser prática habitual do seu cartório a exigência dos documentos de identificação e, designadamente, os documentos de identificação que permitiram a entrada legal na RAEM quando os intervenientes não possuam documentos de identificação emitidos pelas autoridades da RAEM.
   30. A arguida sabe que no exercício das suas funções de notária privada deve sempre usar de diligência e parcimónia, aliados a um espírito crítico, no sentido de obter dos intervenientes nos actos notariais todos os elementos relevantes possíveis de forma a poder confirmar com segurança, ao que agora interessa, a sua identidade e a melhor tentar evitar situações de identificação dúbia (solicitando, por exemplo, para além dos requisitos legais, informações sobre a actividade profissional).
   31. Acresce que, apesar de ambas as procurações terem um abonador comum, D, o seu nome se encontra escrito de forma diferente em ambas. Tal divergência também revela falta de parcimónia e de diligência da arguida na verificação dos elementos de identificação do abonador e da sua correcta transcrição para o acto notarial em questão.
   32. Por não ter usado das devidas parcimónia e diligência, a arguida violou com negligência grave o seu dever de zelo, imposto pela al. b) do n.º 1 do art.º 279.º do ETAPM, aplicável por força do art.º 12.º do Estatuto dos Notários Privados.
   33. Dever esse que, nos termos do n.º 4 do art.º 279.º do ETAPM, impunha à arguida o exercício das suas funções com eficiência e empenhamento.
   34. Da violação do dever de zelo, resultaram consequências sérias e nefastas para o comércio jurídico, para a imagem da Administração Pública, do notariado, em geral, e do notariado privado, em particular, na medida em que esses instrumentos foram, posteriormente, utilizados em escrituras de compra e venda.
   35. A violação negligente do dever de zelo é punida disciplinarmente com suspensão administrativa até 2 anos ou com cassação de licença, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 18.º do Estatuto dos Notários Privados.
   36. A responsabilidade do cargo exercido e o grau de instrução são elevados, sendo a arguida, em consequência, prejudicada pelas circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar previstas nas al.s b) e j) do n.º 1 do art.º 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
   37. A aplicação das respectivas penas disciplinares é da competência da Secretária para a Administração e Justiça, nos termos do art.º 19.º do Estatuto dos Notários Privados e do n.º 1 da Ordem Executiva n.º 6/2005.
   Conclusões:
   1. Pelo exposto, a conduta da arguida revelou total e completa ausência de competência para o exercício da função notarial porque demonstrou falta de parcimónia e diligência em violação negligente do dever de zelo.
   2. Nestes termos, em relação à infracção disciplinar que a arguida cometeu, propõe-se, de acordo com a al. a) do n.º 1 do art.º 18.º do Estatuto dos Notários Privados, a aplicação da pena de cassação de licença, sendo a aplicação desta pena da competência de Sua Exa. a Secretária para a Administração e Justiça, nos termos do art.º 19.º do Estatuto dos Notários Privados e da delegação de competências constante do n.º 1 da Ordem Executiva n.º 6/2005.
   3. Nos termos do n.º 5 do art.º 20.º do Estatuto dos Notários Privados, após recebido o presente relatório final, deverá V. Exa. emitir parecer, no prazo de 5 dias, e remeter o processo à Exma. Senhora Secretária para a Administração e Justiça, para que a mesma tome decisão, no prazo de 20 dias, de acordo com o n.º 3 do art.º 338.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
   À consideração superior de V. Exa.
   Divisão de Apoio Técnico, aos 20 de Junho de 2005.
                        O Instrutor,
                         ...”
   Sobre esse relatório final, o Senhor Director dos Serviços de Assuntos de Justiça de Macau lavrou o seguinte despacho, datado de 21 de Junho de 2005:
   “Ex.ma Senhora
   Secretária para a Administração e Justiça
   Concordo com a presente informação, com o relatório final do processo disciplinar instaurado à notária privada Dr.ª A e com as conclusões a que chega.
   À consideração de V. Ex.ª.”
   
   E a final, a Senhora Secretária para a Administração e Justiça desta Região Administrativa e Especial de Macau decidiu nos seguintes termos do seu despacho exarado em 24 de Junho de 2005 sobre a dita informação-relatório:
   “Tendo em conta a matéria de facto dada como provada no decurso da instrução do processo disciplinar, designadamente os factos constantes dos n.ºs 1 a 26 do relatório final, e tendo presente que esses factos constituem infracções disciplinares graves, conforme concluído no referido relatório, para o qual remeto, aplico à notária privada Dr.ª A a pena de cassação de licença prevista na al. a) do n.º 1 do art.º 18.º do Estatuto do Notário Privado.”
   
   
   2.2 Recurso de A
   2.2.1 Nulidade da sentença por falta de indicação de factos provados
   A recorrente considera que no acórdão recorrido não foram indicados os factos dados como provados, tal como exige o art.º 76.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), limitando-se a transcrever integralmente o relatório final do instrutor do processo disciplinar, os despachos do Director dos Serviços de Assuntos de Justiça e da Secretária para a Administração e Justiça, as conclusões da petição inicial, contestação e alegações facultativas e o parecer final do Ministério Público.
   
   Segundo o referido art.º 76.º do CPAC, “a sentença e o acórdão devem mencionar o recorrente, a entidade recorrida e os contra-interessados, resumir com clareza e precisão os fundamentos e conclusões úteis da petição e das contestações, ou das alegações, especificar os factos provados e concluir pela decisão final, devidamente fundamentada.”
   O acórdão recorrido, algo fora da regra, começou logo por transcrever o relatório final do respectivo processo disciplinar, os despachos do Director dos Serviços de Assuntos de Justiça e da Secretária para a Administração e Justiça. Seguem-se as conclusões de várias peças processuais e o parecer do Ministério Público e a parte de fundamentação, terminando com a decisão.
   Embora o tribunal recorrido não referiu expressamente quais são os factos que se considera provados, afigura-se-nos que são o relatório final e os despachos constantes da parte inicial do acórdão recorrido que o Tribunal de Segunda Instância tomou em conta como elementos fácticos para decidir do recurso e que consta do ponto 2.1 do presente acórdão.
   Relativo à possível nulidade, o art.º 571.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil (CPC) determina que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”, aplicável por força do art.º 1.º do CPAC.
   Portanto, só a falta em absoluto da menção de factos provados gera a nulidade da sentença. A pouca clareza da menção da parte de matéria fáctica e fora da ordem fixada no art.º 76.º do CPAC sobre o conteúdo de sentença não conduzem à nulidade do acórdão recorrido.
   Improcede a nulidade invocada.
   
   
   2.2.2 Nulidade da sentença por falta de fundamentação
   A recorrente alega que o acórdão recorrido não contém a motivação da decisão de facto e de direito em relação aos vícios constantes das alíneas A), C), D), E), F) e H) da petição inicial do recurso contencioso.
   
   Nas referidas alíneas A), C) e D), a recorrente suscitou três vícios de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, por a decisão punitiva se fundar em factos não provados ou em factos apreciados erroneamente, por a decisão punitiva não ter levado em consideração factos invocados pela arguida em defesa disciplinar, e por deficit de instrução.
   Em relação às matérias relacionadas com o vício de erro nos pressupostos de facto, o tribunal recorrido optou por pronunciar em bloco, com destaque de alguns pontos que teceu maior desenvolvimento. As questões alegadas nos três alíneas tratam-se, no fundo, das posições da recorrente sobre a matéria de factos tidos como provados e da suficiência de provas.
   Consta realmente das páginas 43 a 49 do acórdão recorrido a fundamentação da decisão sobre a questão de erro nos pressupostos de facto.
   Quanto às alíneas E), F) e H) da petição inicial do recurso contencioso, ou seja, os vícios de violação de lei por errada interpretação dos art.ºs 68.º, al. c) e 85.º, n.º 4 do Código do Notariado, por errada apreciação dos factos e interpretação dos art.ºs 18.º, n.º 1, al. a) do Estatuto dos Notários Privados e 279.º, n.ºs 1, al. b) e 4 do ETAPM, por errada aplicação da circunstância agravante prevista no art.º 283.º, n.º 1, al. b) do ETAPM, o tribunal recorrido também optou por pronunciar conjuntamente nas páginas 49 e 50 do acórdão recorrido.
   
   No entanto, não podemos deixar de consignar que a fundamentação, embora existe, é muito sintética e escassa, com excepção dos poucos pontos que mereceu maior desenvolvimento (considerações especiais), e sem referir directa e individualmente os vícios em apreciação, se bem que alguns relacionados com a mesma questão, como a de erro nos pressupostos de facto, o que dificulta a compreensão da razão de decisão do tribunal pelos interessados. Esta é precisamente a função da fundamentação da sentença.
   Tal como foi acima referido, só a falta absoluta de fundamentação implica a nulidade da sentença. De qualquer modo, com a existência da fundamentação da decisão no acórdão recorrido, impede a verificação da nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, aplicável ao abrigo do art.º 1.º do CPAC.
   Improcede, portanto, a nulidade invocada.
   
   
   2.2.3 Violação dos princípios da presunção de inocência do arguido, da proibição do ónus da prova em detrimento do arguido e in dubio pro reo e das normas dos art.ºs 44.º, 66.º, n.º 1, al. i) e 68.º, n.º 2, al. b) do Código do Notariado e 19.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 22/2002
   A propósito dos factos de que a recorrente não exigiu aos mandantes documentos de identificação constantes dos n.ºs 17 e 19 do relatório final do processo disciplinar, a recorrente alega que a convicção do tribunal recorrido se formou não na prova dos factos que competia à Administração, mas sim, com base no facto de a arguida não ter feito a contraprova dos factos imputados.
   
   Mas não nos parece que a convicção do tribunal recorrido se formou assim. Conforme o teor das páginas 43 e 44 do acórdão recorrido: “Ora bem, vistos crítica, global e conjugadamente, sob a égide da regra da livre apreciação da prova de acordo com as legis artis vigentes nessa tarefa jurisdicional e com simultâneo recurso às máximas da experiência da vida humana na normalidade de situações, todos os elementos probatórios constantes do presente processo, incluindo os decorrentes do exame do processo administrativo apensado, estamos convictos de que os factos então invocados pela Entidade Recorrida e como tal descritos no relatório final do processo disciplinar em questão para sustentar a sua decisão punitiva contra a Recorrente não se encontram abalados na presente sede contenciosa, mas, antes pelo contrário, integralmente corroborados.” (sublinhado nosso).
   Assim, o tribunal recorrido não partiu do pressuposto de que cabia à recorrente a apresentar contra-provas para infirmar os factos da acusação disciplinar, mas antes conjugou todos os elementos dos autos, tantos da recorrente arguida como da entidade recorrida. Quando o tribunal dar como provado facto da acusação não significa que o tribunal considera que a arguida não tem feito contra-prova.
   
   A presente questão relaciona-se sobretudo com os factos e consequentemente o poder de cognição do Tribunal de Última Instância.
   Sobre a questão este Tribunal já teve várias ocasiões a pronunciar. Tal como foi decidido no acórdão de 11 de Janeiro de 2006 do processo n.º 26/2005, “em recurso jurisdicional de acórdão do Tribunal de Segunda Instância, em matéria administrativa, o Tribunal de Última Instância apenas conhece de matéria de direito, não podendo censurar a convicção formada pelo tribunal recorrido quanto à prova.”
   É o que prescreve o art.º 152.º do CPAC:
   “O recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada.”
   Assim, “o Tribunal de Última Instância não conhece de matéria de facto e não pode alterar decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”
   No presente caso, o tribunal recorrido não ofendeu disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, limitando-se a valorar as provas documentais e testemunhais e a formar a sua convicção.
   Improcede o recurso nesta parte.
   
   
   2.2.4 Vício de violação de lei por violação dos art.ºs 68.º, al. c) e 85.º, n.º 4 do Código do Notariado
   Para a recorrente, o juízo sobre a idoneidade dos abonadores pertence exclusivamente a notário que intervém no acto. O sistema da abonação é um sistema tão válido como qualquer outro, não estabelecendo a lei qualquer relação de subsidiariedade entre ele e o da exibição de documentos de identidade.
   
   Dispõe assim o art.º 68.º do Código do Notariado:
   “1. Salvo quando seja do seu conhecimento pessoal, o notário deve sempre verificar a identidade dos outorgantes e demais intervenientes no acto.
   2. A verificação da identidade dos outorgantes no acto pode ser feita por alguma das seguintes formas:
   a) Pela exibição do bilhete de identidade de residente de Macau ou de documento equivalente;
   b) Pela exibição do passaporte;
   c) Pela declaração de dois abonadores, cuja identidade o notário tenha verificado por uma das formas previstas nas alíneas anteriores ou seja do seu conhecimento pessoal.
   3. ...
   4. …
   5. ...”
   É certo que a lei permite que verificação da identidade dos outorgantes no acto pode ser feita pela exibição de documentos de identificação ou pela declaração de dois abonadores. Mas ao escolher os referidos meios para controlar a identidade dos outorgantes deve atender às circunstâncias concretas, e não indistintamente.
   Das duas procurações em causa consta que os mandantes afirmaram serem de nacionalidade chinesa e residentes em Macau e indicaram até as respectivas moradas na Avenida da Praia Grande.
   Ora, para os residentes da RAEM maiores de 5 anos é obrigatória a titularidade do bilhete de identidade de residente da RAEM (art.º 3.º, n.º 2 da Lei n.º 8/2002 – Regime do bilhete de identidade de residente da RAEM).
   Se os referidos mandantes tivessem o estatuto de residente do exterior da RAEM, embora com residência na Região, também devem ser titulares de passaportes. Pois, em princípio, a entrada e saída de não-residente da RAEM carece da posse de passaporte válido ou documentos equivalentes (art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 4/2003 – Princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência).
   Assim, os dois mandantes deviam ser titulares de documentos de identificação válidos, bilhete de identidade da RAEM ou passaportes, conforme os casos, precisamente os dois meios previstos nas al.s a) e b) do n.º 2 do referido artigo.
   A simples exibição de documentos de identificação já é bastante e com segurança para verificar a identidade dos dois mandantes, não se vê razões para recorrer a abonadores para o efeito, meio dotado sempre de certo grau de risco de falta de veracidade, tal com aconteceu no presente caso.
   A verificação de identidade de outorgantes do acto notarial através de abonadores só deve ser utilizada nos casos em que, por razões sérias, não ser possível exibir os documentos de identificação, de premente necessidade, ou de obstáculos dificilmente ultrapassáveis. Numa região em que a titularidade de documentos de identificação é obrigatória, a verificação de identidade de outorgantes do acto notarial por abonadores, fora das situações excepcionais, carece de razão de ser.
   A diferença de romanização de nome nos documentos de identificação da RAEM e nos passaportes do Interior da China não impede a verificação de identidade, porque em ambos os tipos de documentos há sempre caracteres escritos em chinês que permitem o confronto de elementos identificativos.
   Improcede o vício invocado.
   
   
   2.2.5 Vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, relacionado com o art.º 18.º, n.º 1, al. a) do Estatuto dos Notários Privados e do art.º 279.º, n.ºs 1, al. b) e 4 do ETAPM
   Finalmente, a recorrente discorda da posição do acórdão recorrido de considerar a existência da irregularidade grave e violação do dever de zelo por parte da recorrente, entende que o conjunto dos aspectos ponderados no momento em que aceitou a abonação sobre a identidade dos mandantes evidencia que a mesma não agiu com erro manifesto ou total desrazoabilidade.
   
   Segundo o art.º 18.º, n.º 1, al. a) do Estatuto dos Notários Privados, “Aos notários privados são aplicáveis as penas disciplinares de suspensão administrativa até 2 anos ou de cassação de licença quando infrinjam os deveres a que se encontram sujeitos, designadamente quando sejam verificadas irregularidades graves nos actos praticados.”
   Tal como foi exposto e em princípio, os notários devem verificar a identidade dos outorgantes de acto notarial através da exibição do seu documento de identificação. Só em casos excepcionais se podem recorrer à abonação. E o notário deve recusar a intervenção de abonador sempre que tenha fundadas razões para duvidar da sua idoneidade (art.º 85.º, n.º 4 do Código do Notariado).
   Refere a recorrente nas suas alegações que utilizou uma certidão actualizada da Conservatória do Registo Predial da qual constava que B era o titular da referida concessão, de nenhum registo constasse a reversão do terreno para a Região por morte do concessionário B, examinou uma fotocópia da escritura do contrato de concessão a favor de B, donde consta o nome romanizado deste e a assinatura do mesmo com caracteres chineses, os quais correspondiam aos caracteres escritos, como sendo o seu nome, pela pessoa que interveio como mandante na procuração agora em causa. Acrescenta ainda que a recorrente interveio nesses actos a pedido de um notário privado que afirmara já ter estudado as questões e de quem os intervenientes eram clientes dele, factor adicional de confiança e segurança.
   No entanto, as circunstâncias alegadas pela recorrente são longe de poder constituir situações excepcionais que justificam o recurso a abonação para confirmar a identidade de outorgantes.
   
   O facto de o nome do concessionário do terreno B, entretanto pessoa já ter falecido em Hong Kong no ano 1984, que aparece numa certidão de registo predial e numa fotocópia de escritura do contrato de concessão, corresponde aos caracteres chineses escritos na procuração pela pessoa que apareceu perante a recorrente como mandante, nada justifica que a recorrente podia deixar de controlar a identidade do outorgante por meio de exibição de documento de identificação.
   Por outro lado, a intervenção do colega da recorrente, também advogado, na fase preparatória do acto também não justifica menos esforços de rigor, pois o acto notarial é sempre realizado pela recorrente e não pelo seu colega. E é sempre o autor do acto que assume a responsabilidade deste em primeira linha.
   A negligência da recorrente em identificar os outorgantes deixou a elaboração de procuração com simulação da pessoa do mandante, produzindo a falsidade do conteúdo essencial do acto. Fica assim afectada a fé pública do acto notarial.
   Uma vez que nas duas procurações em questão, os mandantes afirmaram ser residentes de Macau e não se verifica nenhuma situação especial que justifica a não exibição dos seus documentos de identificação, consideramos que existe irregularidade grave no exercício das funções de notário privado por parte da recorrente e a consequente violação do dever de zelo, quando ela procedeu à identificação dos mandantes simplesmente por meio de abonação. Com as circunstâncias que a recorrente menciona nas suas alegações, parece reforça ainda mais o nosso entendimento.
   Inexiste o vício invocado.
   
   
   2.3 Recurso da Secretária para a Administração e Justiça
   A ora recorrente afirma que a referência à al. j) do n.º 1 do art.º 282.º do ETAPM no n.º 36 do Relatório Final do instrutor do processo disciplinar é irrelevante para efeitos de aferição da validade jurídica do acto recorrido. De qualquer modo, a referida circunstância agravante não tem relevância na determinação da pena aplicada no presente caso.
   
   Refere o n.º 36 do Relatório Final do instrutor do processo disciplinar: “A responsabilidade do cargo exercido e o grau de instrução são elevados, sendo a arguida, em consequência, prejudicada pelas circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar previstas nas al.s b) e j) do n.º 1 do art.º 283.º do ETAPM.”, para o qual o acto recorrido da ora recorrente remeteu expressamente.
   Assim, segundo o conteúdo do acto recorrido, a agravante prevista na al. j) do n.º 1 do referido art.º 283.º, ou seja, o grau de instrução do infractor, foi efectivamente considerada pela entidade recorrida, pois foi dado como provado que a arguida é notária privada e possui a formação superior em Direito.
   
   Reiteramos a posição que já tomámos sobre a mesma questão, isto é, não se pode tomar em consideração a formação superior de Direito e ser advogado como circunstância agravante na fixação da responsabilidade disciplinar de notário privado:1
“Ora, acontece que só se pode ser notário privado sendo licenciado em Direito e sendo advogado (artigo 1.º do Estatuto dos Notários Privados aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/99/M, de 1 de Novembro).
Assim, nos tipos disciplinares aplicáveis aos notários privados e nas respectivas sanções disciplinares, o legislador já levou em conta aquela formação académica e o facto de os notários terem de ser advogados.
   Deste modo, o acto punitivo não podia ter considerado a mencionada circunstância agravante, por ela já ter sido considerada nas penalidades previstas na lei, por isso se opor o princípio da proibição da dupla valoração, ou princípio do non bis in idem, constante do n.º 2 do artigo 65.º do Código Penal – aplicável subsidiariamente nos termos do artigo 277.º do ETAPM – nos termos do qual, na determinação da medida da pena o tribunal só pode atender às circunstâncias que não fizerem parte do tipo de crime.”
   Apreciada indevidamente uma agravante na fixação da pena disciplinar, o acto recorrido padeceu do vício e deve ser anulado, independentemente de no caso justificar realmente ou não a pena encontrada.
   Improcede o recurso interposto.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos jurisdicionais.
   Custas pela recorrente A com a taxa de justiça fixada em 4UC. A outra recorrente Secretária para a Administração e Justiça não é tributada por ser legalmente isenta das custas.
   
   
   Aos 25 de Setembro de 2007.



Juízes : Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei



1 Acórdão do TUI de 13 de Setembro de 2006 do processo n.º 22/2006.
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Processo n.° 24 / 2006 37