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Processo nº 473/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. O Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra A, arguido com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática como autor material, na forma consumada e em concurso real de 33 crimes de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M.; (cfr., fls. 152 a 156 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Realizado o julgamento, decidiu o Colectivo do T.J.B. condenar o dito arguido como autor material, na forma consumada e em concurso real de 9 crimes de “burla”, p. p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., na pena parcelar de 7 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 439 a 451).

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Inconformado, vem o arguido recorrer.
Motivou para em síntese e em conclusões, assacar ao Acórdão recorrido os vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “erro na aplicação de direito”; (cfr., fls. 534 a 561).

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Em Resposta, pugna o Ministério Público pela integral confirmação do decidido; (cfr., fls. 565 a 569).

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Neste T.S.I., e em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer considerando igualmente que nenhuma censura merecia a decisão recorrida; (cfr., fls. 590 a 592).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 442-v a 447, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido dos autos recorrer do Acórdão que o condenou como autor material, na forma consumada e em concurso real de 9 crimes de “burla”, p. p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., na pena parcelar de 7 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão.

Assaca ao Acórdão recorrido os vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “erro na aplicação de direito”.

–– Outras questões não havendo a conhecer, comecemos, sem demoras, pelo imputado “erro na apreciação da prova”.

Repetidamente tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015 do ora relator).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015).

Ora, esclarecido que assim cremos ter ficado o sentido e alcance do “vício” em questão, e evidente sendo que, in casu, não violou o Colectivo a quo nenhuma “regra sobre o valor da prova tarifada”, “regra de experiência” ou “legis artis”, tendo apreciado a prova de acordo com o “princípio da livre apreciação da prova”, (cfr., art. 114° do C.P.P.M.), bem se vê que limita-se o recorrente a insistir na (sua) versão dos factos que não mereceu acolhimento por parte do T.J.B., motivos não havendo para este Tribunal proceder de forma diversa.

Aliás, cabe notar que, in casu, foi o T.J.B. extremamente cauteloso no julgamento da matéria de facto, seleccionando (escrupulosamente) a que resultou provada, e daí resultando, também, (em parte), a condenação do arguido na forma que foi decretada e que atrás se fez referência, (como autor de 9, e não 33 crimes de “burla)”.

Nada mais se nos afigurando de consignar sobra a questão, continuemos.

–– Quanto ao “erro na aplicação do direito”.

Aqui, duas são as questões.

Com efeito, diz o arguido que a sua conduta devia integrar uma “continuação criminosa”, e que “excessiva” é a pena.

Vejamos.

Quanto à primeira, (também repetidamente) temos afirmado que “o conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., o Acórdão de 21.07.2005, Proc. n.°135/2005, e recentemente, o Acórdão de 23.10.2014, Proc. n.° 531/2014).

Também recentemente, por douto Acórdão de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, (e com abundante doutrina sobre a questão), voltou o Vdo T.U.I. a afirmar que:
“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”; (em sentido idêntico decidiu recentemente o T.R. Évora em Acórdão de 05.05.2015, Proc. n.° 1053/13, consignando que “1 - São pressupostos do crime continuado: a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; a homogeneidade na forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção); a lesão do mesmo bem jurídico; a unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção) no sentido de que as diversas resoluções devem manter-se dentro de uma linha psicológica continuada; a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e diminui a culpa do agente. 2 - O pressuposto da continuação criminosa será, assim, a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilita a repetição da actividade criminosa, tornado cada vez menos exigível ao agente que se venha a comportar de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. 3 - No caso de ser o próprio agente a criar o condicionalismo favorável à concretização do propósito do cometimento de vários crimes, impõe-se concluir por um concurso real de crimes”).

E, atento o assim considerado, adequado será considerar que se está perante a figura do “crime continuado”.

Vejamos.

Analisando-se a matéria de facto dada como provada (e que levou o Tribunal a quo a decidir como decidiu, condenando o arguido pela prática de 9 crimes de “burla”) verifica-se que dela resulta que a actuação do arguido ocorreu em “3 momentos” que se pode (e deve) autonomizar, já que os mesmos são resultado de uma distinta opção (decisão) do ora recorrente.

Um “primeiro”, que tem como ofendido B, um “segundo”, que tem como ofendido C, e, um “terceiro” momento, onde surgem como ofendidos o (8°) D, (12°) E, (22°) F, (23°) G, (26°) H, (31°) I, e (32°) J, (daí se chegando à condenação do arguido pela prática de “9 crimes de burla”, correspondente a nove ofendidos).

Porém, importa atentar que da factualidade dada como provada resulta que no “terceiro momento” se está perante uma “unidade criminosa”, já que, aí, o arguido agiu na “disposição de obter o maior número possível de ofendidos, (e assim, a maior quantia monetária possível)”, persistindo, ao longo do “processo” com o dolo inicial.

De facto, e como se mostra de entender:

“A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores”; (cfr. v.g., o Ac. de Rel. Porto de 25.07.1986, in B.M.J. n.° 358 - 267).

Nesta conformidade, (e visto que a soma das quantias “prejuízo dos sete ofendidos” deste 3° crime não constitui “valor elevado”), afigura-se pois de alterar a decisão recorrida no sentido de passar o arguido a ficar condenado como autor material e em concurso real de 3 crimes de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., dado que, face ao exposto, inviável é considerar-se que estes 3 crimes constituem uma “continuação criminosa”.

Assim, na parte em questão, e ainda que com outros fundamentos, procede parcialmente o recurso.

–– Aqui chegados, é momento para se apreciar da “adequação da(s) pena(s)”.

Ora, o crime de “burla” do art. 211°, n.° 1 é punido “com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa”.

Atenta a factualidade dada como provada, o dolo directo e intenso do arguido, o médio grau de ilicitude e as necessidades de prevenção criminal, assim como o estatuído nos art°s 40° e 65° do C.P.M. quanto aos “fins das penas” e “critérios para a sua determinação”, crê-se que excessivas não se mostram as penas de 7 meses de prisão fixadas para os primeiros dois crimes de burla, (que tem como ofendidos B e C), afigurando-se adequada a pena de 1 ano e 6 meses de prisão para o terceiro, (tenha-se presente que este ilícito causou prejuízos em 7 ofendidos).

Com efeito, inviável é considerar-se verificado o pressuposto do art. 64° do C.P.M. – para as “penas alternativas”– já que, tendo presente a actuação do arguido, (que por um período de tempo “dedicou-se à prática de burlas”), adequado não é considerar-se que “uma pena não privativa da liberdade realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Dest’arte, e tendo-se em consideração o preceituado no art. 71° do C.P.M. quanto ao cúmulo jurídico das penas, em causa estando uma moldura penal com um mínimo de 1 ano e 6 meses de prisão e um máximo de 2 anos e 2 meses, cremos nós que justa e adequada se mostra a pena única de 1 ano e 10 meses de prisão, que não se mostra de suspender na sua execução por verificados não estarem os pressupostos previstos no art. 48° do C.P.M..

Porém, considerando que o recurso em apreciação é trazido pelo arguido, e em respeito ao art. 399° do C.P.P.M. – “proibição da reformatio in pejus” – mantém-se a pena de 1 ano e 6 meses de prisão que ao ora recorrente tinha sido aplicada pelo Tribunal Judicial de Base.

Decisão

4. Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, passando o arguido a ficar condenado como autor de 3 crimes de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., na (mesma) pena única de 1 ano e 6 meses de prisão.

Custas pelo decaimento com taxa de justiça de 5 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$1.800,00.

Macau, aos 09 de Julho de 2015
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
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