Processo nº 584/2014
(Revisão de Sentença do Exterior)
Data: 23/Julho/2015
Assuntos:
- Revisão de Sentença do Exterior
SUMÁRIO :
É de confirmar uma sentença homologatória de conciliação civil, proferida pelos Tribunais do Interior da China, relativa a um divórcio por mútuo consentimento, desde que se mostre a autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda, desde que transitada, não se tratando de matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau e não se vendo em que tal confirmação possa ofender os princípios de ordem pública interna, tendo sido acautelada a regulação do poder paternal da filha menor do casal e paga uma compensação à esposa.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 584/2014
(Revisão de Decisão do Exterior de Macau)
Data : 23/Julho/2015
Requerente : A
Requerida ; B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
A (XXXX XXXX XXXX), mais bem identificado nos autos,
Vem propor contra
B, que romaniza em cantonense B, divorciada, de nacionalidade chinesa, também ela aí mais bem identificada,
ACÇÃO ESPECIAL DE REVISÃO DE DECISÃO DO EXTERIOR DE MACAU, nos termos e com os fundamentos seguintes :
1. Pela sentença cível n.º 737 de 2006 de 13.06.2006 do Tribunal Civil de Primeira Instância de Hanjiang, foi homologado o acordo de mediação para divórcio de Requerente e Requerida e, assim, declarado dissolvido o casamento dos mesmos celebrado em 10.01.2005 na República Popular da China (Doc.s n.os 1 e 2, que aqui se juntam e se têm por integralmente reproduzidos).
2. Pela mesma sentença foi homologado o acordo das partes sobre a regulação do poder paternal sobre sua filha menor C, nascida em 30.09.2005 havendo a sua guarda e custódia ficado entregue ao Requerente, que assumiu integralmente a prestação de alimentos devidos à mesma, podendo a Requerida visitar a menor sempre que o pretenda (v. Doec. n.º 1).
3. A referida sentença transitou de imediato em julgado, produzindo efeitos desde a data da sua prolação.
4. O Requerente pretende a revisão para que a referida sentença produza efeitos em Macau.
5. Não há dúvidas sobre a autenticidade do documento de que consta a decisão.
6. A decisão é inteligível, pois os seus fundamentos justificam racionalmente a referida decisão.
7. É final e definitiva, como na mesma declarado, produzindo todos os seus efeitos desde a data da sua prolação,
8. Está, portanto, transitada em julgado, por ser insusceptível de recurso ordinário.
9. A competência do tribunal de onde provém também não foi em fraude à lei, pois a autora reside na Cidade de Putian, na Província de Fujian, República Popular da China, e o casamento foi aí celebrado.
10. A decisão não recai sobre matéria da competência exclusiva dos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, pois não é relativa a direitos reais sobre imóveis situados em Macau, nem se destinou a declarar a falência ou insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontra em Macau.
11. Assim, face às normas de conflitos de jurisdição em vigor em Macau, às quais se recorre "prima facie", para verificar da competência do tribunal do exterior, é o mesmo tribunal competente.
12. Não podem ser invocadas excepções de litispendência ou caso julgado, pois nunca foi proposta acção com o mesmo objecto em tribunal da Região Administrativa Especial de Macau.
13. Requerente e Requerida estiveram presentes em pessoa perante o tribunal que obteve o seu acordo para o divórcio por mediação e homologou o mesmo por sentença, por se mostrar conforme às leis relevantes aplicáveis.
14. A decisão do exterior não implica ou conduz a resultado incompatível com os princípios da ordem pública em vigor na jurisdição de Macau.
Nestes termos,
Deve a sentença cível n.º 737 de 2006 de 13.06.2006 do Tribunal Civil de Primeira Instância de Hanjiang, ser revista e confirmada.
Foi oportunamente citada a requerida que não deduziu qualquer oposição.
O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.
Foram colhidos os vistos legais.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
III - FACTOS
Vem certificado nos autos a decisão do Tribunal Popular da cidade de Putian, Distrito de Hanjiang, Província de Fujian, da República Popular da China que homologou a conciliação relativa ao divórcio do requerente e requerida nos seguintes termos:
“ESCRITURA PÚBLICA
Secretaria Notarial de Sanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian da República Popular da China
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(Carimbo: Tribunal Popular do Distrito de Hanjiang da Cidade de Putian – Divisão de Arquivo)
A presente cópia está conforme o original.
Tribunal Popular do Distrito de Hanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian
Termo de Conciliação Cível
N.º XXX da Série " Han Min Chu (2006)"
A autora, B, do sexo feminino, nascida em 15 de Setembro de 1982, da etnia Han, residente do Distrito de Hanjiang, residente em n.º XXXXXX, Distrito de Hanjiang, Cidade de Putian.
O réu, A, do sexo masculino, nascido em 01 de Outubro de 1974, da etnia Han, residente da RAEM, morado no XX Andar XX, Edf. XXXX, na XXXX, Macau.
Motivo de caso: Divórcio
A autora, B, e o réu, A, conheceram-se através da apresentação de outra pessoa, e efectuaram o registo de casamento em 10 de Janeiro de 2005, seguidamente, ela deu à luz a uma filha, C em 30 de Setembro de 2005. Após o casamento, o amor conjugal entre a autora e o réu tinha sido abatido por incompatibilidade de génios e falta de linguagem comum na vida. No dia 13 de Junho de 2006, pela autora foi deduzida junto a este tribunal a acção de divórcio com o réu. Através da conciliação presidida pelo mesmo tribunal, as duas partes chegaram voluntariamente o seguinte acordo:
1. A autora, B, e o réu, A, divorciam por mútuo consentimento.
2. A filha legítima, C, será criada e alimentada pelo réu, A. A pensão alimentícia da filha fica a cargo do réu próprio, A, e a autora, B, pode visitar em qualquer momento.
3. O réu, A, efectua uma compensação económica, de uma só vez, à autora, B, no valor de RMB$ 50.000,00, devendo ser paga integralmente antes de 1 de Setembro de 2006.
4. No período da existência de relação conjugal, a autora, B, e o réu, A, não tinham crédito e dívida comuns. No período da existência de relação conjugal, o crédito e a dívida do exterior contraídos pela autora ou pelo réu devem ser suportados respectivamente pelos mesmos.
5. A taxa de admissão do presente caso, no valor de RMB$ 550,00, fica a cargo da autora, B.
O acordo acima referido está conforme os dispostos da lei, este tribunal homologa o acordo supracitado.
O presente termo de conciliação, depois de ter sido assinado pelas duas partes, produz imediatamente a eficácia jurídica.
A presente cópia está conforme o original.
Juiz: XXX
13 de Junho de 2006
Escrivão: XXX
(Carimbo: Tribunal Popular do Distrito de Hanjiang da Cidade de Putian)
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ESCRITURA PÚBLICA
N.º XXX da Série " Min Pu San Zheng Min (2014)"
Requerente: A, do sexo masculino, nascido em 1 de Outubro de 1974, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(X), residente actualmente em Macau.
Tema de Notariado: Termo de Conciliação Cível
Certifico, por este meio, que o original do Termo de Conciliação Cível emanado em 13 de Junho de 2006 pelo Tribunal Popular do Distrito de Hanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian, está conforme a fotocópia anterior, sendo o original autêntico.
Secretaria Notarial de Sanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian da República Popular da China.
O Notário: XXX (vide o original).
(Carimbo) - Secretaria Notarial de Sanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian.
Aos 9 de Maio de 2014.
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ESCRITURA PÚBLICA
Secretaria Notarial de Sanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian da República Popular da China
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Tribunal Popular do Distrito de Hanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian
Certificado n.º XXXX
N.º XXXX da Série " Han Min Chu (2006)"
A sentença cível (conciliação) n.º 737 da Série " Han Min Chu (2006)", proferida por este Tribunal, relativa à acção de divórcio interposta pela B contra o A, tem entrado em vigor no dia 13 de Junho de 2006.
(Carimbo) Tribunal Popular do Distrito de Hanjiang da Cidade de Putian
Aos 8 de Maio de 2014
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ESCRITURA PÚBLICA
N.º XXXX da Série " Min Pu San Zheng Min (2014)"
Requerente: A, do sexo masculino, nascido em 1 de Outubro de 1974, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(X), residente actualmente em Macau.
Tema de Notariado: Certificado
Certifico, por este meio, que o original do Certificado, emanado em 8 de Maio de 2014 pelo Tribunal Popular do Distrito de Hanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian, está conforme a fotocópia anterior, sendo o original autêntico.
Secretaria Notarial de Sanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian da República Popular da China.
O Notário: XXX (vide o original).
(Carimbo) - Secretaria Notarial de Sanjiang da Cidade de Putian da Província de Fujian.
Aos 9 de Maio de 2014.
IV - FUNDAMENTOS
O objecto da presente acção - revisão do termo de conciliação civil efectuado no âmbito do processo n.º 737 da série “Han Min Chu (2006) proferidoa em processo de divórcio pelo Tribunal Popular da cidade de Putian, do Distrito de Hanjiang, da província de Fujian,da República Popular da China -, de forma a produzir eficácia na R.A.E.M., passa pela análise das seguintes questões:
1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
3. Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º2 do CPC.
A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma conciliação civil perante o Tribunal Popular da cidade de Putian, do Distrito de Hanjiang, da Província de Fujian, da República Popular da China, de 13 de Junho de 2006, tendo sido decretado o divórcio entre requerente e requerida e homologação de um termo de conciliação civil, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento e demais obrigações impostas, como alimentos à esposa, ora requerida e à filha do casal -, sendo certo que é esta que deve relevar.2
Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
“O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos; vem mesmo certificado o trânsito.
2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CPC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio litigioso requerido apenas por um dos cônjuges, a esposa, ora requerida, que foi autora na acção de divórcio mas que terminou por mútuo consentimento.
3. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6
E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
No caso em apreço, em que se pretende confirmar a sentença que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre o ora requerente e a sua esposa, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública. Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, igualmente com fundamento na cessação dos laços e convivência conjugal, tal como se verifica no presente caso, seja por mera manifestação de vontade nesse sentido, preenchidos os respectivos requisitos, por parte de um dos cônjuges, como quando se comprove que houve violação dos deveres conjugais geradora da ruptura da relação matrimonial.
Também em relação ao que mais foi decidido, nomeadamente no que concerne às obrigações relativas à regulação do poder paternal, tendo a filha ficado aos cuidados do pai, podendo a mãe visitá-la a qualquer momento, e à compensação económica de RMB 50.000,00, paga de uma só vez à esposa, pelo réu, tudo como do termo de conciliação resulta, nada fere as regras de confirmação do Exterior em relação ao ordenamento da RAEM.
O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão que homologou o termo de conciliação civil n.º XXXX da série “Han Min Chu (2006)”, proferida pelo Tribunal Popular da cidade de Putian, Distrito de Hanjiang, Província de Fujian, da República Popular da China, de 13 de Junho de 2006, com efeitos a partir desse mesmo dia, nos seus precisos termos, tal como consta dos documentos acima transcritos.
Custas pelo requerente.
Macau, 23 de Julho de 2015,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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