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Proc. nº 187/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 09 de Julho de 2015
Descritores:
-Depoimento de parte inadmissível
-Depoimento de parte ineficaz
-Factos torpes
-Relação extraconjugal

SUMÁRIO:

I. O depoimento de parte tem uma essência probatória, isto é, tem por objectivo, precisamente, obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e à parte a que pertence e o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária. Verdadeiramente, o depoimento de parte visa obter a confissão judicial

II. O art. 479º, nº2, do CPC assinala os casos em que o depoimento de parte não é admissível. Diferentemente, o art. 347º, al. b), do C.C. se limita a dizer que a confissão não faz prova contra o confitente, o que significa que a confissão realizada não é eficaz, caso em que o depoimento prestado será apreciado livremente como elemento probatório

III. Torpes são os factos repugnantes, vis, ignóbeis ou infames, os que revelam baixeza de carácter, não sendo de considerar como tal aqueles que não sejam infamantes ou humilhantes para a generalidade das pessoas

IV. Uma relação extra conjugal é ilícita na medida em que fere deveres de respeito e de fidelidade de um para com o outro cônjuge (art. 1533º, CC), sendo por isso causa de divórcio (arts. 1628º, nº3, 1635º e 1636º, do CC), mas não é, neste sentido, facto torpe, repugnante, ignóbil ou infame.












Proc. nº 187/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
Nos autos de divórcio litigioso que no juízo de Família e Menores do TJB pendem entre o autor, A e a ré, B (Proc. nº FM1-13-0016-CDL), requereu esta última o depoimento de parte do autor quanto aos factos constantes dos artigos 13º e 14º da Base Instrutória.
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Por despacho datado de 11/07/2014 foi essa pretensão indeferida (fls. 51vº a 55º v dos autos).
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É contra esse despacho que ora vem interposto recurso jurisdicional pela ré, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. Ao presente recurso foi fixado o regime de subida imediata, em separado, com efeito meramente devolutivo, nos termos conjugados dos artigos 581.º, 584.º a contrario, 585.º, 591.º, 593.º, 600.º, n.º 2 do artigo 601.º, e artigos 603.º e 604.º, todos do Código Processo Civil;
2. Sendo-lhe fixado o regime de subida imediata por se entender que a sua retenção, e decisão a final, o tornaria absolutamente inútil;
3. Em causa, está o despacho de fls. 304 dos autos, que indeferiu o requerimento para que o Autor prestasse depoimento de parte relativamente aos pontos 13 e 14 da Base Instrutória, respeitantes à relação extraconjugal do Autor;
4. Entendeu o Ilustre Tribunal a quo que não era aquele requerimento de admitir, por se tratar de confissão de facto relativo a direito indisponível e conduta impudor do depoente;
5. Não se conformando com aquela decisão, a Recorrente interpôs o presente recurso, por considerar que, muito embora um dos propósitos do depoimento de parte seja obter a confissão de um facto, o regime do depoimento de parte e da confissão não se podem confundir, existindo depoimento de parte para além da confissão;
6. O que decorre directamente dos imperativos legais que regulam o regime de prestação de depoimento de parte e da confissão, e ainda, de doutrina e jurisprudência vária;
7. O regime do depoimento de parte encontra-se regulado pelos artigos 477.º e seguintes do Código de Processo Civil;
8. Nos termos do disposto no mencionado artigo 477.º, o depoimento de parte pode ser prestado em qualquer fase do processo, a requerimento da parte ou por decisão do juiz;
9. Nos termos conjugados do disposto nos artigos 477.º e 479.º, o objecto do depoimento de parte serão quaisquer factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, à excepção daqueles que consubstanciem factos criminosos ou torpes, e que interessem à boa decisão da causa;
10. Assim delimitado o objecto do depoimento de parte, da lei processual ou substantiva, não decorre que o depoimento de parte exista apenas quando diga respeito a factos em relação aos quais o depoente possa confessar;
11. Sendo que apenas relativamente à confissão é estipulado, no artigo 347.º do Código Civil, que a mesma não fará prova contra o confitente quando, entre outros, recaia sobre factos relativos a direitos indisponíveis;
12. Além disso, resulta do disposto no n. 2 do artigo 478.º do Código de Processo Civil, quando conjugado com o n.º 1 do artigo 487.º do mesmo Código, que o depoimento de parte pode realizar-se sem que tenha por resultado a confissão, caso em que não tem de ser reduzido a escrito;
13. Tem assim de concluir-se pela possibilidade de ser tomado o depoimento de parte, ainda quando diga respeito a factos relativamente aos quais o depoente não possa confessar, caso em que, nos termos do disposto no artigo 354.º do Código Civil, vale como elemento probatório Que o Tribunal apreciará livremente;
14. Decorre da lei que o depoimento de parte pode incidir sobre factos relativamente aos quais não é possível obter-se confissão, o que não pode é, ainda que o depoente reconheça a realidade de factos que lhe são desfavoráveis, atribuir-se a esse depoimento a força de confissão;
15. Está em causa apenas o valor probatório desse depoimento de parte, sendo que, no caso concreto, por não poder ter o efeito de confissão, não pode ter valor probatório pleno;
16. Não pode, no entanto, ser desconsiderado como elemento de prova, sujeito à livre apreciação do Tribunal, e que, conjugado com outros elementos de prova, serve o propósito de formar a sua convicção;
17. A confissão judicial é definida pelo disposto nos artigos 345.º, 347.º e 349.º do Código Civil, como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária, quando feita em juízo, e que pode ser feita nos articulados, em qualquer acto do processo, ou através de depoimento de parte;
18. Confissão e depoimento de parte são assim dois mecanismos que existem, cada um deles independentemente do outro, e embora o depoimento de parte seja um meio de obter a confissão, pode haver depoimento de parte sem que tenha como resultado a confissão, assim como pode haver confissão sem ser através do depoimento de parte;
19. Com base no supra exposto, não devia o ilustre Tribunal a quo ter decidido como decidiu, indeferindo o requerimento da Ré, ora Recorrente, para que o Autor prestasse depoimento de parte, por se tratar de confissão de facto relativo a direito indisponível e conduta impudor do depoente;
20. Ainda que respeitante a factos relativos a direitos indisponíveis, a lei não o proíbe, pelo que deve o depoimento de parte ser admitido, e prestado, sendo o seu valor probatório devidamente apreciado pelo Tribunal, contribuindo, em todo o caso, para, conjuntamente com a restante prova a apresentar, formar a convicção do Ilustre Tribunal;
21. Aquele depoimento de parte incide sobre factos pessoais, de que o Autor tem conhecimento, e que não consubstanciam factos criminosos ou torpes;
22. Com ele, a Recorrente pretende o esclarecimento de factos que interessam realmente à boa decisão da causa, e ainda que esse depoimento de parte leve o Autor a reconhecer a realidade de factos que lhe são desfavoráveis, correspondendo esses factos a direitos indisponíveis, a consequência legal é que desse depoimento não pode resultar a confissão, como prova plena, mas apenas um elemento de prova que, conjuntamente com outros meios de prova careados para os autos, será livremente apreciado pelo Ilustre Tribunal;
23. Abílio Neto, in Código de Processo Civil Anotado, da Ediforum - Edições Jurídicas, Lda., 19.a Edição Actualizada, Setembro de 2007, a páginas 765, em comentário ao artigo 556.º do Código de Processo Civil Português, que, no seu n.º 1 é equivalente ao artigo 481.º do Código de Processo Civil de Macau, refere que “é já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o depoente diz vale o modo por que o diz e que as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim, a atitude e a conduta do declarante no acto do depoimento. Há, portanto, toda a conveniência em que o julgador assista ao depoimento e haja de avalia-lo a pequena distância da data em que foi produzido”;
24. O depoimento de parte requerido reveste de manifesta importância para a formação da convicção do Tribunal e apreciação da prova que venha a ser produzida;
25. Sendo igualmente imprescindível, para esse efeito, nos termos do disposto nos artigos 481.º e 555.º do Código de Processo Civil, que o mesmo seja prestado em audiência, imediatamente antes da produção da restante prova apresentada;
26. Sendo a única forma de assegurar a sua espontaneidade, permitindo ao julgador a sua apreciação nos termos definidos por Abílio Neto - em 23. supra - e garantindo que aquele não é de qualquer forma influenciado pela restante prova a produzir;
27. Assim, atendendo a que os presentes autos se encontram pendentes de cumprimento das cartas rogatórias remetidas, e de marcação de audiência e julgamento, é neste momento previsível que não seja o presente recurso decidido antes da realização da audiência de discussão e julgamento;
28. Ao presente recurso foi fixado o regime de subida imediata, por se entender que a sua subida a final o tornaria absolutamente inútil;
29. O que decorre da argumentação ora apresentada, porque os efeitos que se pretendem obter do requerido depoimento de parte apenas são alcançáveis se o mesmo for prestado em audiência, antes da produção da restante prova;
30. Porém, o facto de ao presente recurso ter sido atribuído efeito meramente devolutivo inviabilizará esse propósito, por não ser razoável que o mesmo seja decidido antes do início daquela;
31. O que determina que a sua decisão posterior à realização da audiência de discussão e julgamento, ainda que leve à inutilização de tudo o processado posteriormente ao despacho recorrido, o tornará absolutamente inútil;
32. Realizada a audiência e produzida a prova, o depoimento de parte requerido perderá a espontaneidade essencial para a análise do depoimento em si e para a formação da convicção do Tribunal;
33. Da mesma maneira que o Tribunal, por essa altura, terá já formado a sua convicção, sem ter em conta o depoimento do Autor, e a forma como esse depoimento é prestado;
34. Tendo o depoimento de parte o propósito de esclarecer factos que interessam à boa decisão da causa, como sendo, a existência de relações extra matrimoniais, não tendo esse depoimento o valor de confissão, é imprescindível que se assegure o objectivo de que este forneça ao julgador elementos que, associados a outra prova a produzir, o ajudem na formação da sua livre convicção;
35. E esse objectivo só é alcançável se o depoimento de parte for prestado antes da produção da restante prova;
36. O que determina que a decisão do presente recurso - e caso lhe seja dado provimento - a tomada do depoimento de parte do Autor, ocorram antes da produção da restante prova, isto é, antes do início da audiência de discussão e julgamento;
37. Pelo que requer a V. Exa. se digne, nos termos conjugados do disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 607.º, da alínea b) do n.º 1 do artigo 619.º, do n.º 1 do artigo 621 e do artigo 623.º, todos do CPC, a alterar o efeito devolutivo atribuído ao presente recurso pelo Tribunal a quo, passando o mesmo a ter efeito suspensivo;
38. No sentido do que ora resulta exposto, Abílio Neto, no supra identificado Código de Processo Civil Anotado refere que “convirá marcar a distinção que existe entre o depoimento de parte e a confissão; aquele é só o meio de provocar esta, e assim, tal como pode haver depoimento sem haver confissão, também pode haver reconhecimento da realidade de factos desfavoráveis - sublinhado nosso - ao depoente e favoráveis à parte contrária, a que não possa atribuir-se eficácia confessória específica, designadamente, se o depoente não tiver a necessária capacidade jurídica para dispor do correspondente direito, esse reconhecimento só valerá, então, como elemento probatório, que o tribunal apreciará livremente, como dispõe o art. 361.º do Cód. Civil” - negrito nosso;
39. A página 762, Abílio Neto acrescenta ainda que “o depoimento de parte constitui um meio técnico de provocar a confissão judicial, ou seja, o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária. Não obstante, esse tipo de depoimentos não impede que deles se possa socorrer o tribunal para melhor esclarecimento e apuramento da verdade, segundo livre apreciação dos mesmos, desde que conjugados com os demais meios probatórios”;
40. E na página 767 acrescenta ainda que “em acção de divórcio a confissão (expressa ou tácita) não vale como prova plena, devendo antes ser livremente valorada pelo tribunal”;
41. Também no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 4 de Dezembro de 2011 no âmbito do processo 737/09.9T6AVR-B.C1, disponível em www.dgsi.com. refere que, “muito embora o depoimento de parte seja o meio processual comummente previsto para provocar a confissão, nos termos dos artigos 352.º e seguintes do Código Civil e 552.º e seguintes do Código de Processo Civil, nem as normas do Código Civil, nem as do Código de Processo Civil obstam a que, nos casos em que a acção versa sobre direitos indisponíveis, uma parte requeira o depoimento de parte da outra. O depoimento prestado será ineficaz como confissão, mas pode ser avaliado livremente pelo juiz, nos termos do artigo 361.º do Código Civil”;
42. O depoimento de parte requerido incide sobre factos pessoais de que o Autor tem conhecimento e que não consubstanciam factos criminosos ou torpes, e, com ele, a Recorrente pretende o esclarecimento de factos que interessam realmente à boa decisão da causa, e ainda que o Autor reconheça a realidade de factos que lhe são desfavoráveis, o que, não sendo valorado como confissão, contribuirá, conjuntamente com outros meios de prova carreados para os autos, para a formação da convicção do Ilustre Tribunal.
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, fixando-se o seu efeito como suspensivo, e alterando-se a decisão recorrida, admitindo-se o depoimento de parte do Autor, nos termos requeridos pela Ré, ora Recorrente, fazendo, mais uma vez, V. Exas. a costumada JUSTIÇA.».
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Não houve resposta ao recurso.
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Conhecendo.
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II – Os factos
1 - Nos autos de divórcio litigioso que pendem na 1ª instância entre Autor e Ré, esta requereu a fls. 299 dos autos (cfr. fls. 46) o depoimento de parte do autor à matéria dos artigos. 13º e 14º da Base Instrutória.
2 - O despacho que se seguiu a esta pretensão tem o seguinte teor:
« (…)
1) Quanto ao pedido deduzido pela Ré que requer que o Autor preste depoimento de parte para provar os quesitos 13 e 14 da base instrutória - que o Autor mantinha relação-extraconjugal com duas mulheres na duração do casamento. Nos termos do art.º 347º, al. b) do CPM e art.º 479º, nº 2 do CPCM, o depoimento de parte é uma diligência de prova que provoca a confissão da parte. Não é admissível a confissão caso os factos expostos se prendam com o direito indisponível e com torpes do confitente. Por esta razão, não se defere o pedido da Ré para o Autor prestar o depoimento de parte, que visa provar o facto de que o Autor violou o dever de fidelidade recíproca por ter mantido relação-extraconjugal com outras mulheres.
(…)».
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III – O Direito
1- Pretendia a ré que o autor da acção de divórcio litigioso contra si instaurada prestasse depoimento de parte à matéria dos artigos 13º e 14º da Base Instrutória.
O despacho impugnado indeferiu o pedido com base nos arts. 347º, al. b), do CC e 479º, nº2, do CPC. Disse expressamente: A confissão não é admissível, “caso os factos se prendam com o direito indisponível e com [factos] torpes do confitente”.
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2 - Tais artigos apresentam o seguinte teor:
13º: “No decurso de 2010, o Autor mantinha uma relação extraconjugal com a senhora C?”
14º: “O Autor mantém uma relação extraconjugal com a senhora XX?”
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3 - Foi dito no Ac. do TSI, de 23/01/2014, Proc. nº 396/2013 o seguinte:
«…o depoimento de parte tem uma essência probatória (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo IV, pág. 430), isto é, tem por objectivo, precisamente, obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e à parte a que pertence e o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária. Verdadeiramente, o depoimento de parte visa obter a confissão judicial (v.g., Ac. RL, 10/03/2000, Proc. nº 4840/00; Ac. RE, de 26/04/2005, Proc. nº 580/01; RL, de 21/04/2004, Proc. nº 972/2004; 8/06/2004, Proc. nº 1700/03; RC, de 12/06/2005, Proc. nº 2824/2005; RL, de 5/06/2007, Proc. nº 3129/2007).
A confissão (“declaração de ciência”, apud Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, II, 697 e Mário de Brito, “Cod. Civil Anotado”, I, 470 e nota 843) tem, assim, uma marca “probatória” que o juiz avaliará no âmbito da sua actividade decisória. O depoimento de parte destina-se, por conseguinte, à obtenção do meio de prova a que se referem os artigos 345º e sgs. do CC. E se falamos de “meio de prova”, então é porque estamos no domínio de uma actividade jurisdicional que tem em vista, precisamente, a recolha de dados de facto necessários à subsunção deles ao direito a aplicar na sentença.
Isto é, admite-se o depoimento de parte nos casos em que as declarações prestadas acabam por ser contrárias à pessoa que as presta e decisivas no quadro da actividade julgadora que o tribunal terá que efectuar quando chegar o momento de decidir o litígio e de o tribunal se munir de elementos suficientes e imprescindíveis ao reconhecimento do direito (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, pág. 325).».
Do trecho transcrito, que este colectivo subscreve, resulta que o depoimento de parte tem uma missão confessória (no mesmo sentido, ver Acs. do TSI, de 21/02/2013, Proc. nº 778/2011; 1/12/2011, Proc. nº 548/2010).
Todavia, ainda há quem sustente que o depoimento de parte não visa somente a confissão judicial com eficácia plena, podendo ter também por objecto de qualquer declaração confessória ainda que sujeita à livre convicção do julgador (Américo Campos Costa, O depoimento de parte sobre factos relativos a direitos indisponíveis, Revista dos Tribunais, Ano 76.º, pgs. 322 a 327; Ac. RP, de 19/01/2015, Proc. nº 3201/12). São deste autor as palavras que seguem: «Nas acções em geral, os depoimentos, quando não consistam numa confissão, devem ser apreciados livremente pelo julgador. Observe-se até que a circunstância de a parte negar a veracidade do facto sobre que foi chamada a depor não implica que o tribunal deva considerar esse elemento de prova como favorável ao depoente; como meio de prova livre que é, esse depoimento, pela maneira como foi prestado, pode ter convencido o tribunal de que o facto é verdadeiro, não obstante ter sido negado pelo depoente» (ob. e loc. cits.).
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4 - Agora, é preciso distinguir o seguinte.
Enquanto o art. 479º, nº2, do CPC (invocado no despacho impugnado) assinala os casos em que o depoimento de parte não é admissível, configurando-se aí uma proibição, já o art. 347º, al. b), do CC (igualmente citado no mesmo despacho) se limita a dizer que a confissão, em tal hipótese, não faz prova contra o confitente.
São coisas diferentes.
Dizer que “não faz prova” não equivale a afirmar que a confissão não seja possível ou que seja ilegal ou inválida; significa, antes, que a confissão realizada - melhor dito, o depoimento prestado -, pode ser ineficaz enquanto confissão (v.g., Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Direito Civil, 5ª ed., pág. 545-551).
Cremos, portanto, que antes de enveredar pelo caminho da ineficácia (que já pressupõe uma confissão prévia, de que se quer evitar os seus normais efeitos), importará averiguar se o depoimento de parte em apreço é inadmissível à luz do art. 479º, nº2, do CPC, por se poder estar ante factos torpes.
Ora, torpes são os factos repugnantes, vis, ignóbeis ou infames, os que revelam baixeza de carácter, não sendo de considerar como tal aqueles que não sejam infamantes ou humilhantes para a generalidade das pessoas (Ac. STJ, de 23/11/1973, Proc. nº 064829).
Uma relação extra conjugal é ilícita na medida em que fere deveres de respeito e de fidelidade de um para com o outro cônjuge (art. 1533º, CC), sendo por isso causa de divórcio (arts. 1628º, nº3, 1635º e 1636º, do CC), mas não é, neste sentido, facto torpe, repugnante, ignóbil ou infame.
Isto quer dizer que o argumento retirado do art. 479º, nº2, do CPC não pode servir de fundamento para o indeferimento do depoimento de parte.
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5 - E o que dizer da ineficácia?
Como já se disse, a ineficácia é apenas um problema que se deve colocar após o depoimento, e não ex ante.
Em todo o caso, mesmo não ignorando o ponto em que se encontra a doutrina que sobre o assunto tem opinado - alguma dela defendendo que o direito ao estado de casado é um direito indisponível (e muito haverá a fazer sobre este velho conceito quando aplicado ao estado das pessoas), e que, com base nas teses “antidivorcistas”, os direitos pessoais familiares são duradouros e tendencialmente perpétuos (Antunes Varela, Direito da Família, 1º Vol., 5ª ed., Petrony, pág. 82) -, cremos que não haver obstáculo ao depoimento de parte em casos desses.
Pode o tribunal considerá-lo ineficaz, se o entender; deve, porém, admiti-lo.
E então, uma de duas:
- Ou o autor se recusa a prestar o depoimento (art. 350ºnº2, caso em que o tribunal apreciará livremente a conduta para efeitos probatórios (art. 350º, nº2, do CC);
- Ou ele presta o depoimento e o juiz achará que ele é ineficaz quanto aos efeitos confessórios (mas o juiz haverá de fazer esse exercício e afirmá-lo expressamente), caso em que o se limitará a apreciá-lo livremente como elemento probatório, nos termos do art. 354º, do CC (em sentido semelhante, Américo Campos Costa, “O depoimento de parte sobre factos relativos a direitos indisponíveis”, Revista dos Tribunais, Ano 76.º, págs. 322 a 327; e sobre a admissibilidade do depoimento de parte nestes casos, ver o trabalho de António José Fialho, Algumas Questões Sobre O Novo Regime do Divórcio, texto que se pode encontrar em http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/ct_MA_12537.pdf.
Cremos, pois, que o depoimento deveria poder ser prestado, ao contrário do que o ajuizou o tribunal recorrido.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, determinando o prosseguimento dos autos e deferindo o pedido de depoimento de parte do Autor à matéria dos arts. 13º e 14º da BI.
Custas pela parte vencida a final.
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TSI, 09 de Julho de 2015
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Tong Hio Fong (com declaração de voto vencido)







Declaração de voto vencido

    Votei vencido por entender que nas acções sobre o estado de pessoas, como a confissão não faz prova contra o confitente, não faria sentido autorizar o depoimento de parte, por ser um acto processualmente inútil.
    Em boa verdade, admito que o depoimento de parte destina-se a obter a confissão ou o reconhecimento de factos desfavoráveis ao depoente mas favoráveis à parte contrária, mas essa confissão não faz prova contra o confitente, se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis (alínea b) do artigo 347º do Código Civil).
    No tocante aos chamados direitos indisponíveis, observa o Professor Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, pág. 518, que há relações jurídicas sobre as quais não exerce influência o princípio da autonomia da vontade, isto é, a parte não pode, por acto seu, dispor da relação jurídica substancial, nomeadamente desistir, confessar e transigir sobre o pedido.
    Mais acrescenta aquele ilustre Professor, na pág. 520 da obra citada, que “versam sobre o estado de pessoas as acções de nulidade do casamento, de impugnação da legitimidade do filho, de nulidade da legitimação, de nulidade ou impugnação da perfilhação, de vindicação de estado, de divórcio, de interdição, de investigação de paternidade ilegítima, etc.” – sublinhado meu
    Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendo que numa acção de divórcio litigioso, as partes não podem livremente dispor, por acto da sua vontade, a relação jurídica material contida no pedido, na medida em que as partes não podem obter por meio de negócio o efeito pretendido.
    Daí resulta que, por ser um direito indisponível, não é permitida a confissão, a desistência e a transacção nas acções de divórcio litigioso (artigo 241º, nº 1 do Código de Processo Civil). Se entendesse que o direito de pedir o divórcio era já um direito disponível, não faria sentido o legislador ter realçado expressamente no nº 2 desse mesmo artigo que é livre a desistência do pedido nas acções de divórcio.
    No fundo, na minha modesta opinião, o que aqui quer significar é que, nas acções de divórcio, mormente de divórcio litigioso, por que versam sobre direitos indisponíveis, em regra, não é admissível a confissão, a desistência e a transacção, mas excepcionalmente admite-se a desistência do pedido.
    Como acima se referiu, o depoimento de parte destina-se a obter o reconhecimento de factos desfavoráveis ao confitente mas favoráveis à parte contrária, mas tratando-se de factos relativos a direitos indisponíveis, a confissão não faz prova contra o confitente (alínea b) do artigo 347º do Código Civil).
    Defende José Lebre de Freitas, in Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, pág. 272, “sempre que a disposição dum direito subjectivo não possa ter lugar por mera vontade da parte, tão-pouco pode ter lugar a confissão dum facto que tenha idêntico efeito dispositivo ou seja elemento duma fatispécie complexa com tal efeito. É assim porque o acto da confissão (de factos) pode ter efeitos práticos indirectos semelhantes aos da confissão do pedido ou, em geral, do negócio jurídico: uma vez que o efeito do facto confessado pode equivaler ao efeito dum negócio que o confitente praticasse, não deve ser atribuída eficácia à confissão quando, através dela, se iria conseguir o mesmo efeito que a lei veda que seja atingido negocialmente. Os limites da vontade autónoma são assim limites do acto da confissão.”
    Portanto, mesmo que a parte depoente venha confessar os factos em audiência, como essa confissão não faz prova contra o confitente, não se vislumbra que efeito útil poderá trazer a tal diligência requerida.
    E não se diga que o depoimento de parte deve ser admitido, por que o depoimento que vier a ser prestado pela parte serve como elemento probatório que o Tribunal o apreciará livremente.
    Salvo o devido respeito, julgo que não podemos esquecer que o objectivo do depoimento de parte é precisamente tentar obter a confissão, isto é, o reconhecimento de factos desfavoráveis ao depoente mas favoráveis à parte contrária, e não é fornecer mais um elemento probatório ao Tribunal para o apreciar livremente.
    Caso fosse essa a intenção do legislador, então não se compreende por que razão teria consagrado na lei que a parte só pode requerer o depoimento da parte contrária ou o dos seus compartes (artigo 478º, nº 3 do Código de Processo Civil), antes pelo contrário deveria ter admitido também o próprio depoimento da parte requerente.
    Assim sendo, entendo eu, modestamente, que se logo à partida se verificar que a confissão não é admissível, a fim de evitar a prática de actos inúteis, tal como rege o artigo 87º do Código de Processo Civil, o depoimento de parte não deve ser admitido, pelo que julgo não merecer reparo a decisão recorrida.
    
     Tong Hio Fong
     09.7.2015



187/2015 16