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Processo n.º 327/2015 Data do acórdão: 2015-6-25 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– procuração falsa
– falsificação de documento
– uso de documento falso
– concurso aparente entre as normas incriminadoras
– fabricante e utente do documento falso
– lugar da prática do crime
– aplicação da lei penal de Macau
– art.o 4.º, alínea a), do Código Penal
– art.o 7.o do Código Penal
– co-autoria
– autoria mediata
S U M Á R I O
1. A acusação pública dos autos referiu que os dois arguidos (aí identificados como titulares do bilhete de identidade de residente de Macau e com moradas em Macau), em data não determinada, fabricaram uma procuração com o Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong como local de outorga, tendo os dois praticado, de modo voluntário, livre e consciente, os factos de comum acordo, em conjugação de esforços e em divisão de tarefas.
2. Portanto, e mesmo que no texto dessa procuração esteja escrito que no “Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong … compareceram como outorgantes” inclusivamente a arguida, não se pode, antes da realização da audiência contraditória de julgamento com necessária produção da prova, concluir judicialmente que todo o acto de fabrico da procuração, com divisão de tarefas entre os dois arguidos também residentes de Macau, tenha sido praticado somente no Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong, e já não também em Macau.
3. A lei penal de Macau é, pois, aplicável ao caso dos autos, por força das disposições conjugadas dos art.os 4.º, alínea a), e 7.º do Código Penal.
4. E mesmo que o juiz a quo entendesse que todo o acto de fabrico daquela procuração tenha ocorrido apenas no Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong e como tal a lei penal de Macau não seria aplicável ao caso, a sua tese jurídica de que a pessoa fabricante do documento falso não dever ser punida também a título de utente do mesmo documento não teria a virtude de obstar à possibilidade legal de julgamento – na pretensa hipótese de impossibilidade, por falta de jurisdição do tribunal sobre a causa penal em mira, de conhecimento do imputado crime de falsificação da procuração – do crime de uso da procuração, sob pena de se deixar impunível esta conduta delituosa praticada em Macau ao arrepio do disposto na alínea a) do art.º 4.º do Código Penal.
5. A propósito do art.º 7.º do Código Penal, é de entender que é suficiente para a co-autoria que um dos intervenientes tenha contribuído para o facto em Macau, com uma contribuição que possa fundamentar uma co-autoria, e que nos casos de autoria mediata o lugar da comissão do crime é inclusivamente aquele lugar em que o autor mediato actua sobre o seu instrumento e ainda o lugar em que o instrumento actua.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 327/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: Ministério Público
A (assistente)
Recorrida: B (arguida)



ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformados com o despacho proferido em 19 de Janeiro de 2015 pelo M.mo Juiz titular do Processo Comum Colectivo n.º CR4-12-0260-PCC do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) a fls. 2618 a 2620v desses autos – através do qual foi decidido convolar os crimes de falsificação de documento de especial valor e de uso de documento de especial valor então imputados pelo Ministério Público à arguida B, para somente o crime de falsificação de documento de especial valor, devido à judicialmente entendida existência de concurso aparente entre as normas incriminadoras dos ditos dois crimes, e declarar também “a incompetência do Tribunal de Macau quanto ao julgamento dos factos de falsificação de documento de especial valor ocorrida em Hong Kong”, com consequente arquivamento dos autos nos termos do art.º 22.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), por causa da judicialmente opinada não verificação das condições da aplicação da lei de Macau reguladas no art.º 5.º do Código Penal (CP) – vieram tanto o Ministério Público como o assistente A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pretenderem materialmente a revogação do referido despacho judicial, com consequente prosseguimento dos autos tendente à realização da audiência de julgamento.
Na sua motivação do recurso (apresentada a fls. 2650 a 2652 dos presentes autos correspondentes), a Digna Procuradora-Adjunta junto do Tribunal recorrido preconiza, sobretudo, que: sem fazer o julgamento contraditório dos factos, não se pode convolar judicialmente a qualificação jurídico-penal dada pelo Ente Acusador aos factos acusados, sob pena de violação do princípio do acusatório, com a agravante de que do teor do libelo acusatório não consta qualquer referência ao Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong como local de falsificação do documento, daí que foi erroneamente aplicado, pelo M.mo Juiz a quo, o art.º 5.º do CP.
Enquanto o assistente alega (na motivação de fls. 2676 a 2695 dos autos), na sua essência, e principalmente, que: é aplicável ao caso dos autos a lei penal de Macau, por verificação dos requisitos cumulativos do art.º 5.º, n.º 1, alínea d), do CP; o facto de em caso de concurso aparente entre os crimes imputados à arguida se dever aplicar a norma que pune o crime de falsificação do documento em detrimento do crime de uso de documento falso não exclui a possibilidade de, se não houver competência territorial para fazer responsabilizar a arguida pelo crime de falsificação, fazer responsabilizar esta pelo crime de uso, em prol da tutela da situação da parte ofendida e do ordenamento jurídico em geral; e deve ser convolada a qualificação jurídica dos crimes então acusados à arguida para o crime de burla de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 4, alínea a), do CP.
Aos recursos do Ministério Público e do assistente respondeu a arguida (respectivamente a fls. 2740 a 2758 e 2704 a 2734 dos autos), no sentido final igualmente de que não há qualquer motivo para pôr em causa o despacho recorrido, tendo feito juntar posteriormente aos autos (a fls. 2799 a 2847) um parecer subscrito por um Professor de Direito.
Subidos os recursos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta junto deste TSI parecer (a fls. 2795 a 2796), pugnando pela revogação da decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos presentes autos, fluem os seguintes elementos com pertinência à solução do recurso:
1. Segundo os dados de identificação da 1.ª arguida B e do 2.º arguido C constantes do intróito da acusação pública de 21 de Maio de 2009 a que se referem as fls. 496 a 498 dos autos, ambos são titulares de Bilhete de Identidade de Residente de Macau, com moradas em Macau.
2. Em sintonia com a matéria imputada nessa acusação deduzida originalmente em chinês (cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), e na sua essência:
– a 1.ª arguida B e D estavam casados entre si, sendo o assistente A um dos seus filhos;
– para vender os bens imóveis do marido D, a 1.ª arguida e o 2.º arguido, em data não determinada, fabricaram uma procuração, com 19 de Maio de 2003 como data de outorga e com o Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong como local de outorga, tendo a procuração (da qual constando as assinaturas e as rubricas dos dois mandantes D e B) por conteúdo a atribuição, ao 2.º arguido, de poderes de gestão e venda de diversas fracções autónomas identificadas na própria procuração, todas sitas em Macau;
– em 29 de Maio de 2003, sob indicação da 1.ª arguida, o 2.º arguido, munido daquela procuração, deslocou-se a um escritório forense em Macau, e sob testamunho de um Notário Privado, representou D e a 1.ª arguida na assinatura de uma escritura de compra e venda, vendendo para uma sociedade comercial, e pelo preço global de três milhões e oitocentas mil patacas, as fracções autónomas identificadas na procuração;
– conforme as conclusões da perícia feita, as assinaturas “Lau” e “D” constantes da procuração não foram feitas pela própria pessoa de D;
– a 1.ª arguida e o 2.º arguido fabricaram procuração falsa, e sabendo que as assinaturas de D constantes da procuração não tinham sido feitas por este próprio, deixaram o próprio 2.º arguido, munido dessa procuração, a representar a 1.ª arguida e D no escritório forense na assinatura da escritura pública de compra e venda, a fim de vender os bens imóveis pertencentes a D, com o intuito de alcançar benefício ilegítimo;
– os dois arguidos, de comum acordo, em conjugação de esforços e em divisão de tarefas, praticaram os factos de modo voluntário, livre e consciente, sabendo da ilegalidade e da punibilidade dos mesmos.
3. No texto da procuração identificada na mesma acusação, lê-se:
– “Aos dezanove dias do mês de Maio do ano de dois mil e três, neste Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong, perante mim, …, Cônsul-Geral, compareceram como outorgantes:
D e sua mulher B, …”.
4. Na mesma acusação, os dois arguidos vinham acusados como co-autores, na forma consumada, de “um crime de falsificação de documento de especial valor (p. e p. pelos art.os 244.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 245.º do Código Penal) e de um crime de uso de documento falsificado (p. e p. pelos art.os 244.º, n.º 1, alínea c), e 245.º do Código Penal)”.
5. Ulteriormente, houve separação do processo, ficando cada um dos arguidos a ser julgados em dois processos distintos, respeitando os ora subjacentes autos n.º CR4-12-0260-PCC à 1.ª arguida.
6. No despacho ora recorrido, proferido em 19 de Janeiro de 2015 pelo M.mo Juiz titular desses subjacentes autos, este decidiu, a propósito da questão de incompetência do tribunal colocada pela arguida:
– convolar os crimes de falsificação de documento de especial valor e de uso de documento de especial valor então imputados pelo Ministério Público à arguida, para somente o crime de falsificação de documento de especial valor, devido à entendida existência de concurso aparente entre as normas incriminadoras dos ditos dois crimes;
– e declarar “a incompetência do Tribunal de Macau quanto ao julgamento dos factos de falsificação de documento de especial valor ocorrida em Hong Kong” pelos quais a arguida vinha acusada, com consequente arquivamento dos autos nos termos do art.º 22.º, n.º 3, do CPP, por causa da opinada não verificação das condições da aplicação da lei de Macau reguladas no art.º 5.º do CP.
7. E o M.mo Juiz invocou o seguinte, na sua essência, para suportar a sua decisão:
– existindo, no caso, o concurso aparente das normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 244.º do CP com a da alínea c) desse n.º 1, só poderá ser julgado o crime de falsificação de documento;
– o art.º 2.º da acusação refere expressamente que o local onde se lavrou o documento foi o Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong e os dados carreados aos autos demonstram que a arguida reside e se encontra actualmente em Hong Kong, pelo que fica excluída a aplicação do art.º 5.º do CP, não sendo, pois, aplicável a lei de Macau.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A chave para a solução dos dois recursos sub judice está sobretudo na indagação se o M.mo Juiz a quo não tem razão na declaração da sua incompetência para julgar os factos então acusados inclusivamente à 1.ª arguida.
O art.º 7.º do CP determina que “O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver produzido” (com sublinhado só agora posto).
No caso dos autos, procede, desde já, a objecção da Digna Procuradora-Adjunta Recorrente quando entende que a acusação pública não chegou a referir que o local em que os dois arguidos fabricaram a procuração em causa foi o Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong.
Na verdade, o que a acusação referiu foi: os dois arguidos (aí identificados como titulares do Bilhete de Identidade de Residente de Macau e com moradas em Macau), em data não determinada, fabricaram uma procuração, com 19 de Maio de 2003 como data de outorga e com o Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong como local de outorga, tendo os dois praticado, de modo voluntário, livre e consciente, os factos de comum acordo, em conjugação de esforços e em divisão de tarefas.
Portanto, e mesmo que no texto dessa procuração esteja escrito que “neste Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong … compareceram como outorgantes: … B…”, não se pode, antes da realização da audiência contraditória de julgamento com necessária produção da prova, concluir judicialmente que todo o acto de fabrico da procuração, com divisão de tarefas entre os dois arguidos também residentes de Macau, tenha sido praticado somente no Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong, e já não também em Macau. É que conforme o descrito na acusação, a procuração em causa foi fabricada pelos dois arguidos com divisão de tarefas em data não determinada, significando isto que o fabrico da procuração não poderia ter ocorrido na “data de outorga” da mesma (ou seja, no dia concreto e determinado de 19 de Maio de 2003), e que o acto de fabrico poderia ter ocorrido também em Macau, por ambos os arguidos terem aqui moradas.
A lei penal de Macau é, pois, aplicável ao caso dos autos, por força das disposições conjugadas dos art.os 4.º, alínea a), e 7.º do CP, sendo prematura a convolação, como tal feita pelo M.mo Juiz a quo, da qualificação jurídico-penal dos factos acusados.
E mesmo que o M.mo Juiz a quo entendesse que todo o acto de fabrico da procuração tenha ocorrido apenas no Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong e como tal a lei penal de Macau não seria aplicável ao caso dos autos, a sua tese jurídica de que a pessoa fabricante do documento falso não dever ser punida também a título de utente do mesmo documento não teria a virtude de obstar (como entenderam o assistente na sua motivação do recurso e a Digna Procuradora-Adjunta junto deste TSI no seu judicioso parecer emitido) à possibilidade legal de julgamento – na pretensa hipótese de impossibilidade, por falta de jurisdição do tribunal sobre a causa penal em mira, de conhecimento do imputado crime de falsificação da procuração – do crime de uso dessa procuração (visto que sob pena de se deixar impunível uma conduta delituosa praticada em Macau ao arrepio do disposto na alínea a) do art.º 4.º do CP, só deverá valer tal tese de concurso aparente de normas incriminadoras, naturalmente quando o tribunal sentenciador estiver com jurisdição e competência a julgar simultaneamente as condutas, acusadas a um mesmo agente, de falsificação do documento e de uso do documento assim falsificado), crime de uso esse que deve ser tido como praticado em Macau, de acordo com a factualidade imputada à arguida na acusação pública.
É que a propósito do art.º 7.º do CP, já anotaram M. LEAL-HENRIQUES e M. SIMAS SANTOS (in CÓDIGO PENAL DE MACAU, 1997, Imprensa Oficial de Macau, pág. 27), com citação do entendimento, no mesmo sentido, de FIGUEIREDO DIAS e LOPES ROCHA, que:
– é suficiente para a co-autoria que um dos intervenientes tenha contribuído para o facto em Macau, com uma contribuição que possa fundamentar uma co-autoria;
– nos casos de autoria mediata o lugar da comissão é aquele lugar em que o autor mediato actua sobre o seu instrumento e ainda o lugar em que o instrumento actua, e finalmente o lugar em que o resultado se produz ou devia produzir.
Estando a 1.ª arguida acusada penalmente pelo uso de uma procuração falsa, em co-autoria, com divisão de tarefas, com o 2.º arguido, a lei penal de Macau não deixaria de ser aplicável ao crime de uso de documento falso, sob aval do art.º 4.º, alínea a), do CP.
E ainda mesmo na eventual hipótese de se vir a apurar, em ulterior sede de audiência contraditória de julgamento, que o 2.º arguido praticou os factos de uso do documento falso em questão apenas como instrumento da 1.ª arguida, e já não como co-autor da 1.ª arguida, a esta também não deixará de ser aplicável a lei penal de Macau, nos mesmos termos legais dos art.os 4.º, alínea a), e 7.º do CP, isto precisamente porque na esteira da categorizada doutrina jurídica acima referida, nos casos de autoria mediata o lugar da comissão do crime é aquele lugar em que o instrumento actua.
Do exposto, e sem mais indagação por desnecessária, resulta demonstrada a legalidade da jurisdição do Tribunal a quo sobre a causa penal subjacente, ficando, assim, providos os dois recursos sub judice, com consequente revogação do despacho recorrido.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar providos os recursos do Ministério Público e do assistente, revogando o despacho judicial recorrido e ordenando ao M.mo Juiz a quo que faça julgar a causa penal subjacente através dos devidos trâmites processuais ulteriores.
Custas dos recursos tudo pela arguida (por ela ter defendido a manutenção do despacho recorrido), com quatro UC de taxa de justiça para cada um dos recursos.
Macau, 25 de Junho de 2015.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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