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Proc. nº 559/2014
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 23 de Julho de 2015
Descritores:
-Autorização de residência
-Cancelamento da autorização de residência
-Poderes discricionários
-Desrazoabilidade
-Arts. 9º, nº2, al.1) e 4º, nº2, al. 2), da Lei nº 4/2003
-Antecedentes criminais
-Incumprimento das leis

SUMÁRIO:

I. A concessão da autorização de residência, bem como o cancelamento dessa autorização, inserem-se no âmbito da actividade discricionária da Administração.

II. Assim sendo, os actos praticados nesse âmbito mostram-se insindicáveis, salvo nos casos de manifesto, ostensivo e grosseiro erro no acto praticado, ou naqueles em que tenham sido desrespeitados os aspectos vinculados que sempre seriam de observar, como é, por exemplo, o caso da fundamentação, do acerto nos pressupostos de facto, nas formalidades que importa observar face à lei (limites externos da discricionariedade), ou ainda nos de violação dos princípios gerais de direito administrativo plasmados no art. 3º e sgs. do CPA (limites internos da discricionariedade).

III. Não existe desrazoabilidade da actividade administrativa se nesta se descortinar em concreto a prossecução do interesse público e se for de considerar adequado o comportamento da Administração tendo em vista a realização daquele interesse.

IV. Os nºs 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, permitem que a Administração se socorra dos antecedentes criminais dos interessados para efeitos de (não) concessão de autorização de residência na RAEM e prevêem ainda que seja tido em conta o incumprimento das leis da RAEM ou qualquer outra das circunstâncias referida no art. 4º dessa lei.







Proc. nº 559/2014

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
B (B), do sexo feminino, solteira, maior, portadora do Bilhete de Identidade de Residente não Permanente de Macau n.º XXXXXXX(X), emitido em 25 de Julho de 2013, recorre contenciosamente do despacho do Secretário para a Economia e Finanças de 10 de Julho de 2014, que cancelou a sua autorização de residência temporária na RAEM.
Na petição inicial, formulou as seguintes conclusões:
« (1) Segundo art.º 9.º, n.º 2, al. 1), e do artº 4º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 4/2003, para efeitos de concessão de autorização de residência, a Administração deve atender aos elementos tais como antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior. Mas, após analisadas as referidas normas jurídicas, os referidos não são os únicos elementos a considerar na concessão de autorização de residência.
(2) Porém, a Administração não procurou saber o motivo, cancelando a autorização de residência temporária da recorrente só por causa de a recorrente ter sido condenada pelo tribunal, nem procurou conhecer os pormenores do caso em que foi condenada a recorrente, tais como a confissão e o arrependimento, negando-lhe absolutamente a possibilidade de se emendar para começar uma nova vida em Macau, o que é uma operação administrativa mecânica, violando a intenção das normas jurídicas mencionadas e o princípio da boa-fé que a Administração deve observar. Portanto, deve ser anulado o acto.
(3) Aliás, antes da tomada da decisão final, a Administração só notificou o pai da recorrente para apresentar audiência escrita sobre a existência de fortes indícios da prática de factos criminosos pelos seus dois descendentes (a recorrente e o seu irmão), mas nunca notificou a recorrente para ele próprio se pronunciar sobre um acto administrativo que seria desfavorável a ela, o que fez com que tal despacho incorresse no vício de forma e da violação do princípio da participação consagrado no art.º 10º do CPA, devendo assim ser anulado.
(4) A Administração devia levar em conta outros factores favoráveis à manutenção da autorização de residência temporária da recorrente antes de tomar decisão. Caso contrário, o exercício de poder discricionário estaria fora do princípio da legalidade, resultando no vício de erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
(5) A recorrente tem 22 anos agora e a sua família, o parceiro de união de facto e a maioria dos parentes e amigos vivem em Macau. Ela vive, estuda e trabalha sempre em Macau desde tinha 15 anos. A decisão do Secretário para a Economia e Finanças pode resulta em separação entre a mesma e a sua família, parceiro de união de facto, parentes e amigos. E, por causa disso, a recorrente tem que sair do local onde ela considera como a única casa e onde vive desde tinha 15 anos, o que pode afectar seriamente a vida normal dela.
(6) A recorrente vive em Macau há sete anos, tendo passado neste período a sua juventude e o estudo de ensino secundário. E também foi neste período é que a mesma começou a - se integrar na sociedade. A recorrente tem tido, desde há muito tempo, Macau como o seu local de residência permanente, tendo estabelecido fortes ligação e sentimento com o território e as pessoas deste.
(7) Actualmente, a recorrente está a trabalhar em Macau, dependendo apenas deste trabalho para a sua subsistência. Caso perda a autorização de residência temporária, iria perder o trabalho em Macau, assim como a sua fonte de rendimentos, o que iria afectar também a vida dela.
(8) Pelo exposto, o despacho do Secretário, ora recorrido, violou manifestamente a lei (art.º 9º, n.º 2, al. 1), e art.º 4º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 4/2003), padecendo de vício formal, violando os princípios da participação, da boa-fé, da legalidade e enfermando do vício de erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário».
*
A entidade recorrida apresentou contestação, que concluiu pelo seguinte modo:
«1. A Administração pode determinar o indeferimento da autorização de residência desde que se verifique a situação prevista no artigo 9.º, n.º 2, al. 1) ou artigo 4.º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 4/2003, independentemente dos factores tais como a gravidade do crime cometido, o número das infracções praticadas ou o arrependimento ou não do agente ou a sua personalidade, por a lei não exigir que tais factores sejam considerados.
2. Assim sendo, mesmo que o recorrente realmente se mostrasse arrependido e se corrigisse, ao despacho recorrido não se poderia apontar o vício de desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
3. Foi concedida ao interessado a oportunidade da audiência e o interessado já expressou todos os seus pareceres, sendo totalmente realizada a finalidade da audiência. É improcedente a invocação do vício de falta de audiência.
Face ao exposto, deve ser rejeitado o presente recurso contencioso».
*
Não houve alegações facultativas e o digno Magistrado do MP pronunciou-se da seguinte maneira:
«PARECER
«Assaca a recorrente, B ao acto - despacho do Secretário para a Economia e Finanças de 10/7/14 que cancelou a sua autorização de residência na RAEM - vícios de lei, por ofensa dos artºs 9º, n.º 2 al. l) e 4º, n.º 2, al. 2) da Lei 4/2003, afronta dos princípios da participação, boa fé e legalidade, erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, para além de vício formal, por falta de audiência prévia.
Cremos não lhe assistir qualquer razão.
Entende a interessada que a decisão não terá contemplado a Gidade da sua situação, atendo-se ao facto, puro e simples da condenação criminal, fazendo descaso dos “pormenores” referentes à mesma, designadamente a sua confissão, contrição e comportamento posterior, motivos por que vê afectados os dispositivos legais mencionados, bem como o princípio da boa fé por parte da Administração.
Não se pondo em causa as circunstâncias anunciadas, a verdade é que a decisão foi tomada com fundamento no disposto nos artºs 9º, n.º 2, al. l) e 4º, n.º 2, al. 2) da Lei 4/2003, por a recorrente ter sido condenada, em 13/2/14, no T.J.B., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa por 2 anos, por prática de crime de tráfico de estupefacientes.
E, ao que consta dos autos e procedimento (e não é, de resto, contestado pela visada), tal condenação corresponde à realidade, independentemente dos circunstancialismos que a ela conduziram, da postura da recorrente no decurso do processo crime e sua conduta posterior, pelo que, fundando-se o decidido em facto objectivo efectivamente ocorrido, mal se compreende onde ocorra o assacado atropelo das normas em questão, ou a boa fé por parte da Administração.
Depois, pretextando viver em Macau, com a sua família, há cerca de 7 anos, aqui tendo feito os seus estudos, detendo trabalho e poupanças na Região, com fortes relações de afectividade com a mesma, vivendo em união de facto com o seu companheiro, pretende a recorrente configurar o decidido com total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Revelando-se perfeitamente estimável e compreensível aquele tipo de considerações, a verdade é que as diversas alíneas do n.º 2 do artº 9º da Lei 4/2003 não constituem, qualquer listagem dos requisitos de cujo preenchimento dependa a concessão de autorização de residência, que haja que escrutinar “pari passu”, tratando-se, antes, de mera referência a aspectos relevantes a levar em conta nessa concessão, alguns com carácter de denegação, como é o caso presente, relativo à existência de antecedentes criminais, ou condenação criminal, por parte da interessada, sendo que, no caso, os factos em que a decisão se estribou correspondem à realidade, tendo os mesmos merecido devido enquadramento normativo/jurídico (embora se nos afigure que, na situação, se imporia, com maior acuidade, a referência à al. 3) do n.º 2 do art.º 4º do diploma em questão) não se podendo, pois, como já se viu, falar na ocorrência de erro nos pressupostos.
Posto isto, é óbvio que a medida em crise foi tomada em sede de estratégia de prevenção da segurança e estabilidade públicas, necessidade que se continua a sentir, cada vez com maior acuidade, tomando-se, pois, matéria do máximo interesse público, sendo sensato, e razoável que as entidades públicas para o efeito vocacionadas, face aos condicionalismos já referidos, esclarecedores acerca da postura criminosa da recorrente, lhe cancelem, de acordo com os preceitos legais vigentes, a autorização de residência na Região, por forma, além do mais, a prevenir a criminalidade e salvaguardar a segurança.
Os interesses pessoais, familiares e profissionais anunciados pela visada, sendo estimáveis, hão-de, inelutàvelmente, ceder perante o interesse público.
Finalmente, a autorização de residência na RAEM foi concedida à interessada por “extensão”, enquanto membro do agregado familiar do seu pai, este sim, requerente principal da fixação de residência, por investimento.
Constatando-se do procedimento ter sido proporcionada àquele requerente principal oportunidade de pronúncia sobre os concretos factos detetados referentes aos seus filhos (incluindo a recorrente), não tendo aquele deixado de transmitir, por escrito, através de advogado, a sua posição sobre os mesmos, bem como sobre a decisão que se adivinhava, não se vê onde possa validamente estribar-se a pretensa falta de audiência prévia, apenas por não notificação directa, para o efeito, à visada, a qual, dada a dependência da sua posição, não se impunha.
Donde, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer e sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, sermos a entender não merecer provimento o presente recurso».
*
Cumpre decidir.
***
II – Pressupostos processuais
O Tribunal é absolutamente competente.
O Processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
III – Os Factos
1 - Ao pai da recorrente, de seu nome C, foi autorizada a residência temporária em Macau por investimento em bens imóveis em 7 de Agosto de 2007.
2 - O agregado do requerente era composto de quatro membros, incluindo a ora recorrente B.
3 - No dia 2/07/2014 foi prestada a Informação 00971/GJFR/2014 do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau:
« Assunto: Cancelamento da autorização de residência temporária – Processo n.º 2596/2006/02R
PROPOSTA N.º: 00971/GJFR/2014
Data: 02/07/2014
Ex.ma Sr.ª Directora-Adjunta do G.J.F.R., D
1. O requerente, C (C), tendo como fundamento a aquisição de imóvel, apresentou a este Instituto, em 6 de Novembro de 2006, o pedido da autorização de residência temporária dele próprio e do seu agregado familiar, incluindo os seus descendentes,
F (F) e B (B). Pedido esse foi deferido em 7 de Agosto de 2007, e, em seguida, respectivamente em 28 de Maio de 2010 e 13 de Junho de 2013, foi renovada a autorização de residência temporária. A autorização de residência temporária dos descendentes do requerente, F (F) e B (B), foi renovada até o dia 7 de Agosto de 2016.
2. Todavia, em 7 de Fevereiro de 2014, recebeu este Instituto o oficio n.º MIG. 01347/2014/E do Corpo de Polícia de Segurança Pública, onde se referiu que os aludidos dois descendentes do requerente tinham sido acusados pelo Ministério Público, pela prática de crimes e eram julgados pelo Tribunal Judicial de Base. Posteriormente, em 12 de Março de 2014, recebeu este Instituto o oficio n.º 1043/DIR/2014 da Direcção dos Serviços de Identificação, onde se notificou de que existiam no sistema policial da Polícia Judiciária registos referentes aos dois descendentes do requerente (vide anexo 1).
3. Visando acompanhar o assunto tratado no ponto 2, este Instituto pediu informações ao MºPº por meio do ofício n.º 03127/GJFR/2014 (vide anexo 2) e, depois, o MºPº respondeu a este Instituto através do oficio n.º YYYYYY (DAPJ-2014)15, apontando: F (F) praticou um “crime de tráfico de menor gravidade” e B (B) praticou um “crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, pelo que foram os mesmos acusados pelo M'P” e encaminhados para julgamento no TJB, a par disso, por haver fortes indícios do cometimento de crimes previstos no Código Penal pelos dois indivíduos em apreço, a este Instituto foi solicitada a apreciação, nos termos da lei, das correspondentes informações (vide anexo 3).
4. O facto mencionado no ponto 3 pode desencadear o cancelamento da autorização de residência temporária dos dois descendentes do requerente, por conseguinte, em 25 de Abril de 2014, este Instituto notificou o requerente do assunto através do ofício n.º 04517/GJFR/2014, pedindo-lhe que se pronunciasse sobre o caso e entregasse os respectivos documentos comprovativos no prazo de 10 dias (vide anexo 4).
5. Em 15 de Maio de 2014, o requerente delegou os poderes à advogada para apresentar a contestação escrita a este Instituto, indicando que tinha interposto recurso contra a decisão condenatória proferida em primeira instância no processo penal em que envolvem os dois descendentes do requerente, bem como entendendo que não se devia considerar, tão cedo, que o aludido processo penal seria desfavorável à autorização de residência temporária dos dois descendentes do requerente, uma vez que, conforme o princípio de presunção de inocência, estes são considerados inocentes até o trânsito em julgado final da decisão (vide anexo 5):
6. Nos termos do art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 da RAEM, com a aplicação subsidiária do art.º 9º, n.º 2, al. 1) e art.º 4º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 4/2003, ao decidir a concessão da autorização de residência, deve ponderar-se se existem ou não os antecedentes criminais dos requerentes, o comprovado incumprimento das leis da RAEM pelos mesmos e a circunstância de que estes terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior, além disso, deve ter-se em conta se existem ou não fortes indícios de que os requerentes terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes.
7. Tendo analisado os documentos supramencionados, constata-se que os descendentes do requerente, F (F) e B (B) foram acusados pelo MºPº e condenados pelo TJB por se verificar a existência de fortes indícios do cometimento de crimes previstos no Código Penal pelos mesmos, daí se vê que, realmente, eles não cumpriram as leis da RAEM. Independentemente da interposição ou não do recurso contra a decisão condenatória do TJB, os dois descendentes do requerente violaram as disposições mencionadas no ponto 6, pelo que não merecem ser admitidos os argumentos deduzidos pela advogada do requerente, constantes do ponto 5.
8. Pelo acima exposto, verifica-se a existência de fortes indícios de que os descendentes do requerente, F (F) e B (B), cometeram crimes previstos no Código Penal e foram condenados pelo TJB, ou seja, apura-se que os mesmos não cumpriram as leis da RAEM, bem como o pedido formulado na contestação escrita do requerente é infundamentado e não foi apresentado qualquer documento comprovativo que depusesse a favor da manutenção da autorização de residência temporária, pelo que se propõe que, nos termos do art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 da RAEM, com a aplicação subsidiária do art.º 9º, n.º 2, al. 1) e art.º 4º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 4/2003, seja cancelada a autorização de residência temporária, com validade até o dia 7 de Agosto de 2016, que foi concedida aos descendentes do requerente, F (F) e B (B)».
4 - A Directora-Adjunta do GJFR emitiu a seguinte opinião em 4/07/2014:
«Pela análise da presente proposta, constata-se que há fortes indícios de que os descendentes do requerente, F (F) e B (B), cometeram crimes previstos no Código Penal e foram condenados pelo Tribunal Judicial de Base, ou seja, apura-se que os mesmos não cumpriram as leis da RAEM, bem como o pedido formulado na contestação escrita do requerente é infundamentado e não foi apresentado qualquer documento comprovativo que depusesse a favor da manutenção da autorização de residência temporária, pelo que se propõe o cancelamento da autorização de residência temporária, com validade até o dia 7 de Agosto de 2016, que foi concedida aos descendentes do requerente, F (F) e B (B).
Submete-se à apreciação da Comissão Executiva»
5 - O Presidente do IPCIM despachou em 7/07/2014 o seguinte:
«Concordo com a proposta, sendo a mesma levada à apreciação do Sr. Secretário para a Economia e Finanças».
6 - O pai da ora recorrente, C, foi notificado por ofício de 25/04/2014 de que a autorização de residência deste seria provavelmente revogada e foi-lhe dada a oportunidade de se pronunciar em audiência prévia, nos termos do expressamente invocados arts. 93º e 94º do CPA (doc. fls. 20 do p.a. e fls. 58-60 do apenso “traduções”).
7 - C - a quem tinha sido concedida autorização principal através de investimento e a cujos filhos, enquanto membros do agregado, foi igualmente concedida autorização de residência - viria a pronunciar-se em 15 de Maio de 2014 pugnando pela manutenção da autorização aos filhos enquanto o caso não fosse decidido pelo tribunal (doc. fls. 21 do p.a. apenso e fls. 61-62 do apenso “traduções”).
8 - O Secretário para a Economia e Finanças proferiu então, em 10/07/2014, o seguinte despacho: «Autorizo a proposta».
9 - No dia 13/02/2014, no âmbito do Processo-Crime nº CR1-13-0198-PCC, foi lavrado acórdão já transitado (cfr. fls. 52 do apenso “traduções), em que a aqui recorrente B foi condenada pela prática, em co-autoria, de um crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e. p. pelos arts. 8º, nº1, da Lei nº 17/2009 e art.º 66º, nºs 1 e 2, al. d) e art.º 67º, n.º 1, als. a) e b) do Código Penal, na pena de 1 ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, sob condição de pagar uma quantia de MOP10.000,00, que se destina a reparar o mal do crime (art.º 49º, n.º 1, al. c) do Código Penal), no prazo de dois meses após o trânsito em julgado do acórdão.
10 - A recorrente completou em Macau o ensino secundário geral (dos. Nº3 pi), fez parte de um grupo de dança pertencente a uma instituição religiosa (doc. 4, pi) e completou o 11º ano em 2012 (doc. 5, pi).
11 - Entre 2010 e 2012 trabalhou na G Telecom como vendedora (doc. 6, pi) e desde 1/11/2013 trabalha como relações públicas no “Clube H Gaming Promotion Limited”.
***
IV – O Direito
1 - Os vícios imputados ao acto foram:
- Violação de lei (violação dos arts. 9º, nº2, al.1) e 4º, nº2, al. 2), da Lei nº 4/2003);
- Violação do princípio da participação, da boa fé, da legalidade; desrazoabilidade do exercício do poder discricionário;
- Erro manifesto no exercício dos poderes discricionários;
- Vício de forma, por falta de audiência prévia.
Apreciemo-los.
*
2 – Da violação dos arts. 9º, nº2, al.1) e 4º, nº2, al. 2), da Lei nº 4/2003.
O art. 4º, nº2, al. 2) dispõe que “Pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior”.
O art. 9º, nº2, al. 1), do mesmo diploma, por seu turno, preceitua que: “Para efeitos da concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se nomeadamente aos seguintes aspectos 1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4º da presente lei”.
São diplomas e preceitos aplicáveis “ex vi” art. 23º do Regulamento Administrativo nº 3/2005.
Pois bem.
No que às disposições transcritas diz respeito, é muito evidente que se inscrevem no âmbito da actividade administrativa discricionária da Administração.1
Sendo isto assim, dificilmente podemos ver um afrontamento a tais disposições legais, se a entidade competente podia realmente tomar a medida que tomou face ao quadro de facto detectado.
Situação, pois, que torna desse ponto de vista insindicável o acto, salvo nos casos de manifesto, ostensivo e grosseiro erro 2 ou naqueles em que tenham sido desrespeitados os aspectos vinculados que sempre seriam de observar, como é, por exemplo, o caso da fundamentação, do acerto nos pressupostos de facto, nas formalidades que importa observar face à lei (limites externos da discricionariedade) ou ainda nos de violação dos princípios gerais de direito administrativo plasmados no art. 3º e sgs. do CPA (limites internos da discricionariedade)3.
*
3 - No quadro do que se acaba de afirmar, importa então averiguar se se mostram violados os invocados princípios.
O primeiro foi o da participação, previsto no art. 10º do CPA.
Diz o preceito: “Os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respectiva audiência, nos termos deste Código”.
Cremos que este princípio foi alegado num quadro específico: o da não observância do direito de audiência, também ele suscitado pelo recorrente.
Sendo assim, porque ele não tem autonomia nesta situação particular, trataremos em conjunto desta matéria mais adiante.
*
4 - O outro princípio foi o da boa fé (art. 8º, do CPA).
Não especificou a recorrente em concreto em que consistiria a violação, bastando-se com a singela alegação de que a Administração não teve em conta a confissão, o arrependimento (no processo crime), com o que lhe nega a possibilidade de começar uma nova vida em Macau.
Todavia, não é por essa via que a boa fé se podia densificar. Esses aspectos relevam dum quadro de graduação da pena que lhe foi imposta no processo-crime e, no âmbito do procedimento administrativo, apenas poderia servir como factores a considerar na decisão de cancelar ou não cancelar a autorização de residência. Todavia, a não consideração desses elementos não significa que a boa fé tenha sido desrespeitada.
Na verdade, o princípio da boa fé plasmado no art. 8º do CPA significa que devem ser relevados os valores fundamentais do direito em cada caso concreto, em face da confiança suscitada na contraparte pela actuação da Administração (nº2, al. a)), ou em face do objectivo a alcançar com a actuação empreendida (al. b)).
Deste modo, a invocação da violação do princípio a boa fé só faz sentido ante uma atitude da Administração que fira a mui fundada expectativa que nela o particular depositou ao longo do tempo (garantindo a tutela da confiança), levando-o a crer que diferente decisão estaria para ser tomada4.
Nada disso está aqui em causa, porque a recorrente não invocou nenhuma atitude solidificada da Administração que a tivesse levado a confiar que iria ser outra a decisão administrativa5.
Improcede, pois, esta alegação.
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5 - Depois, invocou o vício da violação do princípio da legalidade (art.3º, do CPA).
Este princípio, como nos parece evidente, não pode servir de refúgio a toda a espécie de invocação invalidante. Quando a Administração desconsidera uma norma concreta ou a sua prática a que se tenha auto-vinculado, a pretensão anulatória não é procedente por se ter ofendido este princípio, mas sim porque se violou aquela norma ou esta regra auto-vinculativa.
Por isso se diz que este princípio é programático e representa o pano de fundo em que toda a actividade administrativa se há-de mover.
No caso concreto, veremos se a actuação administrativa aqui sindicada violou algum outro princípio ou cometeu alguma outra fonte de invalidade.
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6 - Também invocou a recorrente que o acto em apreço se mostra desrazoável.
Ora, não existe desrazoabilidade da actividade administrativa se nesta se descortinar em concreto a prossecução do interesse público e se for de considerar adequado o comportamento da Administração tendo em vista a realização daquele interesse. Neste plano, é de entender que os interesses privados podem ser sacrificados em função da importância do interesse público que se procura salvaguardar6.
É dentro deste pano de fundo que se afirma que “o papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro”7.
Quer dizer, se é certo que a fiscalização judicial à actividade administrativa só pode ser feita quando ela é manifestamente ofensiva dos limites internos da discricionariedade, então a intervenção do juiz na apreciação do respeito dos princípios gerais do direito administrativo, só deve ter lugar quando as decisões administrativas, de modo intolerável, os violem8.
Na situação “sub judice”, porém, tanto quanto nos podemos confrontar com os contornos do caso, não entrevemos nenhuma actuação manifestamente desrazoável, na medida em que a Administração agiu dentro dos limites dos poderes discricionários que a lei lhe depositou para cumprir o interesse público subjacente.
E esse erro manifesto e ostensivo não vislumbramos nós na situação em apreço, pelo que a respectiva alegação tem que improceder, necessariamente9.
*
6.1 – Com o que se acaba de dizer, respondemos à imputação do vício de “erro manifesto no exercício do poder discricionário”.
Não temos a certeza sobre se a recorrente quis autonomizar este “vício” ou se esta invocação faz parte do mesmo enquadramento da suscitada desrazoabilidade.
Se a intenção era tratar o problema pela óptica da desrazoabilidade, então ao tema já demos resposta no ponto anterior.
Se o pensamento da recorrente era imputar um erro (manifesto) haveria de ter alegado a que tipo de erro se referia: se ao erro sobre os pressupostos de facto ou ao erro na aplicação de direito.
Mas, ainda assim, somos a responder-lhe. Nem um nem outro vislumbramos. Como se disse, os factos criminais foram cometidos pela recorrente e eles, independentemente da sua gravidade, revelam, por outro lado, ter incumprido as leis da RAEM. Portanto, não se pode dizer que o pressuposto fáctico da aplicação da medida se não verificou.
Da mesma maneira, aqueles pressupostos fácticos eram suficientes para que a entidade administrativa pudesse servir-se das disposições legais que invocou (arts. 9º, nº2, al.1) e 4º, nº2, al. 2), da Lei nº 4/2003) para o acto administrativo praticado.
A verdade é esta: Os nºs 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, permitem que a Administração se socorra dos antecedentes criminais dos interessados para efeitos de (não) concessão de autorização de residência na RAEM. E além dos antecedentes criminais até prevê que seja tido em conta o incumprimento das leis da RAEM ou qualquer outra das circunstâncias referidas no art. 4º dessa lei.
Portanto, se os factos revelam uma conduta por parte da recorrente que foi tida por ilícita criminalmente (tanto, que foi condenada por ela), e se eles são concomitantemente interpretáveis como um “comprovado incumprimento das leis” da RAEM, então – repetimos – não vemos como se possa dizer que a Administração tenha cometido qualquer erro, muito menos um erro manifesto no uso dos seus poderes discricionários10.
Como o afirmou este TSI noutra ocasião: “Se a prossecução do interesse público terá estado na mira da decisão proferida e não se deixa de compreender a sua prevalência sobre interesses particulares, donde, se imbuída de imparcialidade, de racionalidade, de adequação, de proporção, configura-se como materialmente justa, compreendendo-se que as razões de segurança e estabilidade da sociedade podem levar a que não se autorize a trabalhar em Macau quem tenha sido condenado em pena privativa de liberdade”11.
Improcede, pois, a alegação deste vício.
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7 - Resta apurar do invocado vício de forma por falta de observância da audiência prévia e, portanto, também da falta da participação do interessado recorrente na decisão impugnada.
Já tudo foi dito e redito, tanto na doutrina, como na jurisprudência, sobre estas questões. Por comodidade, citamos apenas o Ac. do TUI, de 22/05/2013, Proc. nº 28/2013, onde foi afirmado que “(…) A audiência dos interessados é o momento por excelência da participação dos particulares no procedimento administrativo.
Por outro lado, a doutrina sublinha, justamente, que a audiência dos interessados antes de ser tomada a decisão final é um direito e não uma benesse da Administração, aliás, como resulta da própria letra da lei. O direito à audição não serve apenas à protecção jurídica subjectiva, mas visa também fins de formação de consenso, maior proximidade aos factos e aumento da aceitação das decisões. Trata-se pois de uma formalidade que se insere na tendência da moderna Administração para dialogar, buscar o consenso, enfim, realizar a justiça material”. Acrescenta ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA que “Na audição, o cidadão deve ter a possibilidade real de levar para o processo a sua visão das questões relevantes. O direito à audição constitui uma garantia de um procedimento transparente (protecção contra decisões-surpresa), de igualdade de oportunidades e de uma decisão que atende às circunstâncias do caso concreto. Estes objectivos fundamentais não são garantidos apenas através da audição, mas também através de outros mecanismos, como direito à orientação e ao aconselhamento, o direito à colaboração no esclarecimento dos factos, o direito à consulta do processo, o direito a ser informado ou o direito a uma clara e completa fundamentação da decisão final (…)”.
E o acórdão concluiu, pois, que “ No âmbito do exercício de poderes discricionários, a audiência do interessado, prevista no artigo 93.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, constitui formalidade essencial do procedimento administrativo, salvo nos casos previstos nos artigos 96.º e 97.º do Código do Procedimento Administrativo, por haver mais do que uma solução possível para o caso concreto, devendo por isso ser dada aos interessados a possibilidade de questionarem o mérito ou a legalidade da solução prefigurada pela Administração e de procurarem influenciar o conteúdo e sentido da decisão”.
É esta, efectivamente, a boa solução. E dela se colhe a clara noção de que, fora dos casos de inexistência ou de dispensa previstos nos arts. 96º e 97º do CPA, sempre haverá lugar àquela formalidade legal nas situações em que é discricionária a actividade administrativa12.
No caso em apreço, uma vez que ele não se revê em nenhuma das situações das disposições citadas, haveria que observar a formalidade.
Problema diferente é saber se a comunicação efectuada ao progenitor, tal como consignado no ponto 6 da matéria de facto, cumpriu a exigência legal e se a resposta aludida no ponto 7 concretizou o direito de audiência.
Ora bem. Se bem que a aqui recorrente disponha de legitimidade para o recurso contencioso13, enquanto lesada pela decisão administrativa, a verdade é que o procedimento administrativo foi desencadeado pelo pai e a ele foi deferido o pedido (da decisão beneficiaram os membros do agregado, de forma indirecta). Ou seja, o titular do direito é o progenitor, sendo certo, embora, que os restantes elementos do agregado beneficiariam da autorização (indirectamente) de residência em Macau enquanto se mantivesse o pressuposto da concessão inicial, isto é, enquanto o requerente se mantivesse na RAEM ao abrigo de renovações posteriores.
Ora, sendo assim, não obstante o requerente administrativo ter sido notificado para se pronunciar sobre a eventual decisão de cancelamento da autorização à filha num momento em que esta era já maior (a notificação ocorreu em 25/04/2014, tinha a recorrente, nascida em 2/10/1992, 21 anos), a verdade é que o notificando era o defensor dos seus direitos e interesses, como o era também dos direitos e interesses dos elementos do agregado.
Não parece, pois, que esta notificação tenha sido mal feita.
E se assim é, não cremos poder dizer que não foi cumprido o dever de cumprir a formalidade do art. 93º do CPA.
Ora, o progenitor – o titular do direito, repetimos – acabou por concretizar o direito, respondendo pela forma que se encontra a fls. 20 do p.a. e fls. 58-60 do apenso “traduções”, em termos que não diferem dos que no presente recurso foram utilizados, o que prova suficientemente que os direitos e interesses da filha foram bem acautelados ou defendidos.
Razão pela qual se não acha que deva proceder o recurso.
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V - Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso, mantendo o acto administrativo impugnado.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 4 UC.
TSI, 23 de Julho de 2015
Presente (Relator) Vítor Manuel Carvalho Coelho José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto) Tong Hio Fong

(Segundo Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong
1 Ver, por exemplo, o Ac. TUI, de 9/04/2014, Proc. nº 29/2014 ou de 15/10/2014, Proc. nº 103/2014.
2 Por exemplo, Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014; do TSI, de 24/07/2014, Proc. nº 558/2013
3 Cit. ac. TSI, de 24/07/2014.
4 Ac. TSI, de 31/03/2011, Proc. nº 693/2010 e de 5/06/2014, Proc. nº 625/2013.
5 Neste sentido, ver o cita. Ac. do TSI, de 5/06/2014.
6 Ac. TSI, de 5/06/2014, Proc. nº 158/2013
7 Ac. TUI, de 9/05/2012, Proc. nº 13/2012.
8 Ac. TUI, de 9/05/2012, Proc. nº 13/2012; Ac. TSI, de 5/06/2014, Proc. nº 625/2013.
9 Ainda, Ac. TSI, de 29/01/2015, Proc. nº 619/2013
10 Ac. TUI, de 28/05/2015, Proc. nº 123/2014
11 Ac. TSI, de 5/06/2014, Proc. nº 158/2013
12 Diferente é o caso quando é vinculada essa actividade e o tribunal chega à conclusão de que outra, que não a tomada, não podia ser a decisão administrativa (v.g, Ac. TUI, de 25/07/2012, Processos nºs 48/2012 e 50/2012; do TSI, de 24/04/2014, Proc. nº 515/2012, entre tantos outros).
13 Assim o decidiu já o Ac. de TSI, de 29/11/2912, Proc nº 848/2012/A
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559/2014 25