Proc. nº 261/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 21 de Maio de 2015
Descritores:
-Matéria de facto
-Selecção
-Reclamação
-Impugnação da selecção da matéria de facto
-Impugnação do julgamento da matéria de facto
-Usucapião
-Interrupção do prazo
-A excepção de caso julgado
-Interrupção do prazo de usucapião
SUMÁRIO:
I. Do art. 430º, nº3, do CPC resulta que o despacho proferido sobre as reclamações apresentadas relativamente à selecção da matéria de facto pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da sentença final.
II. Diferente é a impugnação do próprio julgamento da matéria de facto (art. 556º, do CPC). Aí, do despacho ou acórdão que decida a matéria de facto só cabe uma forma de impugnação: a reclamação a que se refere o nº5 desse artigo. Decidida, porém, a reclamação não é admitida nova reclamação, nem recurso autónomo. O que pode é haver impugnação da matéria de facto, nos termos dos arts. 599º e 629º, do CPC.
III. O caso julgado é uma excepção dilatória que pressupõe uma tríplice identidade: de “sujeitos”, “pedido” e “causa de pedir”. Tem em vista impedir a repetição de uma causa face ao resultado de outra já decidida e, nesse sentido, vem sendo considerada como excepção com uma vertente negativa.
IV. Por vezes, não se verificam os requisitos do caso julgado, mas ainda assim é necessário estender a eficácia de uma sentença transitada anteriormente, como modo de a fazer impor-se para a solução em outro litigio posterior. Nesse caso, diz-se que o assunto está resolvido pela primeira decisão, que assim se impõe e é, então, que se fala na vertente positiva do caso julgado, através daquilo que se vem convencionando autoridade do caso julgado.
V. Esta autoridade de caso julgado surge assim nalguma doutrina e jurisprudência como modo de estender a eficácia do caso julgado onde, em princípio, ela não iria, face aos requisitos sabidos da excepção prevista nos arts. 416º e 417º acima referidos. Há limitações, porém, que é preciso respeitar.
VI. A circunstância, por exemplo, de numa acção ter sido decidida a favor de uma das partes a aquisição da propriedade pela força da usucapião não obsta a que um terceiro, que não foi parte no primeiro processo venha a adquirir pela mesma via de usucapião a propriedade sobre o mesmo prédio, não se podendo, em tal hipótese invocar aqui nem o caso julgado, nem a autoridade do caso julgado.
VII. Se o A, na réplica à reconvenção, deduz a autoridade de caso julgado e o juiz decide esta matéria no despacho saneador como se fosse excepção de caso julgado, deve entender-se que a decisão transitou se dela o A não interpôs recurso jurisdicional.
VIII. Nos termos do art. 1217º do CC aplicam-se, com as necessárias adaptações, à usucapião as regras da suspensão e interrupção da prescrição. E nos termos do art. 315º, nº1, do CC a prescrição se interrompe “…pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”.
IX. Porém, a interrupção só pode ter lugar se o prazo de prescrição (leia-se, agora, se o prazo da usucapião) ainda não tiver já decorrido.
Proc. nº 261/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A e mulher B, casados no regime da comunhão de adquiridos, residentes na..., Macau, intentaram no TJB (Proc. nº CV3-11-0044-CAO) acção ordinária contra: ---
C, casado com D, residentes na…, ---
com os fundamentos constantes da p.i. de fls. 2 a 4, pedindo que fossem reconhecidos como únicos e legítimos proprietários de um prédio urbano ali melhor identificado e os RR condenados a desocuparem-no e restituírem-no e a pagarem a quantia de Mop$ 8.000,00 mensais até à efectiva desocupação e restituição.
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Foi, na oportunidade proferida sentença datada de 23/10/2014, que julgou improcedente a acção e procedente a reconvenção do R, em consequência do que declarou este o legítimo proprietário do aludido prédio (fls. 312-322).
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Os AA recorreram da sentença, tendo concluído as suas alegações da seguinte maneira:
«1ª - A questão fundamental dos autos é a violação da autoridade do caso julgado firmado pela sentença de usucapião de 23.9.1996.Todas as sentenças têm conteúdo e, consequentemente, essa sentença dada por assente na alínea C) dos Factos Assentes, transitada em julgado em 10.10.1996 (ver certidão a fls. 102) tem que ter necessariamente o conteúdo que dela consta e integralmente reproduzido de fls. 107 a 110;
2a - ali consta reconhecida a posse animus domini sobre o prédio dos autos por E e sua mãe F, a quem o Recorrente sucedeu por escritura de fls. 98-101, consecutiva e exclusiva desde 1955 até à data da sentença de 23.09.1996 e, com esse preciso fundamento e limites, as declarou proprietárias por usucapião do prédio dos autos.
3a - o tribunal “a quo” cometeu pois erro, por contradição (art.556º nº 5 do CPC), no julgamento da matéria da facto ao ter dado por provado nas respostas dadas aos quesitos 10º, 11º, 19º e 19º-A que a posse “animus domini” sem título nem registo desde 1985 em diante, incluindo portanto o período de 1985 a 23.9.1996 abrangido por aquela sentença de 23.9.1996 pertenceu ao Réu autor da Reconvenção.
4a - e voltou a errar de forma ainda mais grave por o indeferimento da reclamação do A contra tais respostas, se fundar no facto falso (acta de fls. 308v.) de que na sentença de 23.9.1996 “2.Nada se refere quanto à posse do imóvel pelas F e E.”
5a - o Tribunal “a quo” considerou, pois, a sentença especificada na al. C) dos Factos Assentes como sentença vazia, sem o conteúdo que dela consta, RAZÃO PELA QUAL deve esse Tribunal, ao abrigo do art. 629º nº l do CPC e porque a certidão de fls. 102-110 o comprovam cabalmente, julgar e fixar como integralmente reproduzida na cit. al. C) todo o conteúdo da sentença, tal como oportunamente se pediu na Reclamação contra a Selecção da Matéria da Facto;
6a - e, nessa conformidade, ser aceites e procedentes a reclamação contra os quesitos 10º e 11º do despacho de Selecção da matéria de facto e a reclamação contra as respostas dadas em julgamento aos quesitos 10º, 11º, 19º e 19º-A fixando-se a estes o início da posse em 24.9.1996 por a prova autêntica de tal sentença provar que antes dessa data (de 1955 a 23.9.1996) a posse pertenceu às lá Autoras E e sua mãe F;
7ª - o despacho que em julgamento indeferiu a reclamação contra as respostas dadas aos referidos quesitos é também ilegal por violação do art. 558º nº 2 do CPC, pois as baseou no princípio da livre convicção do art. 558º nº 1 preterindo a formalidade ou documento autêntico especialmente exigido por lei (sentença em recurso extraordinário dos arts. 653º e segs. do CPC) para decidir, como decidiu, em contradição e dispensa de tal sentença especificada na cit. al. C), chegando a afirmar expressamente que ali “Nada se refere quanto à posse do imóvel pelas F e E.” (sic a fls. 308v.);
8a - devendo, também por isso, esse Tribunal fixar o início da posse do Réu em 24.9.1996 por a prova autêntica de tal sentença transitada e nunca revogada nem anulada nem declarada nula provar que antes dessa data (de 1955 a 23.9.1996) a posse pertenceu às lá Autoras E e sua mãe F, a quem o A aqui recorrente sucedeu;
9a - e proceder a oportunamente reclamada alteração da alínea E) dos Factos Assentes para “Em 07.05.2007 foi inscrito na competente Conservatória a aquisição do imóvel referido em A) a favor de E e de F. E em 13 de Agosto de 2008, a parte pertencente à F foi também inscrita a favor da E Dor sucessão hereditária”, assim se fixando a totalidade do trato sucessivo desde a qualidade, posição e direitos de F e sua filha E na sentença de 1996, fusão nesta da qualidade e posição de ambas mediante a transmissão hereditária para esta da posição da mãe e posterior escritura da E a transmitir ao aqui A. a posição e qualidade jurídica que aquelas tinham naquela acção de usucapião e prédio dos autos, dado que a prova disso consta cabal da certidão junta aos autos e a arguição de simulação de tal escritura foi dada por não provada em julgamento.
10º - ou, a não se fazer uso da competência do TSI quanto a decidir tais matérias de facto, deve então esse Tribunal fazer baixar os autos para reapreciação de tais questões, com destaque para a posse no período de 1985 a 23.9.1996, e nova sentença em conformidade, dado que o Tribunal “a quo” ao dizer que ali “Nada se refere quanto à posse do imóvel pelas F e E.” errou notoriamente.
11ª - A sentença recorrida violou as regras da Autoridade do Caso Julgado, nomeadamente os arts 574º nº 1, 576º nº l, e 653º e segs, todos do Cód. Proc Civil, bem como as normas da interrupção da posse do art, 315º nºs. 1 e 2 do Cód. Civil de Macau, aplicável por expresso comando do art. 1217º do mesmo Código, e ainda as normas dos efeitos inutilizadores e absolutórios contra tal eventual posse constantes do art. 412º nº 3 do Cód Proc. Civil e arts. 318º nº 1 e art. 315º nº 1 e 2, do Cód. Civil, aplicáveis ex vi art. 1217º do mesmo Código:
12a - E sofre dessas ilegalidades porque por sentença de 23.09.1996 transitada em julgado em 10.10.1996 in Proc. 123/95, 4º Juízo do Trib Comp Genérica, foi julgado e decidido que foi a parte Autora quem como único e exclusivo possuidor exerceu a posse durante todo o período usucapinte ou animus domini e ininterrupta sobre o prédio dos autos desde 1955 até essa data de 23.09.1996, incluindo portanto também o tempo ou período de 1985 a 23.09.1996).
13a - E pela sentença recorrida, proferida a 23.10.2014 neste Proc. CV311-0044-CAO, foi julgado e decidido foi o Réu Reconvinte aqui recorrido quem como único e exclusivo possuidor, exerceu a posse usucapinte ou animus domini e ininterrupta sobre o prédio dos autos durante todo o período que vem desde 1985 em diante, incluindo portanto também o tempo ou período de 1985 a 23.09.1996 constante da sentença de 23.9.1996.
14a - tal Denodo coincide em ambas como Denodo imprescindível à usucapião em ambas já que, sem ele, não existiria posse usucapinte completa ou usucapião dos AA reconhecidas pela sentença de 23.09.1996, por interrompida durante 11 anos, desde 1985 a 23.9.1996, mas que já constitui posse usucapinte completa se tal posse foi sempre consecutiva e exclusiva da Parte Autora até essa data como a sentença de 23.9.1996 diz que foi desde 1955, incluindo portanto o cit período de 1985 a 23.09.1996.
15a - E de igual modo, sem ele, também não existiria posse usucapinte completa ou usucapião do Réu Reconvinte por ainda não existir tempo de posse suficiente para usucapião reconvencionada, por interrompida pela notificação em 06.06.2008 ao R de contestação de 13.5.2008 de igual pedido formulado pelo aqui R e Outro sobre o mesmo prédio contra os AA na Acção CV1-07-0060-CAO especificada na al. G) dos Factos Assentes; e novamente interrompida em 28.5.2011 (5º dia posterior à propositura e pedido de citação desta Acção), isto é, 14 anos 8 meses e 5 dias de posse desde 24.9.1996 ou seja menos que 15 anos exigidos por lei para a posse de boa-fé e menos de 20 para posse de má fé.
16a - o R. reconvinte aqui Recorrido não interveio naquela acção, não havendo pois identidade de sujeitos entre as 2 acções, mas tal não é necessário pois a Autoridade do Caso Julgado dispensa tal triplicidade;
17a - Com efeito, “Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil”- cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/06/2011 in Proc nº 816/09.2TBAGD.C1, e publicado no site da Jurisprudência de Portugal in http:/ww.dgsi.pt e nota nossa de que o art. 498 do CPC de Portugal corresponde ao art. 417º do CPC de Macau.
18a - E é isso que sucede precisamente “in casu”, não existe aquela triplicidade mas em ambas o pedido e a causa de pedir são os mesmos pois em ambas se pede o reconhecimento do direito de propriedade por usucapião e em ambos se faz esse pedido tendo como causa de pedir e objecto o mesmo prédio e a posse usucapinte ou posse animus domini exclusiva e ininterrupta durante período comum a ambas e absolutamente imprescindível em ambas as sentenças – o período de 1985 a 23.09.1996;
19a - Há por isso identidade de pedido, pretensão e causa de pedir. Só não há identidade de sujeitos, que é imprescindível na Excepção Dilatória do Caso Julgado mas, como jurisprudência e doutrina supra, dispensada na questão da Autoridade do Caso Julgado.
20a - Há pois ofensa à Autoridade do Caso Julgado a qual “em nada se confunde”com a Excepção de Caso Julgado - cfr. doutrina e jurisprudência, nomeadamente Ac do STJ de Portugal de 19.05.2010, in Proc. nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1, e publicado no site da Jurisprudência de Portugal in http://ww.dgsi.pt
21a - A excepção do caso julgado é mera defesa processual que pressupões tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir) que aqui não existe e constitui excepção dilatória que conduz à mera absolvição da instância - cfr. doutrina e jurisprudência supra, nomeadamente Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.11.2011 no Proc 5039/08.5TBSXL.L1-1, e publicado na Internet in www.dgsi.pt
22a - Enquanto que a Autoridade do Caso Julgado é uma defesa material ou substantiva como facto material, prejudicial, indiscutível e preclusivo (incluindo portanto o período de 1985-1996) que dispensa tal tríplice identidade e que “in casu” é impeditivo do direito de posse e usucapião pedido pelo Réu na Reconvenção. (por sem tal período de posse prejudicial e indiscutível do A, o R. não contar tempo suficiente para usucapião, como acima vimos), e, como tal, funciona como excepção material ou peremptória - cfr. entre outros Lebre de Feitas in Cód. Proc. Civil Anotado, Volume 2ª, 2a edição, págs. 333 e 354-355 e jurisprudência supra nomeadamente cit Ac do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.11.2011;
23ª - E que naturalmente só se coloca quando surgir julgamento uma segunda decisão que contradiga a primeira sentença. Ou seja, só se coloca na “decisão de mérito que nesta há-de ser proferida...” (sic, Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol 2.º, pág 354-355, 2a ed, Coimbra 2008).
24a - O despacho de indeferimento da Reclamação contra a selecção da matéria de fact violou, pois, o dever do art. 430º nº 1 do CPC de acolher as várias soluções plausíveis, RAZÃO PELA QUAL aqui se impugna o mesmo nos termos do art. 430º nº 3 do CPC, devendo o mesmo ser revogado e substituído por decisão que acolha como soluções plausíveis as soluções reclamadas.
25a - o saneador pronunciou-se apenas sobre a excepção do caso julgado que nem ninguém invocou e que em nada se confunde com Autoridade do Caso Julgado, mas não proferiu qualquer decisão de mérito nem sobre essa questão prejudicial material nem a ela se referiu nem pelo nome dessa figura nem por referência às normas que definem essa autoridade e limites - os artigos 574º nº 1 e 576º nº 1 do Cód Proc Civil;
26a - e nem julgou nem podia julgar porque a questão da Ofensa a Autoridade de Caso Julgado só ocorre, repita-se, no momento em que se indague ou decida contra o estabelecido na sentença transitada e sucede que antes do julgamento e sentença recorrida não foi julgado nenhum facto nem proferida nenhuma decisão a contradizer tal posse exclusiva dos AA de 23.9.1996 para trás (1955-23.9.1996). Isso só aconteceu no julgamento da matéria de facto (de que se reclamou na acta) e na sentença ora recorrida.
27a - E, além disso, o Réu Reconvinte aqui recorrido, nos seus articulados, arguiu a simulação da escritura da alínea b) dos Factos Assente em que a E transmitiu seu direito para o comprador aqui Autor, a qual foi levada à Base Instrutória sob quesito nº 7º colocando assim dependente do resultado do julgamento a posição e qualidade jurídica de sujeito do aqui A em ambas acções e que só ficou resolvida com a simulação a ser julgada em julgamento como não provada.
28a - Daí que, também por isso, nada conste do saneador quanto à Autoridade de Caso Julgado e ofensa à mesma.
29a - A sentença recorrida não podia pois escudar-se na decisão de não existência da não invocada excepção dilatória de caso julgado para se abster de apreciar e atender a autoridade de caso julgado alegada pelo aqui A na Réplica como pressuposto indiscutível e prejudicial ou excepção material conducente à absolvição do A do pedido reconvencional... Violou por isso o art. 571º nº 1 alíneas b), c) e d) do CPC bem como as normas que estabelecem a autoridade do caso julgado, isto é, arts 574º nº 1, 576º nº 1, e 653º e segs, todos do Cód. Proc Civil.».
30a - e não podia ter-se abstido de apreciar essa questão também porque a sentença dessa primeira acção que julgou a posse durante o tempo que abrange o referido período de 1985-23.9.1996, comum àquela e a esta segunda acção, é questão prejudicial nesta segunda acção, como pressuposto necessário a atender pela decisão de mérito proferida pela sentença desta segunda acção. Violou pois o art. 571º nº 1 alíneas b), c) e d) do CPC bem como as cito normas que estabelecem a autoridade do caso julgado como efectivamente violou.
31ª - E ilegal é também porque, por via da violação de tais preceitos e normas da autoridade do caso julgado, também não atendeu às invocadas excepções materiais ou peremptórias de interrupção da posse do R pela notificação em 06.06.2008 da contestação de 13.5.2008 contra igual pedido formulado pelo aqui R e Outro na Acção CV1-07-0060-CAO especificada na al. G) dos Factos Assentes, nem à interrupção de 28.5.2011 (5º dia posterior à propositura e pedido de citação desta Acção), isto é, 14 anos 8 meses e 5 dias de posse desde 24.9.1996 ou seja menos que 15 anos exigidos por lei para a posse de boa-fé e menos de 20 para posse de má fé.
32a - Violou por isso não só o art. 571º nº 1 alíneas b), c) e d) e cit arts 574º nº 1, 576º nº 1, e 653º e segs. todos do Cód. Proc Civil, mas também as invocadas normas da interrupção da posse nomeadamente o art. 315º nºs. 1 e 2 do Cód. Civil de Macau, aplicável por expresso comando do art. 1217º do mesmo Código.
33a - Razões pelas quais deve ser revogada e substituída por outra que repare tais omissões e violações, dando provimento ao presente recurso e pedido de reivindicação do Autor e improcedente a reconvenção a reconvenção do Réu.
Assim se cumprindo a lei e fazendo JUSTIÇA».
*
O réu da acção respondeu ao recurso, concluindo assim as suas contra-alegações:
«1- A sentença recorrida não padece de qualquer vício, não existindo, assim, qualquer motivo para que a mesma seja total ou parcialmente revogada.
2- Não existe qualquer violação a caso julgado nem na perspectiva da presente sentença repetir uma sentença onde havia idênticos sujeitos, pedido e causa de pedir nem na perspectiva da presente sentença violar uma decisão anteriormente transitada em julgado que abrangesse no seu alcance e autoridade os recorridos.
3- Apesar de haver identidade de sujeitos no que aos recorrentes concerne sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (dado que embora não sejam a mesma pessoa física que os AA. que interpuseram os autos nº 123/95, o certo é que adquiriram o direi to que se arrogam daqueles), já o mesmo não acontece quanto aos recorridos pois ainda que a acção tenha sido instaurada contra incertos estes nunca tiveram na mesma qualquer intervenção.
4- Ora a autoridade do caso julgado da sentença proferida nos autos nº 123/95 não faz caso julgado contra quem, na causa sendo incerto, não teve intervenção.
5- Pelo que os recorrentes não têm qualquer razão ao querer estender o alcance do caso julgado da decisão proferida nos autos nº 123/95 aos recorridos.
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto suprimento de V. Excelências, deve, pelas apontadas razões, ser mantida, na íntegra, a sentença recorrida, assim se fazendo a esperada e sã JUSTIÇA!».
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- Na Conservatória do Registo Predial está inscrito a favor dos Autores a aquisição do prédio urbano sito na…, em Macau, descrito sob o nº…, a fls… do Livro…. (alínea a) dos factos assentes)
- Por escritura pública de compra e venda celebrada em 16 de Março de 2009 no 2º Cartório da Notarial de Macau o Autor declarou que comprava a E e esta declarou que vendia àquele o prédio referido na alínea anterior. (alínea b) dos factos assentes)
- Na acção sumária que correu termos no Tribunal de Competência Genérica de Macau sob o n.º 123/95 em que eram Autores F e E e Réus G, H, I, J, Ministério Público e interessados incertos, foram as autoras declaradas únicas proprietárias do imóvel referido em a) por o haverem adquirido por usucapião. (alínea c) dos factos assentes)
- F faleceu em 26 de Março de 1999; (alínea d) dos factos assentes)
- Em 07.05.2007 foi inscrito na competente Conservatória a aquisição do imóvel referido em a) a favor de E e de F. (alínea e) dos factos assentes)
- Em 25.03.2008, o Autor intentou Acção Ordinária CV2-08-0019-CAO para Execução Específica de contrato-promessa de compra e venda, dado as promitentes-vendedoras E e sua mãe F não cumprirem o prometido, nem a falecida F se mostrar substituída por sucessor na parte a esta pertencente na compropriedades. (alínea f) dos factos assentes)
- Na acção que correu termos neste tribunal sob o nº CV1-07-0060-CAO em que eram Autores C e K e Réus F e E, esta contestou em 13.05.2008 nos termos que daquela constam e cuja cópia consta de folhas 160 a 165 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (alínea g) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- O prédio indicado em a) tem encontrado ocupado e fechado a cadeado pelo Réu. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O Réu faz do prédio indicado em a) armazém. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- O Réu faz o referido em 1º e 2º contra a vontade e sem autorização dos Autores. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- O Réu recusa-se a desocupar o prédio referido em a). (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Os Autores declaram pagar à E o montante total de HK$500.000,00 para aquisição dos imóveis sitos nos nº 91 e 93 da Rua…, correspondendo, HK$250.000,00 a cada um deles. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- O prédio referido em a) é um terreno sem água nem electricidade. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- O Réu, pelo menos, desde 1985, utiliza diariamente o imóvel referido em a) para guardar os materiais de metalomecânica e decorações. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- O imóvel referido em a) é um terreno vazio que foi entregue por um Sr. Vong ao Réu, pelo menos, desde 1985. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- O Réu já detinha o nº 89 da mesma rua, onde tinha - e tem - instalada uma oficina de metalomecânica e decorações. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- O imóvel com o nº 89 estava unido pelas traseiras, com o imóvel referido em a). (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Entre o nº 89 e o imóvel referido em a) não existia qualquer parede, até Janeiro de 2011, sendo o nº89 a oficina do Réu. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- É no terreno referido no item anterior que o Réu tem guardado os seus materiais e exerce a sua actividade profissional. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- Existe um contador de electricidade instalado pela C.E.M. que se encontra no imóvel com o nº 89. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- O Réu procede à limpeza do imóvel referido em a). (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- O Réu procedeu relativamente ao imóvel referido em a) nos termos referidos nos itens 11º, 12º, 14º, 15º e 18º à vista de que, ali passa e como se aquele fosse coisa sua. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- O Réu fê-lo na convicção de ser pleno proprietário do imóvel referido na a). (resposta ao quesito 19º-A da base instrutória)
- O Réu é conhecido pelos vizinhos como sendo o dono do imóvel referido em a). (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- O Réu entrava no prédio referido em a), até Janeiro de 2011, por uma abertura que fez nas traseiras do mesmo. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- E e F e o Autor celebraram o acordo constante de fls. 223 e v., cujo teor se dá por integralmente reproduzido. (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- F faleceu sem outorgar a escritura de compra e venda relativa ao prédio referido na alínea a). (resposta ao quesito 24º da base instrutória)».
***
III – O Direito
1 – Os antecedentes
a) Na acção nº 123/95 eram AA F (mãe) e E (filha) e RR, G, H, I, J, e réus incertos, representados pelo Ministério Público (fls. 102 e sgs.).
Pretendiam as AA obter a propriedade pela via da usucapião do prédio identificado nos autos. A sentença de 23/09/96, reconhecendo a posse das AA sobre o prédio desde 1955 reconheceu-as proprietárias.
b) F e a filha E tinham prometido vender o prédio ao A. A em 10/07/1993. Porém, nunca a escritura definitiva foi efectuada, até que, entretanto, em 26/03/1999 a promitente vendedora mãe, F, faleceu.
O A moveu uma acção contra a E (Proc. nº CV2-08-0019-CAO) tendente à execução específica da promessa.
Entretanto, tendo a filha sucedido à mãe, foi ela quem celebrou a escritura pública definitiva de compra e venda em 16/03/2009.
c) Houve ainda outra acção (Proc. nº CV1-07-0060-CAO), movida pelos então Autores C (aqui réu reconvinte) e K contra F e E, que esta última contestou em 13/05/2008 (cfr. fls. 147 e sgs.).
Nessa acção pretenderam os AA obter o reconhecimento da propriedade sobre o dito prédio através da usucapião.
Foi nela proferida sentença, data de 17/10/2008, que decretou a absolvição da instância das RR, por julgar procedente a excepção de caso julgado (fls. 166-168).
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2 – Os presentes autos
a) Em 23/05/2011 deu entrada a presente acção de reivindicação;
b) Os RR invocaram, em reconvenção, a usucapião sobre o prédio;
c) Os AA, na réplica, suscitaram as excepções de interrupção da usucapião e a autoridade do caso julgado;
d) O saneador julgou improcedente a excepção do caso julgado e relegou para final a excepção de interrupção do prazo de usucapião;
e) A sentença, julgou improcedente a referida excepção de interrupção de prazo de usucapião, e, quanto ao fundo, decretou a favor dos RR reconvintes a propriedade sobre o prédio pela via da usucapião.
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3 – O recurso jurisdicional
No recurso em apreço, os autores da acção acometem:
1 – O despacho que recaiu sobre a reclamação quanto à matéria de facto, nos termos do art. 430º, nº3, do CPC;
2 – A sentença final, por entenderem que:
i) - Não podia atribuir a propriedade sobre o prédio aos RR reconvintes, face à «autoridade de caso julgado» proveniente da sentença proferida no Proc. nº 123/95, que às ali autoras F e E tinha reconhecido a usucapião com fundamento em posse desde 1995 até à data da sua prolação, ou seja , até 23/09/1996.
Ou seja, não poderia a sentença recorrida ter considerado no cômputo do prazo de usucapião o período de 1985 até à data da sentença que àquelas reconhecera também a posse ininterrupta. E assim, só a partir de 24/09/96 podia eventualmente reconhecer-se o início da contagem do prazo de usucapião a favor dos reconvintes, que terminaria em 24/09/2011 ou 24/09/2016, consoante a posse fosse de boa ou má fé, respectivamente.
ii) – O decurso do prazo de usucapião do réu sobre o prédio se deveria ter por interrompido em:
- 6/06/2008, data da notificação da contestação das rés F e E (apresentada em 13/05/2008) na acção proposta em 10/07/2007 pelo aqui Réu C e por K no Proc. nº CV1-007-0060-CAO; ou
- 28/05/2011, data que deve ser considerada nos termos do art. 315º, nº2, do CC, uma vez que a presente acção foi interposta no dia 23/05/2011.
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4 – Apreciando
4.1 – Da reclamação sobre a matéria de facto
a) Defendem os recorrentes (autores da acção) que não podia o despacho de fls. 218 indeferir a reclamação sobre a matéria de facto dada por assente no despacho de fls. 195 e sgs.
Era sua pretensão que o tribunal fizesse constar o conteúdo integral da sentença proferida no proc. nº 123/95 em 23/09/1996 em vez da simples alusão efectuada na alínea c) dos factos: “Na acção sumária que correu termos no Tribunal de Competência Genérica de Macau sob o n.º 123/95 em que eram Autores F e E e Réus G, H, I, J, Ministério Público e interessados incertos, foram as autoras declaradas únicas proprietárias do imóvel referido em a) por o haverem adquirido por usucapião”.
Ora, em nossa opinião, não faria sentido transcrever o conteúdo da referida sentença. Esta está documentada nos autos (fls. 102-110) e a sua referenciação na alínea c) não tem outro objectivo senão o de para ela remeter.
Evidentemente, o tribunal teve que a ler para aquilatar do seu conteúdo e para dela colher a fundamentação e respectiva dispositividade e efectuar o confronto com a pretensão manifestada nos presentes autos, quer pelos AA, quer pelos RR reconvintes.
E foi o que aconteceu. Realmente, conforme se pode ler no aludido despacho (saneador de fls. 196-198), o tribunal estudou a sentença ali certificada e concluiu que não estava perante o “caso julgado” por falta de identidade de sujeitos, em virtude de naquela acção os aqui RR/reconvintes não terem sido parte processual (teria havido réus identificados e outros incertos, estes, porém, representados pelo MP).
Ora, o que pode estar errada é a decisão tomada sobre o “caso julgado”, mas isso em nada depende da ausência da transcrição do conteúdo da referida sentença. Aliás, seria incomum e atentatório do princípio da economia processual transcrever o conteúdo integral de uma sentença, enchendo páginas inutilmente, se o tribunal ao fazer constar da alínea c) da factualidade assente já teve que fazer dela a devida leitura para dela colher os fundamentos que utilizou para decidir pela inexistência do “caso julgado”.
Se o tribunal andou bem ou mal nessa decisão, se não esteve atento a todos os pormenores fundamentativos da sentença, se o quadro factual e jurídico resultante dessa sentença o deveria ter obrigado a julgar de maneira diferente o “caso julgado” isso é já outra coisa, que haveremos de apreciar mais adiante.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
+
b) Os recorrentes elegem ainda uma “2ª questão”.
Na alínea e) dos factos consta que “Em 07.05.2007 foi inscrito na competente Conservatória a aquisição do imóvel referido em a) a favor de E e de F”.
Os então AA, ora recorrentes, reclamaram pretendendo que àquela matéria fosse aditada esta outra: “E em 13 de Agosto de 2008, a parte pertencente à F foi também inscrita a favor da E por sucessão hereditária”. E esta pretensão não foi acolhida no despacho de fls. 218.
Pois bem.
A intenção dos reclamantes/ora recorrentes era tornar inquestionável o trato sucessivo verificado a propósito deste prédio. Quer dizer, a sua ideia era que ficasse muito claro que o direito de propriedade de sobre o prédio adquirido por mãe F e filha E pela via da usucapião se teria concentrado apenas na esfera desta, após o decesso da primeira, e que esse direito assim concentrado na esfera da filha por sucessão, teria transitado para o A através da compra e venda com ele celebrado.
Pois bem. Compreendemos a sua preocupação; podia, efectivamente, ter sido consignado aquele segmento adicional pretendido pelo reclamante, até porque ele tinha apoio documental (fls. 13, da certidão junta como doc. nº5 da réplica).
Simplesmente, não foi, nem podia ser, por causa dessa omissão que a acção naufragou. E é bom não esquecer que, sendo um elemento documental dos autos, em recurso sempre este TSI podia levar na devida consideração tal facto e extrair dele a devida consequência. Quer dizer, nunca o caso deixaria de ter outra solução, se o tribunal de recurso conferisse a tal documento o valor que a 1ª instância lhe não desse.
Mas, repetimos, à solução que o saneador encontrou para não concluir pela existência do “caso julgado” foi totalmente indiferente essa questão.
Daí que não proceda o recurso com este fundamento.
+
c) Acham ainda os recorrentes que o tribunal errou quanto à 3ª questão.
Em sua opinião, era essencial que fosse quesitado que a posse há mais de 30 anos quesitada a favor dos réus/reconvintes nos artigos 10º e 11º da base instrutória deveria ter sido reportada à posse a partir de 24/09/1996. E isto porquê? Porque desde 1955 e até 23/09/1996 (data da sentença a que se referia a acção nº 123/95) já os actos de posse foram provados a favor de F e filha E, necessários ao reconhecimento da propriedade por usucapião na esfera destas.
Ora, dizem os recorrentes, por força da autoridade do caso julgado, não poderia ter sido feita a quesitação daquela forma (arts. 10º e 11º), pois ela cobre parte do tempo que estava já reconhecido e integrado no período atendido para a usucapião na esfera daquelas.
Também aqui entendemos o alcance da reclamação e do presente recurso. Todavia, o exercício que os recorrentes fazem é sobre uma matéria de direito. Ou seja, para si, a quesitação temporal deveria ter sido diferente com vista a respeitar o caso julgado na parte pressuposta do reconhecimento e da aquisição da propriedade a favor das referidas proprietárias.
Todavia, os recorrentes já estão a partir do princípio de que nesse período de tempo já não é mais possível mexer, que ninguém mais pode demonstrar ter praticado actos de posse tendentes à aquisição do mesmo direito e pela mesma via de usucapião. E isso não é líquido do ponto de vista jurídico.
Daí que fosse necessário atender à aquisição do maior número de factos, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito. Para tanto, haveria que deixar os réus provar se, contra o que estava plasmado a favor de outras pessoas noutra acção, eles praticaram actos de posse que pudessem conduzir à demonstração da usucapião.
Isso foi bem feito através daqueles arts. 10º e 11º, nada havendo que censurar a essa forma de quesitação.
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d) – Por fim, os recorrentes trazem ao presente recurso uma outra razão concernente à matéria de facto.
Agora, porém, reportam-se ao julgamento sobre determinada factualidade (acórdão de fls. 305-307) a respeito da qual apresentaram reclamação a fls. 308 (tradução a fls. 9 do apenso “traduções”), a qual mereceu a decisão de fls. 309-310 dos autos.
É preciso, no entanto, dizer que esta situação é diferente da que está prevista no art. 430º, nº3, do CPC. Com efeito, deste preceito resulta que o despacho proferido sobre as reclamações apresentadas relativamente à selecção da matéria de facto pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da sentença final.
Diferente é a impugnação do próprio julgamento da matéria de facto (art. 556º, do CPC). Aí, do despacho ou acórdão que decida a matéria de facto só cabe uma forma de impugnação: a reclamação a que se refere o nº5 desse artigo. Decidida, porém, a reclamação não é admitida nova reclamação, nem recurso autónomo1. O que pode é haver impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 599º e 629º, do CPC.
Ora, o que os recorrentes fazem é atacar a decisão proferida sobre a reclamação (arts. 133º, das alegações) considerando que ela violou o nº2, do art. 558º do CPC, conjugado com o disposto nos art.s 574º, nº1 e 653º e sgs. do mesmo Código. Em sua opinião, com efeito, face aos termos em que a factualidade tinha sido assente no processo nº 123/95, que reconheceu às referidas F e filha E os actos de posse desde 1955 até 23/09/1996 sobre o prédio, diferente prova só podia ter sido alcançada através de recurso extraordinário de revisão ou de oposição de terceiro.
Isto significa que os recorrentes não estão a fazer uso do mecanismo de impugnação da matéria de facto do art. 599º, do CPC, além do mais por nem terem respeitado os requisitos do preceito, mas sim e apenas manifestar uma posição contrária à tomada pelo colectivo da 1ª instância quando se pronunciou sobre a reclamação de fls. 308. E se é assim, também a argumentação aduzida sobre o meio próprio para alcançar a prova sobre nova e diferente factualidade relativamente à obtida na acção nº 123/95 (o recurso extraordinário de revisão ou de oposição de terceiro) não tem aqui cabimento.
Cabe-nos, aliás, dizer que uma matéria sobrevive sem a outra ou para além da outra. Quer dizer, a prova feita num processo pode ser perfeitamente contrariada noutro, desde que o litígio se desenrole entre partes diferentes. Logo, ao caso não parece que seja invocável tal fundamentação.
Neste sentido, o recurso tem que improceder.
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4.2 - Da sentença final,
Insurgem-se os autores da acção contra a sentença, em primeiro lugar, por considerarem que ela violou a «autoridade de caso julgado» proveniente da sentença proferida no Proc. nº 123/95, que às ali autoras F e E tinha reconhecido a usucapião com fundamento em posse desde 1955 até à data da sua prolação, ou seja , até 23/09/1996.
Em primeiro lugar, importa que se diga que esta questão já havia sido colocada pelos AA na réplica (art. 51º e sgs.), à reconvenção deduzida pelos RR na sua contestação.
Todavia, os replicantes não reagiram contra a solução dada pelo tribunal “a quo”, conformando-se com ela.
Só agora ressuscitam o problema, alegando que o tribunal não chegou a fazer pronúncia sobre ele e que, em vez disso, decidiu uma matéria que ninguém invocou.
Não concordamos. Pode ter errado a qualificação jurídica da matéria exceptiva ou pode tê-lo feito conscientemente; pouco interessa. A verdade é que o despacho saneador, resolveu a questão à luz dos arts. 416º e 417º, do CPC; ou seja, tratou o assunto na perspectiva da excepção de caso julgado (fls. 195-198).
Ora, se o tribunal decidiu o assunto, porventura sem consciente do poder previsto na 1ª parte do art. 567º, do CPC, não pode a mesma matéria ser reeditada à sombra do presente recurso, por tanto o impedir o caso julgado formal.
Nesta óptica, improcede o recurso.
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4.2.1 – Imaginando que se trata de matéria que não está coberta pelo dito despacho saneador - e só por razões de cautela o admitimos – nem por isso cremos que os recorrentes tenham razão.
Vejamos.
Antes de mais, cumpre deixar uma nota de precisão sobre a matéria em causa. Só existe um instituto atinente ao caso julgado: o previsto nos arts. 416º e 417º do CPC. E sobre ele, fala-se em caso julgado formal e material, o primeiro para dizer que tem valor intraprocessual somente, vinculando as partes no próprio processo (são os limites subjectivos e a eficácia relativa do caso julgado), e o segundo para fazer entender que a relação material em litígio, com o trânsito da decisão respectiva, fica definitivamente resolvida, tendo força obrigatória dentro e fora do processo, impedindo que o mesmo ou diferente tribunal possa definir a relação jurídica em moldes diferentes daqueles (estamos já no âmbito dos limites objectivos do caso julgado).
Quando se fala em caso julgado, é basicamente na excepção ali prevista que se pensa. O caso julgado é, nesse sentido, uma excepção dilatória que pressupõe uma tríplice identidade: de sujeitos, pedido e causa de pedir. Tem em vista impedir a repetição de uma causa face ao resultado de outra já decidida e, nesse sentido, vem sendo considerada como excepção com uma vertente negativa.
Por exemplo, se a sentença reconhece a A o direito de propriedade sobre um terreno por usucapião e obriga B a restituir-lho, não pode mais tarde B intentar outra acção contra A tentando obter a propriedade com base na mesma causa de pedir. Impede-o o caso julgado já firmado e impede-o a necessidade de que toda a defesa do R deva ser feita no momento em que é chamado a defender-se e não posteriormente em acção diferente por si intentada2.
Ou, “se o réu foi condenado a entregar uma coisa ao autor, aquele não pode instaurar uma acção pedindo a restituição da mesma coisa; se o autor obteve a condenação do réu a cumprir a prestação a que este se obrigou contratualmente, não pode invocar a invalidade do contrato na acção em que o réu pede o cumprimento da sua prestação sinalagmática3”
Acontece, porém, que há muitas situações que os preceitos citados não parece resolverem.
Por exemplo, se com base numa escritura de compra e venda A intenta contra B a acção pedindo a sua restituição, e a sentença lhe satisfaz a pretensão, poderá B intentar mais tarde contra A outra acção invocando a aquisição do direito de propriedade por acessão industrial imobiliária?
As pessoas são as mesmas, mas a causa de pedir é diferente; portanto, não haveria caso julgado enquanto excepção. Todavia, não faria sentido que as mesmas partes viessem pleitear de novo sobre o mesmo assunto, ainda que sob um outro ponto de vista, atentas a segurança e a certeza jurídicas decorrentes do trânsito em julgado da 1ª decisão. Daí que se entenda que o assunto está resolvido pela primeira decisão, que assim se impõe. É então que se fala na vertente positiva do caso julgado, através daquilo que se vem convencionando autoridade do caso julgado4.
Esta autoridade de caso julgado surge assim nalguma doutrina e jurisprudência como modo de estender a eficácia do caso julgado onde, em princípio, ela não iria, face aos requisitos sabidos da excepção prevista nos arts. 416º e 417º acima referidos.
Mas, nem por assim ser, podemos abrir demasiado as portas à autoridade do caso julgado, de modo a desvirtuar aquilo que constitui a raiz fundamental da figura do caso julgado. Ou seja, nem sempre a inexistência dos requisitos do caso julgado atiram o problema para a autoridade do caso julgado. O “objectivo de evitar toda e qualquer contradição lógica entre duas sentenças judiciais, ainda que proferidas em processos diferentes, não pode justificar que, contra as mais elementares regras processuais, se façam repercutir numa acção que corre entre determinados sujeitos os efeitos decorrentes de uma sentença proferida noutro processo que correu entre outros sujeitos”5.
É por isso que segundo alguma jurisprudência esta autoridade impõe que, mesmo que se reúnam os requisitos da identidade do pedido e da causa de pedir, ao menos haja de haver identidade de partes6.
Seguindo-se esta tese, parece evidente que o recurso em apreço tem que improceder, uma vez que a sentença proferida no âmbito da acção nº 123/95 teve por sujeitos processuais as ali autoras F e E e reus G, H, I, J e interessados incertos, representados pelo MP, ao passo que aqui o litígio decorre entre partes diferentes.
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4.2.2 – Mas, temos que admitir que outra corrente de opinião também possa ser sustentável, a ponto de considerar que a autoridade de caso julgado dispensa a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir.
Ainda assim, mesmo que a autoridade dispense a referida tríplice identidade, a verdade é que, mesmo aí, tal entendimento “…não pode conduzir que, quando tal identidade se não verifique, naufragando a procedência da excepção, se desemboque do mesmo modo no caso julgado, por força da sua autoridade. Seria fazer entrar pela janela o que não entrara pela porta, considerando, em termos práticos, letra morta os requisitos daquele artigo 498º”7
Este aresto acha, por isso, que deve ser feita uma delimitação da figura da autoridade do caso julgado, limitando-o aos casos em que o ”objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida…”, citando Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, 2º, pág. 3548.
Outra delimitação consiste na integração da figura da “autoridade do caso julgado” às situações de preclusão, isto é, àqueles em que o réu deveria ter feito no momento próprio a invocação do seu direito (e não apenas a defesa à matéria da causa de pedir da acção) e que, por o não ter feito, ele para sempre precludiu9.
Ora bem. É certo que esta segunda delimitação não se ajusta à situação dos autos, porque os réus reconvintes não estiveram no processo onde o direito de propriedade foi reconhecido pela força da usucapião àquelas F e E.
Ora, é precisamente nesta linha que se vem falando da eficácia do caso julgado relativamente a terceiros.
Nunca os RR, por não terem sido chamados à acção nº 123/95 poderiam ser abrangidos pela sentença ali decretada. Em relação a ela, eles eram terceiros, mesmo que no processo tenha havido citação de incertos. E não se pode dizer que eles eram juridicamente indiferentes em relação a essa causa e, pelo contrário, até se pode afirmar que em relação à mesma coisa (o prédio) eles se arrogam a qualidade de proprietários numa posição jurídica perfeitamente incompatível com a além reconhecida.
Ora, é para este tipo de casos e de terceiros que se acha que se não pode estender a eficácia da sentença transitada em julgado10.
Ou seja, nenhum obstáculo existia a que os RR/reconvintes pudessem nesta acção pedir o reconhecimento da propriedade pela via da usucapião sobre o mesmo prédio, não obstante noutra acção anterior a propriedade dele ter sido reconhecida a favor de F e E, a quem os AA o adquirira.
Neste sentido, enfim, entendemos que, da mesma maneira que inexiste a “excepção de caso julgado” no caso em apreço, também somos a entender que não podemos estar perante uma situação de “autoridade de caso julgado”.
Improcede, pois, o recurso quanto a este aspecto.
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4.2.3 – Da interrupção da usucapião
Por fim, os recorrentes defendem que a sentença deveria ter tomado em consideração que o decurso do prazo de usucapião do réu sobre o prédio se deveria ter por interrompido em:
a) - 6/06/2008, data da notificação da contestação das rés F e E (apresentada em 13/05/2008) na acção proposta em 10/07/2007 pelo aqui Réu C e por K no Proc. nº CV1-007-0060-CAO; ou
b) - 28/05/2011, data que deve ser considerada nos termos do art. 315º, nº2, do CC, uma vez que a presente acção foi interposta no dia 23/05/2011.
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4.2.3.a) - Continuação
Ora bem. O argumento que aqui aduz em 1º lugar vem importado da resposta à reconvenção. Para os AA, na acção que o ora réu C moveu contra E e F (Proc. nº CV1-07-0060-CAO) pedindo a usucapião do prédio em apreço, a contestação apresentada por E em 13/05/2008 (notificada em 6/06/2008) teria o condão de interromper o prazo de usucapião.
É verdade que nos termos do art. 1217º do CC se aplicam, com as necessárias adaptações, à usucapião as regras da suspensão e interrupção da prescrição. E certo é ainda que, nos termos do art. 315º, nº1, do CC a prescrição se interrompe “…pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”.
Portanto, a citação referida naqueles autos (que, recorde-se, terminaram com a absolvição da instância) poderia, sim, ter esse efeito interruptivo. Factores interruptivos são, para o efeito do artigo, a citação e a notificação judicial de acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito. Mas, tal como dispõe a parte final do nº1, não é obrigatório que o processo em que se verifique a citação ou a notificação seja aquele em que se esteja a exercer o direito. Podem aqueles actos ocorrer num processo judicial preparatório (por exemplo, num procedimento cautelar); o que interessa é que, por esse processo, seja já possível fazer saber ao citado/notificado que o interessado faz tenção de exercer o seu direito noutro. Quer dizer, a previsão normativa cobriria “todas as hipóteses de relação jurídica litigiosa” (neste sentido, por exemplo, Dias Marques, Prescrição Extintiva, Coimbra Editora, 1953, pág.167-168).
Só que, como é sabido, a interrupção só pode ter lugar se o prazo de prescrição (leia-se, agora, se o prazo da usucapião) ainda não tiver já decorrido11.
Ora, sendo assim, se o período da posse para os RR começou em 1985, conforme aqui demonstrado, quando aquela E deduziu contestação em 13/05/2008 (notificada em 6/06/2008) já o prazo de vinte anos contado desde 1985 (art. 1221º, do CC) se encontrava esgotado em 6/06/2008.
Só não seria assim – o que obrigaria a acolher a tese dos recorrentes – se a posse dos RR, para aquele efeito, apenas se pudesse contar desde 24/09/1996. Todavia, para tal se concluir sempre seria necessário conferir à autoridade de caso julgado a importância que os AA lhe atribuem, de modo a fazer prevalecer a sentença de 23/09/1996 sobre aquela que aos RR reconvintes aqui reconheceu igual direito de usucapião sobre o prédio. E isso, não é possível, tal como já vimos.
Tem razão, portanto, a sentença ao ter concluído desta mesma maneira.
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4.2.3.b) – Continuação
Neste segmento da sua impugnação, vêm os AA invocar a interrupção em 28/05/2011.
E isto por, com base nos mesmos fundamentos jurídicos acima referidos, a presente acção ter sido instaurada em 23/05/2011 e a interrupção se ter verificado no 5º dia posterior nos termos do art. 315º, nº 2, do C.C.
Mas, uma vez mais este argumento não procede, porque assenta num silogismo errado.
Na verdade, para a procedência deste argumento seria necessário que o prazo da usucapião, nessa data de 28/05/2011, ainda não tivesse transcorrido. Ora, quando a acção foi intentada já o prazo de vinte anos para a aquisição por usucapião sem título e sem registo (art. 1221º, CC) estava já esgotado. A referida citação já não podia ter nessa ocasião nenhum efeito interruptivo.
Razão, pois, para também este fundamento do recurso se ter por improcedente, não obstante a diligência, empenho, esforço e estudo do caso feito pelos AA ao longo de todo o processo na tentativa de demonstrarem a sua razão no litígio.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
TSI, 21 de Maio de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pág. 508.
2 Neste sentido, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, págs. 306, 324; Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção em Processo Civil, págs. 418, 429, 441, 453; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III; pág. 394.
3 Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, pág. 579.
4 Ac. STJ, de 11/10/2012, Proc. nº 1999/11
5 Neste sentido, o Ac. do STJ, de 18/06/2014, Proc. nº 209/09.
6 Por exemplo, Ac. do STJ, de 10/10/2012, Proc. nº 1999/11; Ac. do STJ, de 13/07/2010, Proc. nº 464/05; Ac. do STJ, de 28/06/2014, Proc. nº 209/09.
7 Ac. do STJ, de 29/05/2014, Proc. nº 1722/12
8 Sobre a questão da prejudicialidade, ver ainda Miguel Teixeira de Sousa, ob,. cit., pág. 580-581 e 596.
9 È a posição do Ac. de 10/10/2012, Proc. nº 1999/11 acima já referido. Manuel de Andrade, Noções Elementares…cit., pág. 324-325.
10 Manuel de Andrade, Noções Elementares…cit., pág. 312-313; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 726-727; Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 579 e 588
11 Ac. STJ, de 15/02/1977, Proc. nº 066349; ou Ac. STJ, de 24/03/1999, Proc. nº 99S012
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261/2015 35