Processo nº 632/2014
Data do Acórdão: 21MAIO2015
Assuntos:
Título executivo
Sentença condenatória
Obrigação solidária
SUMÁRIO
Quando numa acção dois condevedores tiverem sido condenados solidariamente a pagar ao credor uma determinada quantia pecuniária, sem que todavia tenha sido feita nela a menção expressa sobre a proporção de cada um deles e se um dos condevedores tiver satisfeito por inteiro o direito do credor, o condevedor que tenha satisfeito por inteiro a prestação não pode invocar, na acção executiva intentada contra o outro condevedor, como título executivo, tão só a sentença condenatória e o documento comprovativo do pagamento total da dívida a favor do credor, para reaver a totalidade daqueles valores pecuniários.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 632/2014
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
A, devidamente identificado nos autos, moveu a execução de sentença sob a forma sumária contra B, execução essa que corre os seus termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base sob nº CV2-02-0028-CAO-C.
Serve de base à execução como título executivo uma sentença de 1ª instância proferida em 13JUL2007 nos autos da acção ordinária nº CV2-02-0028-CAO.
Por despacho do Exmº Juiz a quo, foi liminarmente indeferida a execução nos termos seguintes:
Houve um acidente de viação em que interveio um veículo automóvel. O proprietário do veículo não tinha seguro. O lesado demandou o Fundo de Garantia Automóvel, que pagou indemnização. O condutor do veículo, que não era o seu proprietário, foi considerado culpado. O Fundo intentou acção contra os referidos condutor e proprietário e obteve a condenação destes a reembolsarem-lhe a indemnização que havia pago ao lesado. O Fundo, depois de obter a condenação do condutor e do proprietário, instaurou execução contra estes. Nesta execução o proprietário reembolsou o Fundo. Vem agora o proprietário instaurar a presente execução contra o condutor pretendendo exercer o direito de regresso que diz ter contra este condutor.
Contrariamente ao que entende o exequente (proprietário), entende-se que aquele não tem título executivo contra o executado (condutor) relativamente ao direito de regresso.
O título executivo que o proprietário oferece contra o condutor é a sentença que os condenou a ambos a pagarem ao Fundo de Garantia Automóvel1. Diz o exequente (proprietário) que sucedeu nos direitos do Fundo e juntou documento contendo declaração do Fundo em que dá quitação e diz ter recebido do proprietário a quantia em que este e o condutor foram condenados.
A sentença não titula o direito que o proprietário pretende executar, pois que este é ali também condenado e tal sentença não condenou o condutor a pagar ao proprietário pelo que a obrigação exequenda não se encontra definida na sentença oferecida como título executivo, a qual não tomou qualquer posição quanto aos montantes de regresso que o exequente entende ser 100%. A declaração de quitação do Fundo também não pode servir de título executivo contra o condutor, pois que, tratando-se de documento particular, o condutor não o assinou reconhecendo qualquer obrigação (art. 677°, als. a e c) do CPC).
Portanto, por razões formais, os títulos oferecidos não têm força executiva contra o executado "condutor" porquanto não manifestam qualquer obrigação do condutor para com o proprietário.
Mas outras razões de substância também assim levam a concluir. Na verdade, o título executivo deve evidenciar uma obrigação que dispense discussão, cabendo àquele que se vê evidentemente retratado como devedor discutir, em embargos, a obrigação em que presuntivamente se vê como devedor. De certo modo, a acção executiva é a acção declarativa ao contrário, podendo discutir-se nos embargos de executado o que se discutiria na acção condenatória. É o título executivo que permite esta inversão na definição do direito subjectivo. Segundo a petição inicial, está em causa o direito de regresso entre devedores solidários. Ora o direito de regresso só se pode definir na chamada acção de regresso em que o devedor de regresso pode opor ao credor de regresso os vários meios de defesa (art. 518° do CC), nada permitindo que a definição se relegue para os embargos de executado. Isto é, nunca há título executivo do direito de regresso que permita ao devedor solidário que pagou ao credor dispensar-se de demandar os condevedores em acção declarativa. Na verdade, o direito de regresso, puro e simples, é originado com o pagamento ao credor solidário e pagamento (facto constitutivo), ainda que documentado não serve de título executivo contra os demais devedores solidários, tantos são os meios possíveis de defesa que podem ser opostos ao devedor pagador e que teriam de ser discutidos em sede de embargos de executado.
O exequente diz ter sucedido nos direitos do Fundo. Mas isso não é verdadeiro. O direito de regresso é diferente da sub-rogação, esta sim forma de transmissão de obrigações, a par da cessão de créditos (arts. 571º e 583º do CC). O direito de regresso do devedor solidário que paga mais que a sua parte é muito diverso do direito do credor solidário que recebe de um condevedor solidário mais que a parte deste na relação de solidariedade (arts. 517º a 519º e 587º do CC). Por isso, o credor solidário nada transmite ao devedor solidário que lhe paga. O direito de regresso nasce pa relação de solidariedade entre condevedores, seja legal, seja contratual. O direito do credor solidário nasce de fonte diversa, no caso a responsabilidade civil e as disposições legais sobre o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Daí não estar em causa a legitimidade dos sucessores a que se reporta o nº 3 do art. 68º do CPC.
Pelo exposto conclui-se que o exequente não tem título executivo contra o executado quanto à obrigação exequenda e, em consequência, indefere-se liminarmente o requerimento executivo.
Custas pelo exequente.
Notifique.
Inconformado com o indeferimento liminar, veio o exequente interpor dele o recurso, pedindo e concluindo que:
I. Vem o presente recurso interposto do despacho de indeferimento liminar proferido nos presentes autos, de fls. 21-23, que julgou inexistente o título executivo contra o executado quanto à obrigação exequenda;
II. O Recorrente não se conforma com a decisão proferida, por crer ter sido feita uma interpretação restritiva do n.º 3 do artigo 68.° do CPC de Macau, bem como do disposto no n.º 4 do artigo 25.° do Decreto-Lei n.º 57/84/M, de 28 de Novembro, e, bem assim, no artigo 586.° do Código Civil de Macau;
III. O Exequente-Recorrente foi proprietário do motociclo com a chapa de matrícula M-XX-XX, envolvido num acidente de viação ocorrido em 10 de Fevereiro de 1993;
IV. O Executado-condutor foi já considerado «único e exclusivo culpado do acidente em virtude da sua condução descuidada e negligente» - cfr. sentença dada à execução e sentença proferida nos autos n.º 314/94, que correram termos pelo então Tribunal de Competência Genérica de Macau e em que o aqui Executado interveio igualmente;
V. Dado que o Exequente-proprietário não dispunha, à data do acidente, de seguro válido e eficaz, foi o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo (FGAM) condenado ao pagamento de MOP$500.000,00 ao lesado no referido acidente de viação;
VI. Em cumprimento da decisão judicial, o FGAM pagou integralmente ao lesado a indemnização a que fôra condenado;
VII. Na sentença dada à execução e transitada em julgado, foram o Executado-condutor e o Exequente-proprietário condenados a pagar ao FGAM a referida quantia, acrescida de juros de mora e das despesas de cobrança judicial;
VIII. Em execução da referida decisão judicial, o Exequente-proprietário pagou ao FGAM, a quantia de MOP$795.015,90;
IX. O artigo 68.º do CPC de Macau contempla a figura da habilitação-legitimidade, abrangendo todos os modos de transmissão das obrigações, tanto mortis causa como inter vivos e, entre estes, a cessão de créditos, a sub-rogação ou qualquer outro modo de transferência de créditos;
X. Na situação dos autos, o Exequente-proprietário vem lograr obter coercivamente o ressarcimento do montante constante da sentença, que ao Executado-condutor incumbe liquidar como único e principal responsável - em virtude da sua actuação exclusiva, contravencional, negligente e descuidada -, e que o Exequente-proprietário garantiu e satisfez, visando, antes de mais, a protecção da sua posição jurídica;
XI. A execução sub judice assenta na extensão da eficácia do título executivo relativo ao credor-transmitente (FGAM), ao adquirente-pagador (o Exequente-proprietário), o que não exige um novo título executivo a favor deste sujeito;
XII. «Quando a sentença seja de procedência e a transmissão se tenha dado no lado activo, a consideração do interesse do adquirente e o princípio da economia processual aconselham a que lhe seja atribuída legitimidade para a acção executiva, sem necessidade de previamente propor nova acção declarativa» - LEBRE DE FREITAS;
XIII. Caso o Exequente-proprietário não figurasse como co-devedor na sentença, nada obstaria à sua sucessão nos direitos do credor como "terceiro";
XIV. Cumprida estivesse pelo Exequente-proprietário a obrigação de pagar ao FGAM o que este último desembolsara, antes de ser solidariamente condenado com o Executado-condutor, parece pacífico que não deixaria aquele de suceder ao FGAM e de ficar sub-rogado, nos termos do artigo 586,° do Código Civil de Macau, seja por ter garantido o cumprimento, mas também, e principalmente, por ter um interesse directo na satisfação do crédito, para assim evitar ser atingido na sua posição jurídica pelo não cumprimento por parte do aqui Executado-condutor;
XV. Se assim era antes da condenação, razões não se vislumbram para que o Exequente-proprietário não possa ficar sub-rogado, satisfeito que esteja o crédito, depois dessa condenação;
XVI. «A circunstância de o solvens ter direito de regresso contra o devedor não é incompatível com a sua sub-rogação nos direitos do credor, apenas justificando que a sub-rogação tenha por limite o montante do direito de regresso» - VAZ. SERRA;
XVII. Para se rejeitar a sucessão do Exequente-proprietário no título e concluir pela sua ilegitimidade, importava atender a todo o circunstancialismo, às razões da condenação daquele e à relação de solidariedade existente entre os ali condenados, situação a que, salvo o devido respeito, a decisão ora posta em crise não parece ter prestado a devida atenção;
XVIII. Por sentenças de condenação proferidas contra o Executado ficou já decidido que o acidente de viação «ficou a dever-se, exclusivamente, ao comportamento contravencional do condutor do motociclo», «único e exclusivo culpado do acidente em virtude da sua condução descuidada e negligente»;
XIX. A responsabilidade do Exequente e a sua condenação na sentença dada à execução resultam unicamente da sua qualidade de proprietário do veículo e sujeito da obrigação de segurar;
XX. Esta obrigação de segurar é apenas uma obrigação de garantia;
XXI. A actuação do Exequente-proprietário face ao condutor não comporta qualquer responsabilidade, dado que não se verifica o requisito de que depende a responsabilidade civil em que o condutor incorreu;
XXII. «A norma violada pelo referido proprietário não visa garantir o interesse do lesante no acidente, mas protege exclusivamente os interesses dos lesados em acidente de viação» - Ac. STJ, de 12.VI.2007;
XXIII. O legislador consagrou um regime excepcional para o reembolso das «pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efectuado seguro»;
XXIV. O n.º 4 do artigo 25.° do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, confere aos "sujeitos da obrigação de segurar" o benefício unilateral «do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago.»;
XXV. O direito de regresso assim conferido ao Exequente é de natureza excepcional, sendo a solidariedade existente entre o condutor-lesante e o proprietário-sujeito da obrigação de segurar, uma solidariedade imprópria, imperfeita ou "impura";
XXVI. Só nas relações externas, perante o lesado ou o FGAM, é que ambos respondem; mas no plano interno, paga a indemnização pelo sujeito da obrigação de segurar, só ele beneficia do direito de reembolso, podendo pedir do lesante tudo o que pagou;
XXVII. Com efeito, o causador do acidente não pode demandar o proprietário do veículo (para obter dele o que eventualmente pagasse ao FGAM), com base na omissão do dever de segurar que impende sobre aquele, por falta de ilicitude desta conduta em relação aos danos peticionados pelo mesmo causador do acidente;
XXVIII. No que respeita aos casos de solidariedade imprópria, como a que ocorre nos autos, nem sempre é evidente e incontroversa a qualificacão do meio jurídico idóneo e adequado para se efectivar o reembolso que a lei reconhece, sendo questionável se o mesmo deva ser qualificado como direito de regresso ou antes como um verdadeiro direito de sub-rogação;
XXIX. As figuras do direito de regresso e da sub-rogação legal desempenham, do ponto de vista prático ou económico, uma análoga «função recuperatória» no âmbito das «relações internas» entre os vários sujeitos que estavam juridicamente vinculados ao cumprimento de certa obrigação;
XXX. A terminologia legal, longe do rigor dos conceitos, espelha uma "comunicação" das figuras, tal como transpareceu no pensamento de VAZ SERRA;
XXXI. O direito de regresso do sujeito da obrigação de segurar corresponde muito imperfeitamente aos quadros dogmáticos dominantes daquela figura, pois a garantia de cumprimento da obrigação (do condutor-lesante) e o pagamento da indemnização em primeira linha encerram um interesse directo (do sujeito da obrigação de segurar) no âmbito de uma solidariedade que é meramente externa;
XXXII. A diferenciação radical das duas figuras, assente na respectiva fisionomia dogmática ou conceituaI, e não na ponderação dos interesses que lhe vão subjacentes, acaba por conduzir a um tratamento injustificadamente diferenciado de situações que, de um ponto de vista material, não merecem a aplicacão de regimes radicalmente divergentes, podendo conduzir, em última análise, a uma verdadeira impossibilidade prática de obtenção pelo interessado do reembolso;
XXXIII. No caso sub judice, o direito de regresso e o direito de sub-rogação mais não são do que, em circunstâncias diferentes, idênticos direitos de reembolso (ou de regresso lato sensu) das quantias pagas, ex vi legis, a título provisório e por obrigado (não responsável) secundário, direitos esses a "construir" substancialmente de forma semelhante;
XXXIV. A "extinção" do direito do FGAM-credor ocorreu em termos meramente relativos, "ressurgindo" outrossim esse direito - como uma espécie de "morto-vivo" - perante o devedor principal, mas agora com um escopo reintegrador,
XXXV. Esta construção aplica-se de pleno àquele que, sendo mero garante da obrigação, tem interesse directo no cumprimento e cumpre a prestação devida no plano das «relações externas», adquirindo em consequência, nas «relações internas», o direito de repercutir integralmente o que pagou sobre sobre o único e definitivo devedor;
XXXVI. Neste tipo de situações configuráveis como de solidariedade imprópria, há uma hierarquização de responsabilidades, incumbindo a um dos devedores assumir ou garantir transitoriamente a satisfação do direito do credor, mas beneficiando, num segundo momento, logo após o cumprimento, da faculdade de se reembolsar inteiramente à custa do património do devedor principal e definitivo da obrigação;
XXXVII. Com a sua conduta, o Exequente-proprietário garantiu o cumprimento da obrigação perante o credor-FGAM, verificando-se assim o pressuposto para a sub-rogação, previsto no artigo 586.° do Código Civil de Macau;
XXXVIII. Mais. Não só garantiu, como estava ainda directamente interessado na satisfação do crédito, com o que - apesar de não ser necessário, por não serem cumulativos -, está verificado qualquer um dos pressupostos que permitem lançar mão da sub-rogação prevista no artigo 586.° do Código Civil de Macau;
XXXIX. A circunstância de os pressupostos da figura da sub-rogação legal serem definidos pelo citado artigo 586.° com razoável amplitude, com base em conceitos relativamente indeterminados, tem levado a jurisprudência, com fundamento em razões de equidade e razoabilidade, a configurar como sendo de sub-rogação o instrumento jurídico adequado para o devedor que, cumprindo a obrigação - fora do domínio da típica solidariedade passiva -, e não devendo ser definitivamente responsabilizado pelo valor da prestação, poder reembolsar-se à custa de quem deve, segundo juízos de justiça e equidade, em última análise, suportar a totalidade da prestação devida, evitando, nomeadamente, um injustificado benefício do lesante;
XL. É nas situações de solidariedade imprópria que a questão da aplicação e alcance do direito de regresso ou da sub-rogação ganha maior acuidade; e «a resposta à questão tem de partir da ponderação dos interesses em jogo, feita com bom senso, pois que o direito também é uma ciência do razoável»;
XLI. Liquidada a obrigação pelo Exequente-proprietário - e independentemente da posição que aquele tem na sentença -, este adquiriu, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam, atenta a solidariedade imprópria resultante do disposto na parte final do n.º 4 do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, pois, como ensina VAZ SERRA, a circunstância de o solvens ter direito de regresso contra o Executado-condutor não é incompatível com a sua sub-rogação nos direitos do credor;
XLII. Assim, também, com tal pagamento ao credor primitivo, o Exequente-proprietário, enquanto novo credor do devedor, passou a ter legitimidade activa para instaurar execução contra este nos mesmos termos que o tinha o FGAM, verificando-se, por essa via, a sucessão na posição (de legitimidade) do exequente a que alude o n.º 3 do artigo 68.° do CPC de Macau;
XLIII. Com a reforma processual civil, pretendeu-se colocar o acento tónico "na supremacia do direito substantivo sobre o processual", salientando ainda MARQUES DOS SANTOS e LEBRE DE FREITAS que "o procedimento demasiado ritualizado e com efeitos preclusivos não permite atingir a justiça que se procura através do processo»;
XLIV. Face à transmissão do crédito do credor primitivo para o ora Exequente, não parece fazer qualquer sentido rejeitar a execução, por alegada ausência de legitimidade, pois com isso apenas se obrigaria o ora Exequente a instaurar nova e prévia acção declarativa de condenação, visando o reconhecimento daquilo que, a final, parece estar mais que demonstrado nos autos: que o Executado-condutor é o único e exclusivo culpado pelo acidente e que o Exequente pagou ao credor a totalidade da dívida e que, por via disso, lhe foi transmitido o crédito;
XLV. Dest'arte, o Exequente-proprietário está dispensado de instaurar acção declarativa de condenação contra o condutor-devedor com vista ao reconhecimento do pagamento que efectuou, podendo recorrer logo à acção executiva.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se consequentemente o despacho de indeferimento liminar proferido nos presentes autos, com substituição por outra decisão que, julgando a existência e bondade do título dado à execução, ordene o prosseguimento da acção executiva e a consequente penhora dos bens do executado, com o que se fará JUSTIÇA.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Cumpre apreciar.
II
A única questão levantada nesta lide recursória é a de saber se a sentença proferida em 17MAR2005 nos autos da acção ordinária nº CV2-02-0028-CAO, acompanhada da declaração de quitação comprovativa do pagamento da totalidade do montante arbitrado naquela sentença efectuado pelo ora exequente a favor do Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo pode ou não servir de título executivo na presente execução sumária.
Assim, é de relembrar aqui a matéria de facto e vicissitudes assentes e relevante à boa apreciação e decisão da questão:
* Por sentença judicial transitada em julgado no dia 11 de Julho de 2000, proferida no âmbito dos autos de Acção Cível com Processo Sumário nº 314/94, que correu termos no 2° Juízo do então Tribunal de Competência Genérica de Macau, foi o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo condenado no pagamento de uma indemnização no valor total de MOP$500,000.00 (quinhentas mil patacas) ao lesado C;
* Essa indemnização destinou-se a ressarcir o referido lesado dos danos morais e patrimoniais sofridos em virtude de um acidente de viação ocorrido no dia 10 de Fevereiro de 1993 e provocado pelo ora executado B que no momento da ocorrência do acidente conduzia o motociclo de matrícula M-XX-XX;
* Ficou provado naquela sentença que o ora executado B foi o único e exclusivo culpado do acidente em virtude da sua condução descuidada e negligente;
* Encontra-se também provado naquela sentença que o veículo em causa era propriedade do ora exequente A e que, à data do acidente, este não dispunha de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel válido e eficaz;
* Em virtude dessa inexistência de apólice de seguro válida e eficaz, foi o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo condenado, por força do disposto no artigo 23°, n° 2, alínea a) do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro, no pagamento da indemnização nos termos supra referidos;
* Em 11 de Dezembro de 2000, o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo pagou integralmente ao lesado C, a indemnização em que foi condenado;
* No âmbito da acção nº CV2-02-0028-CAO, intentada pelo Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo contra o ora Exequente e o ora executado, pedindo, com fundamento na sub-rogação na titularidade do direito do lesado C, que fossem solidariamente condenados a pagar-lhe o montante de MOP$500.000,00, acrescido de juros legais de mora, contados desde 11DEZ2000, data em que o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo pagou a indemnização ao lesado do acidente de viação C, por força da acima referida sentença proferida na acção cível nº 314/94 do então TCG;
* Por sentença transitada em julgado naquela acção nº CV2-02-0028-CAO, intentada pelo Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo contra o ora Exequente e o ora executado, foi julgada procedente a acção e foram estes condenados a pagar ao Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo a quantia de MOP$500.000,00, acrescido de juros legais de mora, contados desde 11DEZ2000, e do reembolso das despesas de cobrança judicial, que são de MOP$18.259,00;
* Em cumprimento do ordenado na sentença condenatória proferida na acção nº CV2-02-0028-CAO, o ora exequente pagou em 20AGO2007 ao Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo a totalidade dos montantes arbitrados nessa sentença, no valor de MOP$795.015,90;
* Após o que, o ora exequente A intentou a presente acção executiva contra o ora executado B, com vista a reaver a totalidade dos valores pecuniários que pagou ao Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, na quantia entretanto apurada de MOP$1.310.135,24 e dos juros vincendos até ao efectivo e integral pagamento, servindo-se de título executivo a sentença condenatória proferida na acção nº CV2-02-0028-CAO, acompanhada da declaração de quitação passada pelo Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo – vide os doc. a fls. 8 a 16 dos p. autos;
* Por despacho proferido pelo Exmº Juiz titular do processo, cujo teor foi integralmente transcrito no relatório do presente Acórdão, a presente acção executiva foi liminarmente indeferida por falta de título executivo; e
* Inconformado com o indeferimento liminar, veio o ora exequente, interpor dele o presente recurso ordinário.
Inteirados do que se tem passado, apreciemos.
Diz o artº 12º/1 do CPC que a acção executiva tem como base um título, pelo qual se determinam o seu fim e os seus limites.
É o denominado título executivo, peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva, dito na expressão latina, nulla exsecutio sine titulo.
Trata-se de um documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo com vista à execução ou cobrança forçada.
Por sua vez, o artº 677º do CPC determina que à execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
Temos assim títulos executivos judiciais e títulos executivos extrajudiciais.
Nos primeiros incluem-se nomeadamente as sentenças ou decisões judiciais ou arbitrais condenatórias e nos segundos incluem-se os documentos exarados ou autenticados por notário, os documentos particulares, os documentos a que seja atribuída por lei força executiva, nomeadamente.
Existe in casu uma particularidade, pois o exequente serviu-se de uma sentença condenatória em que ele próprio e um outro réu foram solidariamente condenados a pagar ao Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, e de um título “complementar” que consiste numa declaração de quitação passado pelo Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo comprovativa de que o ora exequente liquidou a totalidade da dívida solidária objecto dessa condenação.
Em face dessa particularidade, não nos parece importante qualificar o título trazido pelo ora exequente como judicial ou extrajudicial, o que importa é apenas averiguar se esse título da origem mista reúne os requisitos para ser utilizado como um verdadeiro título executivo, isto é, se é constitutivo ou certificativo da obrigação que o exequente pretende ver executada.
Para o Tribunal a quo, o ora exequente não tem título executivo contra o executado quanto à obrigação exequenda, pois entende que:
“Contrariamente ao que entende o exequente (proprietário), entende-se que aquele não tem título executivo contra o executado (condutor) relativamente ao direito de regresso.
O título executivo que o proprietário oferece contra o condutor é a sentença que os condenou a ambos a pagarem ao Fundo de Garantia Automóvel. Diz o exequente (proprietário) que sucedeu nos direitos do Fundo e juntou documento contendo declaração do Fundo em que dá quitação e diz ter recebido do proprietário a quantia em que este e o condutor foram condenados.
A sentença não titula o direito que o proprietário pretende executar, pois que este é ali também condenado e tal sentença não condenou o condutor a pagar ao proprietário pelo que a obrigação exequenda não se encontra definida na sentença oferecida como título executivo, a qual não tomou qualquer posição quanto aos montantes de regresso que o exequente entende ser 100%. A declaração de quitação do Fundo também não pode servir de título executivo contra o condutor, pois que, tratando-se de documento particular, o condutor não o assinou reconhecendo qualquer obrigação (art. 677°, als. a e c) do CPC).
Portanto, por razões formais, os títulos oferecidos não têm força executiva contra o executado "condutor" porquanto não manifestam qualquer obrigação do condutor para com o proprietário.
Mas outras razões de substância também assim levam a concluir. Na verdade, o título executivo deve evidenciar uma obrigação que dispense discussão, cabendo àquele que se vê evidentemente retratado como devedor discutir, em embargos, a obrigação em que presuntivamente se vê como devedor. De certo modo, a acção executiva é a acção declarativa ao contrário, podendo discutir-se nos embargos de executado o que se discutiria na acção condenatória. É o título executivo que permite esta inversão na definição do direito subjectivo. Segundo a petição inicial, está em causa o direito de regresso entre devedores solidários. Ora o direito de regresso só se pode definir na chamada acção de regresso em que o devedor de regresso pode opor ao credor de regresso os vários meios de defesa (art. 518° do CC), nada permitindo que a definição se relegue para os embargos de executado. Isto é, nunca há título executivo do direito de regresso que permita ao devedor solidário que pagou ao credor dispensar-se de demandar os condevedores em acção declarativa. Na verdade, o direito de regresso, puro e simples, é originado com o pagamento ao credor solidário (facto constitutivo), ainda que documentado não serve de título executivo contra os demais devedores solidários, tantos são os meios possíveis de defesa que podem ser opostos ao devedor pagador e que teriam de ser discutidos em sede de embargos de executado.
O exequente diz ter sucedido nos direitos do Fundo. Mas isso não é verdadeiro. O direito de regresso é diferente da sub-rogação, esta sim forma de transmissão de obrigações, a par da cessão de créditos (arts. 571º e 583º do CC). O direito de regresso do devedor solidário que paga mais que a sua parte é muito diverso do direito do credor solidário que recebe de um condevedor solidário mais que a parte deste na relação de solidariedade (arts. 517º a 519º e 587º do CC). Por isso, o credor solidário nada transmite ao devedor solidário que lhe paga. O direito de regresso nasce na relação de solidariedade entre condevedores, seja legal, seja contratual. O direito do credor solidário nasce de fonte diversa, no caso a responsabilidade civil e as disposições legais sobre o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Daí não estar em causa a legitimidade dos sucessores a que se reporta o nº 3 do art. 68º do CPC.”.
Tal como vimos nas conclusões do recurso, ora integralmente transcritas no relatório do presente Acórdão, o recorrente teceu uma grande abundância de considerações para defender que o direito de regresso conferido pelo artº 25º/4 do Decreto-Lei nº 57/94/M se funda numa solidariedade imprópria, imperfeita ou impura, e o que o legislador quis é no fundo instituir uma verdadeira sub-rogação legal.
Diz o artº 25º/4 do decreto que “as pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efectuado seguro podem ser demandadas pelo FGA, nos termos do n.º 1, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago.”.
Assim, na óptica do recorrente, como ele já pagou ao Fundo de Garantia Automóvel e Marítima, fica já investido na sub-rogação, passando a ocupar a posição jurídica do credor que tinha o Fundo contra o condutor responsável pelo acidente, ora executado.
Na esteira do raciocínio do recorrente, a sentença em que foram condenados ele, ora exequente, e o ora executado, acompanhada do documento comprovativo do pagamento por ele efectuado a favor do Fundo de Garantia Automóvel e Marítima, já é constitutiva da obrigação exequenda contra o seu co-devedor, condutor responsável pelo acidente, ora executado.
Ora, tal como certeiramente salientou o Exmº Juiz a quo, a figura do direito de regresso anda coligada à modalidade e ao regime das obrigações solidárias, nos termos do qual a satisfação do direito do credor por um dos devedores solidários produz a extinção da obrigação (artº 516º do CC), outorgando o artº 517º um inovatório direito de regresso a favor do devedor que satisfez o direito do credor para além da quota que, nas relações internas para com os co-devedores, lhe cumpria suportar a título definitivo.
Ao passo que a figura da sub-rogação tem o seu assento normativo no âmbito do instituto da transmissão de créditos e dívidas envolvendo, desde modo, quando se verifiquem os respectivos pressupostos, a sucessão do terceiro que cumpriu a obrigação no próprio direito do credor que, assim, se não extingue com o cumprimento, nos termos do disposto no artº 587º do CC.
São institutos distintos.
Assim, em princípio, urge averiguar se o que realmente quis o legislador é instituir uma verdadeira sub-rogação legal no artº 25º/4 do Decreto-Lei nº 57/94/M, ou tal como a norma indica, o verdadeiro direito de regresso propriamente dito.
Só que in casu já não precisamos de o fazer dado que a tal questão já se encontra decidida.
Pois, por força de caso julgado da sentença exequenda, o ora exequente e o ora executado já foram solidariamente condenados a pagar ao Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, nos exactos termos em que o Fundo pediu na petição inicial da respectiva acção – vide a pág. 5 da sentença, ora constante das fls. 10 dos p. autos.
Ora, bem ou mal, a condenação solidária de ambos foi decidida por sentença transitada em julgado.
O que faz cair por terra toda a tese da sub-rogação, ora invocada pelo recorrente, como causa de pedir da presente execução e para sustentar que ele sucedeu na posição de credor que ocupava o Fundo, tendo passado a ser titular do direito que tinha o Fundo.
Na verdade, a sentença em lado algum reconheceu ao recorrente o estatuto de transmissário dessa posição, pois de outro modo, não o teria condenado solidariamente com o condutor ora executado, responsável do acidente, mas sim tê-lo-ia condenado sozinho a satisfazer o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo.
E ainda ex abuntantia, é de salientar que, apesar de ter o condutor do veículo sido considerado exclusivamente culpado na produção do acidente naquela sentença condenatória proferida na acção de regresso intentada pelo Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo contra o proprietário do veículo e o condutor, o certo é que nas relações internas entre o proprietário do veículo, o condutor do veículo e o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, o proprietário, ora exequente, não aparece como um sujeito tão inocente que nada mais tem de assumir para além de um papel de mero garante perante o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo que satisfez por inteiro o direito do sinistrado, pois ele (o proprietário) teve culpa exclusiva, por não ter segurado o seu veículo, no não funcionamento do mecanismo da protecção do sinistrado por via do seguro obrigatório e na inactivação da chamada socialização da responsabilidade civil pelo risco inerente à circulação dos veículos motorizados, ambos concebidos para proteger os sinistrados contra o risco de insolvência dos responsáveis, e além disso, foi por causa do incumprimento culposo da sua obrigação legal de segurar o seu veículo que foi chamado o FGAM para pagar primeiro ao sinistrado.
Assim sendo, por força da sentença, depois de ter satisfeito, por inteiro, o direito do Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, o ora exequente apenas beneficia, no plano das relações internas, de direito de regresso contra o condevedor, ora executado, não pela totalidade dos valores pecuniários pagos ao Fundo, mas sim apenas pela parte dos valores para além da quota que, nas relações internas de solidariedade, lhe cumpria suportar a título definitivo.
Não estando munido o exequente, ora recorrente, de um título executivo que lhe confere um direito efectivo e exigível do direito de regresso sobre o ora executado pela totalidade dos valores que pagou ao Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, é de naufragar a pretensão do exequente de reaver a totalidade dos tais valores pecuniários.
Finalmente, salienta-se que bem andou o Exmº Juiz a quo quando se limitou a indeferir liminarmente a execução e não procedeu à simples redução do pedido e mandou prosseguir a execução, uma vez que, mesmo que entendamos que a sentença já reconheceu ao exequente o direito de regresso, condicionado à efectiva e integral satisfação do direito do Fundo, contra o ora executado, a causa de pedir, invocada pelo exequente, se funda na figura da sub-rogação, ou pelo menos na chamada solidariedade imprópria ou imperfeita, prevista no artº 25º/4 do Decreto-Lei nº 57/94/M, que como vimos, é bem diversa da figura do direito de regresso que reconhecemos in casu ao exequente.
Assim, se reduzíssemos o pedido para a metade da dívida exequenda, não estaríamos a operar uma mera redução quantitativa do pedido legalmente admissível, mas sim uma modificação qualitativa da causa de pedir que, como se sabe, não estamos autorizados a fazer ex oficio por força do princípio do dispositivo.
Pelo exposto, não deve proceder o recurso.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo exequente, mantendo na íntegra o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
RAEM, 21MAIO2015
Lai Kin Hong
João Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
1 só assim se compreende que a execução tivesse sido instaurada por apenso ao processo onde foi proferida a sentença condenatória.
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