Processo nº 642/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 7/Maio/2015
Assuntos: Inventário
Princípio da cooperação
Dever de segredo
SUMÁRIO
- Ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 8º do Código de Processo Civil, compete ao Tribunal providenciar pela remoção de obstáculos, sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual.
- Por outro lado, de acordo com o artigo 78º do Decreto-Lei nº 32/93/M (Regime Jurídico do Sistema Financeiro), as instituições bancárias estão vinculadas ao segredo profissional, não podendo, salvo estipulação legal em contrário, revelar ou utilizar, em proveito próprio ou alheio, as informações sobre factos cujo conhecimento lhes tenha advindo do exercício das suas funções, nomeadamente, os nome e outros dados relativos a clientes, contas de depósito e seus movimentos, aplicações de fundos e outras operações bancárias.
- Entretanto, o tal direito ao sigilo não é absoluto e deve ceder perante o direito assegurado pelo Estado de acesso à justiça em função da contingência do caso concreto.
- Provado que, numa acção especial de inventário, tendo a cabeça-de-casal relacionado duas verbas do passivo de valor muito elevado, os interessados na partilha dos bens do inventariado têm legitimidade e interesse em pedir que as instituições bancárias juntem aos autos cópias dos extractos bancários de todas as suas contas relativamente a determinado período, não lhes podendo ser oposto o respectivo sigilo bancário.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 642/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 7/Maio/2015
Recorrente:
- A (cabeça-de-casal)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Correm no Tribunal Judicial de Base uns autos de processo especial de inventário facultativo por óbito de B, em que são requerentes C, D e E, cabeça-de-casal A ora recorrente e outros interessados F, G e H.
Por despacho de 11.3.2014, foi deferido o pedido formulado pelos requerentes, no sentido de se oficiar a todas as instituições bancárias para virem aos autos juntar cópias dos extractos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu entre 9.3.2008 a 21.8.2012, ao abrigo do disposto no artigo 443º do Código de Processo Civil.
Inconformada com a decisão, dela interpôs a cabeça-de-casal recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem por objecto a ordem do Tribunal a quo para que se oficie todas as instituições bancárias para virem aos autos juntar cópias dos extratos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu entre 09/03/2008 a 21/08/2012.
B. A Meritíssima Juíza a quo motivou o despacho da forma seguinte: “Considera-se que as diligências probatórias aludidas no ponto 4) são ordenadas ao abrigo do disposto no Art. 443º do CPC e mostram-se essenciais para que o Tribunal possa tomar posição quanto à reclamação das duas verbas do passivo, pelo que, salvo melhor juízo, não procede o argumento da cabeça de casal de que não autoriza o levantamento do sigilo bancário a que estão sujeitos tais dados bancários.”
C. Mas a intenção do requerimento não é apurar a situação patrimonial de alguma das partes, mas sim fazer a devassa dos últimos anos de vida do Inventariado e como não, da cabeça de casal.
D. Note-se que o que foi requerido, e deferido, não foi se os pagamentos feitos, nas datas mencionadas nos recibos, foram ou não pagos com o saldo de alguma das contas do inventariado, ou mesmo os pagamentos efectuados ao Hospital Kiang Wu com o produto desses saldos.
E. Não, o que foi requerido e deferido foi cópias dos extratos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu entre 09/03/2008 a 21/08/2012.
F. Informação que por tão extensa vai tornar impossível ao Tribunal apurar o que quer que seja.
G. Mais, quando algumas das contas tituladas pelo Inventariado são contas conjuntas com a cabeça de casal onde ela deposita o seu dinheiro e faz dessas contas pagamentos.
H. O Art. 80º do RJSF diz-nos que: “A dispensa do dever de segredo sobre factos ou elementos das relações do cliente com a instituição apenas pode ser concedida por autorização do próprio cliente ou por mandato judicial nos termos previstos na lei penal ou processual penal.”
I. Ou seja, através de mandado judicial só é possível o levantamento do sigilo bancário em processo penal. A disposição legal constante do Art. 79º do RJSF é imperativa e o despacho em crise violou o Art. 80º do RJSF e influiu no exame e na decisão da causa, porquanto os documentos juntos pelas instituições bancárias destinatárias daquele despacho o foram na convicção de a isso estarem obrigadas, por pensarem tratar-se de um mandado legítimo emitido em processo penal.
J. Sendo que, fora do quadro da autorização expressa do cliente, a revelação dos elementos cobertos pelo segredo depende da existência de outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo. Além do mais, o dever de segredo bancário previsto no Art. 78º do RJSF constitui uns dos corolários do “direito (de personalidade) à reserva sobre a intimidade da vida privada” previsto no Art. 30º da Lei de Bases da RAEM e Art. 74º do Código Civil.
K. Trata-se de informação bancária que, para além de ser impossível poder responder à questão de se saber se as despesas médicas foram ou não pagas pela cabeça de casal, implica intromissão na vida privada e violação do segredo profissional que, nos termos do Art. 442º, n.º 3 do CPC justificariam pedido de escusa e cessação do dever de cooperação do Banco em causa. O que os bancos não viriam a fazer, aceitando o ofício do tribunal como uma ordem legítima a eles dirigida.
L. Isto é o levantamento do sigilo bancário no que se refere àquelas despesas foi e sempre seria inidóneo para apurar se foi a cabeça de casal que as pagou ou não.
M. Nos termos do disposto no Art. 147º do CPC, a prática de um acto que a lei não admita produz a sua nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
N. O Tribunal a quo violou o Arts. 147º. 442º, n.º 3, 443º do CPC, Art. 78º, 79º e 80º do RJSF, Art. 30º da Lei de Bases da RAEM e Art. 74º do CC.
Conclui, pedindo a revogação da decisão recorrida, no sentido de indeferimento da diligência requerida.
*
Devidamente notificados, responderam ao recurso os requerentes C, D e E, ora interessados no inventário, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
I. Veio a Recorrente interpor o recurso do douto despacho de fls. 412 a 413 que ordenou que se oficiasse a AMM para que prestasse as informações bancárias solicitadas no ponto xiii) do requerimento dos ora Recorridos de fls. 329 a 345, ou seja, e passamos a transcrever; “Ordenar a notificação, por ofício, de todas as instituições bancárias para virem aos autos juntar cópias dos extractos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu entre 09/03/2008 e 21/08/2012 uma vez que os mesmos dizem respeito ao período em que o Inventariado era ainda vivo e a viver conjuntamente com a Cabeça de Casal em comunhão de mesa e habitação e com os filhos comuns de ambos (Março de 2008 a 22 de Novembro de 2009 e de 23 de Novembro de 2009 – data do casamento – a 21 de Agosto de 2012) e ao facto de a Cabeça de Casal vir agora, depois da sua morte, reclamar tais montantes e (…)”.
II. O despacho recorrido refere: “Confirme-se que as diligências probatórias aludidas no ponto 4) são ordenadas ao abrigo do disposto no artigo 443º do CPC e mostram-se essenciais para que o Tribunal possa tomar posição quanto à relacionação das duas verbas do passivo, pelo que, salvo melhor juízo, não procede o argumento da cabeça-de-casal de que não autoriza o levantamento do sigilo bancário a que estão sujeitos tais dados bancários. (…)”
III. A Recorrente assaca ao despacho em recurso os seguintes vícios (i) as informações solicitadas constituem um meio de prova que representa uma intromissão ilícita na vida privada da Recorrente, (ii) o meio de prova é inútil, (iii) houve violação das regras relativas ao sigilo bancário, concluído que, consequentemente, o despacho viola o disposto nos artigos 147º, 442º, n.º 3, 443º do CPC, art. 78º, 79º e 80º do RJSF, art. 30º da Lei de Bases da RAEM e art. 74º do CC.
IV. Não é intenção dos ora Recorridos escrutinar a vida privada do seu falecido pai e da sua esposa nos últimos quatro anos – em relação à qual, sempre se diga, nada poderiam fazer – mas tão só comprovar a veracidade e existência daquela Verba II do passivo.
V. Na qualidade de herdeiros do deu falecido pai, os ora Recorridos nem sequer podem ser considerados de terceiros em relação às contas bancárias que pertenciam ao Inventariado, cabendo-lhe total legitimidade para requerer aquilo que requereram e nos exactos termos em que o fizeram, não havendo nada de ilegítimo no seu pedido e consequentemente no douto despacho que o deferiu.
VI. Foi ao abrigo das supra citados artigos do CPC – 6º, n.º 3, 106º, n.º 1º e 8º, n.º 4 – que o douto tribunal a quo proferiu o despacho ora em recurso, e fê-lo justificando que considerava que tais elementos eram “essenciais para que o Tribunal possa tomar posição quanto à relacionação das duas verbas do passivo”.
VII. O juízo da utilidade-inutilidade do mesmo cabe na inteira discricionariedade do Tribunal que terá que valorar e realizar uma análise crítica da prova, conforme lhe impõe o disposto no artigo 556º e 558º do CPC.
VIII. Ademais, atendendo ao elevado valor das despesas médicas apresentadas, caso as mesmas tenham eventualmente pagas através das contas bancárias do Inventariado certamente serão notadas.
IX. O Código de Processo Civil de Macau estabelece várias normas que atribuem ao tribunal poderes especiais no âmbito da obtenção de prova, nomeadamente o art.º 443º do CPC, sob a epígrafe de Dispensa da Confidencialidade, ao abrigo do qual foi proferido o despacho sob recurso.
X. Este preceito é claro em atribuir ao juiz o poder de oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, determinar a prestação de informações essenciais para o regular andamento do processo ou para a justa composição do litígio, e foi o que fez o Tribunal a quo, solicitando o levantamento do sigilo bancário na convicção de que tal levantamento irá contribuir para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio.
XI. Os ofícios a enviar para as instituições bancárias solicitando informações semelhantes àquelas em causa nos presentes autos, identificam devidamente o Tribunal de onde emanam, bem assim como o número de processo, sendo por isso perfeitamente possível aos bancos descortinarem a natureza do processo no âmbito do qual são solicitadas.
XII. Da letra do art.º 80º do RJSF não decorre a conclusão de que apenas em processo penal será possível aos tribunais conceder a dispensa do dever de segredo que impende sobre as instituições financeiras, todos os dias os Tribunais Cíveis oficiam a AMM para que preste informações sujeitas a sigilo bancário e fazem-no âmbito de processos de execução, de providências cautelares de arresto/arrolamento, de falências, etc., etc.?!
XIII. O que antes resulta da referida norma é que os requisitos e termos em que tal dispensa do dever de segredo poderá ser levantada (nomeadamente perante a recusa da entidade bancária em prestar as informações) se processa nos mesmos termos previstos na lei penal ou processual penal.
XIV. Efectivamente, pese embora a Recorrente tenha alegado que “(…) o despacho em crise violou o Art. 80º do RJSF e influiu no exame e na decisão da causa, porquanto os documentos juntos pelas instituições bancárias destinatárias daquele despacho o foram na convicção de a isso estarem obrigadas, por pensarem tratar-se de um mandado legítimo emitido em processo penal”, o certo é que as instituições ainda não tiveram oportunidade para se manifestar, deve estar confusa a Recorrente.
XV. A obtenção das informações bancárias em causa no despacho recorrido, serão carreadas para o processo em total concordância com o disposto no artigo 435º do CPC, ou seja, seriam voluntariamente facultadas pelas instituições bancárias, na sequência de um mandato judicial.
XVI. Tratando-se de matéria sujeita a segredo, só a entidade a ele sujeita poderia ter legitimidade para arguir a incapacidade para prestar a referida informação.
XVII. Em antecipação, o que é de boa prática processual quando é sabido que a diligência pode, por constituir matéria sujeita a segredo, o Tribunal delimitou a diligência na parte essencial para a descoberta da verdade e boa decisão de causa.
XVII. Em antecipação, o que é de boa prática processual quando é sabido que a diligência pode, por constituir matéria sujeita a segredo, o Tribunal delimitou a diligência na parte essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
XVIII. Não existe devassa da vida privada uma vez que todas as contas bancárias de que o Inventariado era titular estão incluídas no acervo hereditário e que, por isso mesmo, o sigilo bancário não pode ser oposto aos herdeiros do Inventariado, porquanto estes não são terceiros em relação às mesmas contas – vide neste sentido, entre outros, o Acórdão proferido no processo n.º 085812 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal.
XIX. O Meritíssimo Juiz a quo não violou os art.ºs 147º, 442º, n.º 3, 443º todos do Código de Processo Civil (CPC), nem os art.ºs 78º, 79º e 80º do RJSF, nem o art.º 30º da Lei Básica (a Recorrente, talvez por mero lapso, refere a Lei de Bases da RAEM) e, nem o art.º 74º do Código Civil.
Conclui, pugnando pela negação de provimento ao recurso interposto e confirmação do despacho recorrido na íntegra.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Provada está a seguinte matéria de facto relevante para a decisão da causa:
Corre termos no Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base o processo de inventário facultativo registado sob o nº CV1-13-0016-CIV, em que é inventariado B que também usava o nome ..., e cabeça-de-casal A, sua viúva.
O inventariado faleceu em Macau, no dia 21 de Agosto de 2012.
Para além da cabeça-de-casal, o inventariado deixou ainda 6 filhos, a saber, C, D e E, nascidos do primeiro casamento, e F, G e H, frutos do segundo casamento.
A cabeça-de-casal apresentou em 3.6.2013 uma relação de bens, nela constam, entre outras, as seguintes verbas do passivo:
“Verba primeira
As despesas do funeral (Doc. 3 a 17), no montante de MOP$1.997.980,00.
Verba segunda
As despesas médicas (Doc. 18 a 239), no montante de MOP$9.293.653,00”
A 10.7.2013, os requerentes reclamaram da relação de bens, alegando, ao contrário do que foi declarado pela cabeça-de-casal, que as despesas do funeral foram pagas pela “Companhia de Serviços de Segurança e Administração I, Limitada”, enquanto que as despesas médicas teriam sido pagas pelo próprio inventariado ou através de qualquer conta bancária em nome do mesmo, pelo que pediram que as duas verbas fossem retiradas do passivo da relação de bens.
Mais pediram os requerentes ao Tribunal que ordenasse notificar todas as instituições bancárias para virem aos autos juntar cópia dos extractos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu de 9.3.2008 a 21.8.2012, uma vez que as despesas invocadas pela cabeça-de-casal reportam-se ao período em que o inventariado era ainda vivo e a viver conjuntamente com a cabeça-de-casal em comunhão de mesa e habitação e com os filhos comuns de ambos (Março de 2008 a 22 de Novembro de 2009 e de 23 de Novembro de 2009 – data do casamento – a 21 de Agosto de 2012) e ao facto de a cabeça-de-casal vir agora, depois da sua morte, reclamar tais montantes.
Notificada, a cabeça-de-casal opôs-se ao pedido dos requerentes.
Posteriormente, o Tribunal a quo deu o seguinte despacho:
“4) Reclamação da relação de bens:
Por ora, oficie à A.M.M. para que preste as informações bancárias solicitadas nos pontos ix) e xiii) do requerimento em epígrafe.
…
Consigna-se que as diligências probatórias aludidas no ponto 4) são ordenadas ao abrigo do disposto no artigo 443º do CPC e mostram-se essenciais para que o Tribunal possa tomar posição quanto à relacionação das duas verbas do passivo, pelo que salvo melhor juízo, não procede o argumento da cabeça-de-casal de que não autoriza o levantamento do sigilo bancário a que estão sujeitos tais dados bancários.
De todo o modo, para permitir que a cabeça-de-casal possa sindicar a decisão do Tribunal determino que o presente despacho seja notificado à mesma e aos restantes interessados e que o seu cumprimento aguarde o respectivo trânsito em julgado.”
*
Esta é a decisão recorrida.
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A questão que se coloca no presente recurso é saber se a decisão que determinou oficiar a todas as instituições bancárias para virem aos autos juntar cópias dos extractos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu entre 9.3.2008 a 21.8.2012, merece algum reparo.
Alega a recorrente que a intenção dos requerentes ao formular o pedido não é apurar a situação patrimonial mas sim fazer a devassa dos últimos anos de vida do seu falecido pai ora inventariado e da sua mulher, daí que a informação bancária solicitada implicaria intromissão na vida privada tanto do inventariado como da sua mulher.
Em segundo lugar, defende a recorrente que a tal informação bancária não permitiria responder à questão de saber se aquelas despesas médicas foram ou não pagas pelo inventariado ou pela cabeça-de-casal, por entender que aquilo que foi requerido não foi se os pagamentos feitos, nas datas mencionadas nos recibos, foram ou não pagos com o saldo de alguma das contas do inventariado, ou mesmo os pagamentos efectuados ao Hospital Kiang Wu com o produto desses saldos, mas sim cópias dos extractos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu entre 9.3.2008 e 21.8.2012, portanto tal diligência não deixaria de ser um meio inidóneo ou inútil.
Mais argumenta que só através de mandado judicial em processo penal é que se pode proceder ao levantamento do sigilo bancário, sendo que, no seu entender, a revelação dos elementos cobertos pelo segredo dependeria da existência de outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
E, na falta de fundamento que permita a quebra do sigilo bancário, a revelação desses elementos implicaria a violação do segredo profissional previsto nos termos dos artigos 78º a 80º do Decreto-Lei nº 32/93/M, e que justificariam o pedido de escusa e cessação do dever de cooperação do Banco conforme os termos do artigo 442º, nº 3 do CPC, bem como constituiria violação dos artigos 30º da Lei Básica e 74º do Código Civil.
Vejamos.
Salvo o devido respeito, entendemos que nenhuma razão assiste à recorrente.
Ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 8º do Código de Processo Civil, compete ao Tribunal providenciar pela remoção de obstáculos, sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual.
Trata-se de umas das manifestações do princípio da cooperação, mais precisamente, do dever que o Tribunal tem de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento de ónus ou deveres processuais, com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
Como se decidiu no Acórdão deste TSI, no Processo nº 632/2011, “o farol do tribunal não deve ser a verdade formal, a verdade adquirida no processo segundo as regras mais apertadas do ónus de prova, mas deve ser a verdade material, tanto quanto o princípio do inquisitório lhe permite uma actuação de facere comandada pelo art. 6º, nº 3 e densificada, entre outros, no art. 462º, ambos do CPC. Deve, portanto, nortear-se pela verdade material e, nesse sentido, tudo fazer para que a justiça se faça e se realize a composição do litígio.”
Ora bem, diz a recorrente que a intenção dos requerentes ao formular o pedido era devassar os últimos anos de vida do seu falecido pai ora inventariado e a vida da sua mulher, e não apurar a situação patrimonial de algumas das partes.
Salvo melhor opinião, não se vislumbra ser essa a intenção dos requerentes.
De facto, podemos verificar que a cabeça-de-casal ora recorrente relacionou duas verbas do passivo, uma no valor de MOP$1.997.980,00 a título de despesas do funeral e outra no montante de MOP$9.293.653,00 a título de despesas médicas, e ambas foram impugnadas pelos requerentes.
Em nossa opinião, como sendo os requerentes interessados na partilha dos bens deixados pelo inventariado, têm interesse legítimo em pedir a recolha de elementos de prova destinados a provar ou denegar a existência do referido passivo.
Aliás, também devemos ter presente que as despesas reclamadas pela cabeça-de-casal em montante superior a 10 milhões de patacas foram efectuadas ao longo de quatro anos (2008 a 2012), e que, no fundo, as cópias dos extractos bancários solicitados pelos requerentes correspondem exactamente ao mesmo período de tempo (9.3.2008 a 21.8.2012), isto é, ao período em que o inventariado ainda era vivo e que vivia com a cabeça-de-casal em comunhão de mesa, leito e habitação.
Tudo isto para apontar que a diligência ordenada pelo Tribunal recorrido se reputa essencial para a descoberta da verdade, além do mais não se verifica a alegada intenção malévola por parte dos requerentes de devassar a vida privada do inventariado ou da sua mulher, pelo que improcede este fundamento da recorrente.
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Em segundo lugar, defende a recorrente que a diligência de recolha de informações bancárias não permitia saber se aquelas despesas médicas foram ou não pagas pelo inventariado ou pela cabeça-de-casal, isto é, entende que aquilo que foi requerido não chega para provar se os pagamentos feitos, nas datas mencionadas nos recibos, foram ou não pagos com o saldo de alguma das contas do inventariado, trata-se, antes, de meras cópias dos extractos bancários de todas as contas em nome do inventariado no período que decorreu entre 9.3.2008 e 21.8.2012, suscitando, portanto, que a diligência era um meio inidóneo ou inútil.
A nosso ver, julgamos que a informação solicitada junto das instituições bancárias tem relevância para a prova dos factos, e não podemos deixar de afirmar que cabe sempre ao Tribunal valorar todos os meios de prova existentes nos autos, e apreciar, segundo a sua livre convicção, a matéria de facto que se encontra controvertida.
De facto, o que acontece no presente caso é que as despesas do funeral e as despesas médicas apresentadas pela cabeça-de-casal atingem valores muito elevados, e para saber se essas mesmas despesas foram pagas pela cabeça-de-casal, ou pagas através das contas bancárias do inventariado, ou com o dinheiro levantado dessas mesmas contas, crê-se que as cópias dos extractos bancários das contas do inventariado reportadas ao período que decorreu entre 9.3.2008 e 21.8.2012 possam vir a dar apoio preponderante à resolução da controvérsia surgida entre os próprios interessados na partilha.
Sendo assim, improcede este argumento da recorrente.
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Mais argumenta a recorrente que só através de mandado judicial em processo penal é que se pode proceder ao levantamento do sigilo bancário, sendo que, no seu entender, a revelação dos elementos cobertos pelo segredo dependeria da existência de outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo, e não a havendo, tal implicaria a violação do disposto nos artigos 78º a 80º do Decreto-Lei nº 32/93/M, e os artigos 30º da Lei Básica e 74º do Código Civil.
Ora bem, como acima se referiu, o Tribunal tem o dever de, em caso de necessidade, dar auxílio às partes processuais, com vista à descoberta da verdade material.
No âmbito do processo civil, o legislador admite quaisquer meios de prova desde que não sejam obtidas mediante ofensa da integridade física ou moral das pessoas ou intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nos outros meios de comunicação (artigo 435º do CPC).
Sendo assim, todas as pessoas, quer sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhe for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados (artigo 442º, nº 1 do CPC).
Por outro lado, também não deixa de ser verdade que as instituições bancárias estão vinculadas ao segredo profissional, não podendo, salvo estipulação legal em contrário, revelar ou utilizar, em proveito próprio ou alheio, as informações sobre factos cujo conhecimento lhes tenha advindo do exercício das suas funções, nomeadamente, os nome e outros dados relativos a clientes, contas de depósito e seus movimentos, aplicações de fundos e outras operações bancárias (artigo 78º do Decreto-Lei nº 32/93/M).
Refere o Acórdão do TRL, no Processo 1208/09.9YRLSB-6, de 30.6.2009, in dgsi, citado para efeitos de direito comparado, que o segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses:
“Por um lado, um interesse de ordem pública, atinente ao regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos.
Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário (excepto, a nosso ver, quando relativo a pessoas colectivas) se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26º nº 1, da Constituição da República Portuguesa.”
Perante um conflito de interesses, digamos, o interesse de guardar segredo bancário, por um lado, e o interesse na realização da justiça, por outro, qual deles deverá prevalecer?
Em boa verdade, não obstante o direito à reserva da intimidade da vida privada ter consagração na Lei Básica (artigo 30º), também não podemos perder de vista que essa Lei assegura igualmente aos residentes o acesso ao Direito e à Justiça (artigo 36º).
Segundo o Acórdão deste TSI, proferido no âmbito do Processo 632/2011, “o direito ao sigilo não é absoluto e deve ceder perante o direito assegurado pelo Estado de acesso à justiça em função da contingência do caso concreto”.
Também observa Lopes do Rego que “é manifesto que o tribunal superior ao realizar o juízo que ditará o interesse que, em concreto, irá prevalecer, carece de actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “maxime” o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão. (….); assim, por exemplo, poderá configurar-se como perfeitamente adequado que, numa acção que verse sobre direitos fundamentais, ou que contenda, em termos decisivos, com a sobrevivência económica da parte, o tribunal decida quebrar o sigilo bancário; pelo contrário, tal dispensa poderá não se configurar já como adequada e proporcional, v. g., quando se trate de vulgar acção de cobrança de dívida comercial, de valor pouco relevante para a empresa credora”1.
No vertente caso, não temos dúvidas de que os requerentes são interessados na partilha dos bens deixados pelo seu pai ora inventariado, e uma vez que pela cabeça-de-casal foi apresentada uma relação do passivo de valor muito elevado, aqueles têm todo o interesse em pedir a verificação da veracidade daquelas despesas declaradas, sob pena de, se não for deferida a diligência requerida, serem lesados os seus interesses legítimos.
De facto, há várias decisões portuguesas que seguem o mesmo entendimento.
A título exemplificativo, citamos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.3.2000, in Sumários, 39º-20, em termos de direito comparado, que decidiu o seguinte:
“…
III – Coloca-se assim o problema de saber quais as disposições legais que limitam o dever de segredo e até que ponto as mesmas podem conflituar com os princípios constitucionais, defendendo o Tribunal Constitucional que a questão do sigilo bancário tem uma dimensão de defesa da intimidade da vida privada.
IV – Cumpre determinar quais as pessoas que estão na “esfera de discrição”, quais são aqueles que, em virtude de necessidades práticas e de acordo com os princípios gerais do direito, estão associados à gestão de contas bancárias, não podendo em relação a eles ser oposto o segredo bancário.
V – Os herdeiros do titular ou co-titular de uma conta bancária entram nessa “esfera de discrição”, pois ao ocuparem o lugar do falecido no que respeita aos direitos que lhe advinham de tal titularidade, passam eles próprios a ser beneficiários do segredo bancário, que é instituído, em primeira linha, a favor do cliente.
VI – As informações sobre os movimentos operados nas contas de que era titular ou co-titular o falecido são essenciais para apurar qual o conjunto de relações jurídicas patrimoniais que constituem a herança; a não serem prestadas, haverá lesão de interesses legítimos dos herdeiros e eventuais credores da herança.
VII – Não se pode arvorar como regra geral que os interesses patrimoniais não podem nunca limitar o sigilo bancário.”
Também houve um outro Acórdão da Relação de Lisboa, de 5.3.2002, in Col.Jur. 2002, 2º-71, que lidou com semelhante questão, nos seguintes termos:
“Em partilha judicial dos bens do casal, o ex-marido tem direito à reserva da sua vida privada, em não ver devassadas as suas contas bancárias. A ex-mulher tem direito a conhecer os bens do casal, na sua globalidade para serem partilhados. Reconhecendo o Estado este direito, o dever de sigilo deve ceder a favor deste, permitindo ao Tribunal actuar ao administrar a justiça. Tudo porque estando em causa dois valores, deve prevalecer aquele que tem em vista a salvaguarda do interesse geral, em detrimento do meramente particular, mesmo que estejam, também consagrados constitucionalmente.”
Para finalizar, entendemos que a intenção do legislador ao instituir o regime de segredo bancário (artigos 78º a 81º do Decreto-Lei nº 32/93/M) não é impor que o dever de sigilo bancário se sobreponha ao dever de cooperação com a justiça, antes pretende preconizar um regime de protecção do segredo bancário menos forte, por exemplo, por força do disposto no nº 4 do artigo 442º do CPC, pretende afastar a invocação de excessivos sigilos profissionais, remetendo para as regras do processo penal a verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado, no fundo, é deixar o Tribunal cumprir a sua tarefa de apreciar as razões de escusa invocadas pelas respectivas instituições bancárias.
Aqui chegados, somos a entender que a diligência deferida pelo Tribunal a quo é essencial para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa, daí que o sigilo bancário não pode ser oposto aos requerentes, assim, improcedem as razões aduzidas pela recorrente.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente A, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, a 7 de Maio de 2015
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João Gil de Oliveira
1 Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, página 457 e 458
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Processo 642/2014 Página 25