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Proc. nº 666/2014 - I
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 18 de Junho de 2015
Recorrente: A (Autora)
Recorrido: B (Réu)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I. Relatório 
A, Autora/Recorrente nos presentes autos e neles melhor identificada, vem nos termos da al. d) do nº 1 do artº 571º do CPCM, arguir a nulidade do acórdão de 16/04/2015, com base nos seguintes fundamentos:
   “...
    I.
   Analisado o Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, não encontra a Recorrente qualquer fundamento quanto à questão, especificamente suscitada, de o Acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base violar o disposto no art. 1215.º do Código Civil (Usucapião em caso de Detenção).
   Com efeito, tendo em conta que o título em que o Recorrido se funda para adquirir o direito de propriedade (por usucapião) é a celebração de um contrato-promessa, analisado o Acórdão ora proferido, nada se lê sobre o momento em que terá havido inversão do título da posse, em termos que permitam percepcionar a partir de quando passou o Recorrido a deixar de se comportar como mero detentor para passar a assumir-se como possuidor do imóvel.
   Tal questão da violação do disposto no art. 1215.° do Código Civil e, consequentemente, também do art. 1221.° do mesmo diploma legal, foi especificamente suscitada e desenvolvida pela Recorrente nas suas alegações de recurso e resulta, nomeadamente, das conclusões CC), HH), II), JJ), KK) e OO) do recurso.
   Pelo que, nessa parte, entende a Recorrente que o Acórdão ora proferido padece de nulidade, nos termos previstos no art. 571.°, n.º 1, al. b) do C.P.C. - por não ter especificado os fundamentos de direito que justificam a decisão -, bem como ao abrigo da al. d) do mesmo normativo legal - pelo facto de o Tribunal não se ter pronunciado sobre uma questão que lhe cabia apreciar.
   II.
   Por outro lado, atenta também a matéria de direito alegada, entende ainda a Recorrente que o Acórdão ora proferido pelo Tribunal de Segunda Instância carece de fundamentação quanto ao animus possídendí do Recorrido, apenas se referindo ao respectivo corpus possídendí, tendo presente que o título em que se funda para adquirir o direito de propriedade por usucapião é a celebração de um contrato-promessa, cujo preço nem foi pago na íntegra, nem foi assinado pelos dois titulares do imóvel.
   Com efeito, na senda do Acórdão proferido no processo n.º 425/2012 do Tribunal de Segunda Instância transcrito nas alegações de recurso: “....tudo se resume a saber se o corpus da posse exercido pelo promitente-comprador é ou não acompanhado do animus possidendi, isto é se ele actua com animus rem sibi habendi. De resto, tanto Pires de Lima e Antunes Varela admitem situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse, pois que ele pratica os actos não em nome do promitentevendedor, mas em seu próprio nome, actuando uti dominus, e apontam, como exemplo, o caso de já ter sido paga a totalidade do preço e a coisa ter sido entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já, passando este, nesse estado de espírito, a praticar sobre a coisa diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
   (...)
   E a projecção dos indispensáveis requisitos acima vistos no caso concreto, sendo que cada caso é um caso, não são despiciendos, dependendo do circunstancialismo individualizadamente apurado, tal como ainda recentemente se fez notar em acórdão deste Tribunal (Ac. TSI 658/2010, de 12.01.2012) que entendeu ser necessário a urar as circunstâncias concretas para aquilator das características da posse (...).
   Ora, no caso, resulta de forma clara dos autos que:
   1) o título em que o Recorrido se suporta para sustentar a aquisição do direito de propriedade por usucapião é um contrato-promessa que, tal como resulta dos quesitos 5. e 6. confessados nos autos, não foi cumprido pelo mesmo, na medida em que do preço convencionado de HKD$210.000,00, o Recorrido admitiu expressamente que apenas pagou à Recorrente o valor de HKD$100,000.00;
   2) O próprio Recorrido alegou na sua petição inicial - conferir artigos 10° e 12° (quesitos 11.° e 13° da base instrutória) que, ao longo dos anos, procurou contactar a Recorrente e C para a outorga da necessária escritura pública de compra e venda;
   3) E que o contrato-promessa objecto dos autos foi apenas assinado por um dos titulares do imóvel, pela ora Recorrente, e não também por C.
   Entende a Recorrente que o Acórdão Recorrido carece de fundamentação quanto ao animus possidendi tendo em conta o título - a celebração de um contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais - em que a aquisição do direito de propriedade por usucapião se baseia e a consideração das 3 ordens de razões acima expostas.
   Pelo que, entende a Recorrente que o Acórdão ora proferido padece de nulidade por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão no que se refere concretamente ao animus possidendi do Recorrente, entendendo que o Acórdão recorrido apenas apresenta fundamentação quanto ao corpus possidendi.
   Nestes termos, vem a Recorrente requerer a V. Ex.vs que seja o Acórdão revogado e, em sua substituição, proferido outro, em conferência, que declare as nulidades arguidas, deferindo a reclamação apresentada nos termos e pelos fundamentos expostos...”.
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Devidamente notificado, o Réu/Recorrido B pronunciou-se nos termos constantes a fls. 326 a 328 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência da nulidade arguida.
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II. Fundamentação
Adiantamos desde já que não assiste razão à Autora.
A nulidade de sentença/acórdão prevista na al. d) do nº 1 do artº 571º do CPCM traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no nº 2 do artº 563º do mesmo Código, nos termos do qual “O juíz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Repare-se, a lei fala de “questões” e não de “razões” ou “argumentos”, daí que é pacífico, quer ao nível da doutrina1, quer da jurisprudência2, que só há lugar à nulidade da sentença/acórdão por omissão da pronúncia quando o tribunal deixar de se pronunciar sobre questões suscitadas e não sobre simples argumentos e opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes.
No caso em apreço, este Tribunal pronunciou-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes, especialmente a questão de se saber se o Réu B tem ou não posse sobre a fracção autónoma em causa.
Este Tribunal afirmou expressamente o seguinte:
“…No que respeita ao quesito 14º, questionou-se o seguinte:
   “O R. B considerou sempre desde o dia em que ali passou a residir que este apartamento era, e é, de sua propriedade? ”
   O Tribunal a quo julgou:
   “Provado apenas que o Réu desde que recebeu a fracção considerou ser o dono da mesma.”
   No entendimento da Autora, “em consonância com a resposta aos quesitos 11° e 13.° da base instrutória, bem como a resposta parcialmente negativa ao quesito 8.° (o Tribunal a quo não considerou provado que "a partir dessa data e até ao presente o R. B passou a considerar esta fracção autónoma como de sua propriedade e, em virtude desse facto... "”, este quesito 14.° deveria ser considerado como não provado.
   Por outro lado, alega ainda que “dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Recorrido apenas resultou que o Recorrido ocupou a fracção ao abrigo da celebração do contrato-promessa”.
   Não lhe assiste razão.
   Considerar-se ser ou não dono da fracção autónoma é um elemento subjectivo íntimo da própria pessoa, pelo que a sua aprovação não pode limitar-se simplesmente à prova testemunhal, tem de ser analisada tendo em conta a prova na sua globalidade e os demais factos assentes e provados.
   No caso em apreço, ficaram provados que:
- O Réu tomou conta da fracção autónoma em referência após a celebração do contrato promessa de compra e venda e que a partir da qual passou ali a residir com a sua família;
- Praticou os actos materiais próprios de um proprietário, tais como o pagamento das rendas do terreno onde se situa a fracção autónoma em causa.
   Ora, a conjugação destes dois factos, para nós, é suficiente para demonstrar o referido elemento subjectivo íntimo do Réu.”
Além disso, fez ainda a análise para concluir que o Réu B exercia a posse de forma pacífica, pública e de boa-fé, a saber:
   “…Para haver posse, é necessário reunir simultaneamente dois elementos: o corpus e o animus, isto é, tem de praticar actos materiais de facto correspondentes ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, na convicção de que está a agir como verdadeiro titular do direito.
   Ficaram provados que:
- Após a assinatura do contrato de promessa de compra e venda da fracção autónoma em referência a Autora entregou ao Réu as chaves da fracção autónoma e este passou a dispor da mesma (no sentido de utilizar livremente a mesma).
- O Réu procedeu ao pagamento ao Serviço de Finanças das rendas referentes à aludida fracção autónoma relativas a 1995 a 1997 e 2005 a 2011.
- Em Maio de 1994 o Réu contratou o fornecimento de energia eléctrica para a fracção autónoma em causa.
- O Réu desde que recebeu a fracção considerou ser o dono da mesma.
- O Réu B actua nos termos acima referidos à vista de todos e sem oposição.
- O Réu B e a sua família ainda hoje ali residem.
- Desde que vive na fracção referida o Réu procedeu às reparações necessárias.
- O Réu é reconhecido por alguns amigos como sendo o dono da fracção referida.
   Perante este quadro fáctico, não temos qualquer dúvida em afirmar que o ora Recorrido exerce a posse da fracção autónoma em causa, de forma pacífica e pública, uma que vez que a mesma foi adquirida sem violência e exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados. (cfr. artºs 1185º e 1186º do CCM).
   Dispõe o artº 1221º do CCM que “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa-fé, e de 20 anos, se for de má-fé, independentemente do carácter titulado ou não da posse.”.
   A posse do Réu durou mais de 15 anos.
   Trata-se de uma posse de boa-fé ou de má-fé?
   Para a Autora, ainda que existisse a posse, a mesma é de má-fé, visto que o Réu bem sabia que era simplesmente um promitente-comprador, daí que ao agir como proprietário, não podia ignorar que estava a lesar o direito do seu verdadeiro proprietário.
   Como já referimos anteriormente, uma pessoa pode bem saber que não é o proprietário jurídico porque não pagou ainda integralmente o preço da compra e o respectivo contrato definitivo de compra e venda ainda não se encontra realizado, contudo, tais factos nada impede que essa pessoa possa agir como um proprietário de facto, tratando a coisa que lhe foi entregue como sua.
   Tal conduta não implica necessariamente que o possuidor agiu de má-fé, isto é, com conhecimento de que estava a lesar o direito do proprietário jurídico, uma vez que o proprietário jurídico, após a entrega da coisa, se desinteressou completamente dela.
   Pelo exposto, é de concluir pela boa-fé da posse do Réu...”.
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III. Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente a referida arguição da nulidade.
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Custas do incidente pela Autora, com 6UC taxa de justiça.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 18 de Junho de 2015.

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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
1 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, quer de Alberto dos Reis, quer de Abílio Neto.

2 Acs. do TSI de 01/03/2012 e de 31/05/2012, Procs. nºs 867/2010 e 167/2012, respectivamente, bem como, no Direito Comparado, Acs. do STJ, de 11/01/2000 e de 28/03/2000, in Sumários 37º-19 e 39º-26, respectivamente.
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666/2014-I
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