Proc. nº 332/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 28 de Maio de 2015
Descritores:
-Prova testemunhal
-Livre convicção do julgador
-Documentos particulares
-Força probatória formal
-Força probatória material
SUMÁRIO:
I. Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC.
II. E é por tudo isso também que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.
III. Face a um documento particular (art. 356º, nº1, “fine”, do CC) que é apresentado pelo A. contra o réu, se este não impugnar a assinatura cuja autoria lhe imputa, fica provada a sua autenticidade ou a força probatória formal, por reconhecimento tácito (art. 368º e 370º, nº1, do CC), ou seja, fica demonstrada a emissão e a autoria ou a proveniência das declarações.
IV. No que respeita à força probatória material, na parte em que tais declarações se têm por confessórias e desfavoráveis ao seu autor, tal como flui dos arts. 351º e 353º, do CC, também importa concluir que os respectivos factos se devem ter por plenamente provados, tal como resulta do art. 370º, nº2, do CC, a não ser que o réu prove a falsidade do documento, a falta de vontade ou quaisquer vícios da vontade, ou o documento contenha notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras ou emendas e outros vícios externos, caso em que o juiz fixa livremente a medida em que tais vícios excluem ou reduzem tal força probatória.
Proc. Nº 332/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A Macau, SA, registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis sob o nº… com sede em Macau, Taipa, Estrada…, The A Macau Resort Hotel, Executive Offices – L2, ---
Instaurou no TJB (Proc. nº CV1-09-0072-CAO) acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra,
B que também usa C, nacional de Singapura, portador do passaporte de Singapura nº…, residente em…, Singapore…, ---
Pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de MOP$5.150.000,00 acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa de 18% desde a data do vencimento até integral pagamento.
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Na contestação, o réu, invocando que a concessão de crédito não foi para si próprio, mas para outra pessoa, requereu sua intervenção principal provocada.
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Por despacho de 16/04/2010, foi o requerimento indeferido.
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Contra tal decisão interpôs recurso o réu, em cujas alegações, formulou as seguintes conclusões:
«A. O Recorrente não fez nenhuma alegação que permita a conclusão de que este não tem dúvidas sobre a titularidade da relação material controvertida, nem a de que se reconhece como mutuário da quantia peticionada; apenas não negou ter assinado o Contrato de Mútuo objecto do presente litígio.
B. De acordo com os termos do Contrato de Mútuo, o mutuário deveria assinar um documento denominado “Fund Withdrawal Acknowledgement”, sempre que lhe fossem entregues fichas de jogo, o que não sucedeu, não tendo a Recorrida alegado esse facto ou junto quaisquer documentos comprovativos a esse respeito.
C. O Recorrente nunca recebeu quaisquer fichas ao abrigo do Contrato de Mútuo, tendo antes as mesmas sido entregues ao chamado D.
D. O interesse processual do chamado em contradizer a presente demanda é equivalente ao do Réu chamante, ora Recorrente, porquanto aquele tem o mesmo interesse na eventual improcedência da acção, tendo o Recorrente demonstrado e fundamentado devidamente que o chamado é também sujeito da relação material subjacente, dado que o objecto do contrato, a quantia mutuada, foi entregue a este.
E. A jurisprudência admite a intervenção provocada nos casos em que assiste ao chamante o direito de regresso sobre o chamado.
F. O Recorrente não especificou expressamente que pretendia a intervenção principal, mas apenas a intervenção provocada.
G. Assim, no caso de se entender que a forma de intervenção provocada requerida pelo Recorrente não é a adequada, sempre seria legítimo este chamar o terceiro a título de intervenção acessória.
H. Dado que o requerimento do Recorrente continha os fundamentos necessários para a intervenção acessória do chamado, a não admitir a intervenção principal, sempre deveria ter o Tribunal a quo feito a correcção oficiosa do mesmo, por forma a acautelar os interesses do Recorrente e do chamado.
Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada, considerando-se procedente o presente recurso e, em consequência, ser admitida a intervenção provocada, ou, em alternativa, ser ordenada a alteração da decisão recorrida, corrigindo-se oficiosamente a forma do incidente para a intervenção acessória.».
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A autora respondeu ao recurso, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
«1º - O Recorrente interpreta, salvo o devido respeito, erradamente o despacho recorrido, pois que a ideia expressa por tal despacho prende-se com a ausência de dúvidas da Autora, ora Recorrida, sobre a relação material controvertida.
2º - É admitida, durante a pendência de uma causa, a intervenção como parte principal daquele que, em relação ao objecto da causa, tiver um interesse igual ao do Autor ou Réu, cabendo ao Requerente do chamamento, o ónus de fundamentar e justificar o interesse, estando, para o efeito, ao seu alcance produzir prova e arrolar testemunhas.
3º - Não basta, para preencher as exigências de fundamentação previstas no Código, a mera alegação de factos sem qualquer suporte probatório, por mais perfunctório que este possa ser, ou mesmo “o facto de se suscitarem dúvidas quanto à disponibilização das fichas de jogo”.
4º - Sendo que dos factos alegados pelo Recorrente em sede de Contestação não é, de modo algum, possível depreender a existência de uma qualquer relação de solidariedade passiva entre o Recorrente e Chamado, D, na dívida detida pelo Recorrente perante a Autora, ora Recorrida.
5º - Nem sequer é possível inferir-se o mais ténue indício relativo à detenção de um qualquer direito de regresso pelo Recorrente sobre o Chamado relativamente ao direito de crédito sub judice, quanto mais as razões demonstrativas da viabilidade de uma acção de regresso e da sua conexão com a causa principal em discussão nos autos.
6º - O Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 2004, admite a correcção oficiosa da forma do incidente de intervenção “desde que o respectivo requerimento comporte os elementos fundamentais da forma incidental adequada ao caso”.
7º - O Recorrente, na sua Contestação (vide artigos 28º a 44º, para os quais os artigos 57º a 59º remetem), limitou-se a alegar a sua ilegitimidade como devedor na causa sub judice e finalmente a terminar com o pedido de intervenção principal do verdadeiro devedor.
8º - O que, a depreender-se de tais factos um qualquer interesse do Chamado, o que de todo não se admite, seria sempre um interesse igual (ou quiçá até superior) ao do Réu na presente causa e nunca a existência de um qualquer direito de regresso que obrigasse o Chamado em relação ao Recorrente.
9º - Finalmente, o Recorrente, em sede de Contestação, requer a intervenção provocada do Chamado nos termos dos arts. 267º e 268º do Código de Processo Civil, que, sistematicamente, se encontram no Livro II, Do Processo em Geral, Capitulo II, Incidentes da Instância, Secção III, Intervenção de Terceiros, Subsecção I, Intervenção principal, Divisão II, Intervenção Provocada.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. certamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, mantendo-se assim o despacho recorrido, assim se fazendo JUSTIÇA!».
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Prosseguiram os autos, tendo na oportunidade sido proferida sentença, que julgou a acção procedente, condenando o réu a pagar à autora a quantia de Mop$ 5.150.000,00 acrescida de juros demora.
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O réu, inconformado com a sentença dela recorre, apresentando as seguintes conclusões alegatórias:
«I. Vem o presente Recurso interposto da decisão final proferida pelo Tribunal a quo e nos termos da qual foi o ora Recorrente condenado a pagar à Autora, A Macau, S.A., a quantia de MOP$5,150,000.00 acrescida de juros de mora à taxa de 18% ao ano a contar de 17.10.2008 até integral e efectivo pagamento.
II. É com esta decisão que o ora Recorrente não se conforma, estando em crer que, salvo devido respeito, conjugando o depoimento prestado pelas testemunhas e o documento de fls. 7 e 8, mal andou o douto Tribunal a quo ao dar como provado que: “d) No âmbito da sua actividade e no seguimento da assinatura do acordo aludido em c), em 02.10.2008, a Autora emprestou ao Réu o montante de HKD5,000,000.00 (cinco milhões de dólares de Hong Kong) (quesito 1.º); e) A quantia referida na alínea anterior foi entregue ao Réu através de fichas de jogo (quesito 2.º); g) O documento constante de fls. 8 do autos é o Fund Withdrawal Acknowlegment / “marker” previsto na cláusula 7.º do acordo escrito assente em c). (quesito 10.º)”
III. Em primeiro lugar as testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento não demonstraram qualquer conhecimento directo quanto ao facto de a Autora ter entregue ao Réu HK$5,000,000.00 em fichas de jogo, pois que nenhuma delas presenciou a entrega efectiva dessas fichas por parte da Autora ao Réu.
IV. Tanto assim é que o douto Tribunal a quo não considerou provado na íntegra o quesito 2.º da base instrutória, tendo considerado não provado o facto de as fichas de jogo terem sido entregues em mão ao ora Recorrente. E se as fichas não foram entregues em mão ao Recorrente, como o foram?
V. Salvo devido respeito, tal facto - a entrega em mão das fichas de jogo ao Recorrente deveria ter ficado provado sob pena de não haver maneira de se concluir que efectivamente o ora Recorrente foi beneficiário das referidas fichas de jogo no valor de HK$5,000,000.00.
VI. A entrega das fichas ao ora Recorrente trata-se de um facto essencial para a sua condenação, pois que, a subscrição pelo Recorrente do documento de fls. 8 sem a prova da entrega efectiva das fichas ao Recorrente não é suficiente para se condenar este último no pedido aduzido pela Recorrida.
VII. A efectiva entrega do valor concedido em crédito sob a forma de fichas de jogo, enquanto prestação da Recorrida, é um dos elementos constitutivos da relação contratual, e trata-se de um facto essencial e predeterminante à utilização de qualquer garantia ou declaração de dívida assinada pelo Recorrente que, naturalmente, assume uma natureza acessória do crédito;
VIII. Por outro lado, se atentarmos no teor da Cláusula 7.ª do Contrato de Concessão de Crédito (fls. 7 dos autos) e no teor do próprio documento de fls. 8, chegaríamos, salvo devido respeito por melhor opinião, à conclusão de que o documento de fls. 8 dos autos não se trata do Fund Withdrawal Acknowledgment mencionado na Clausula 7.ª do Contrato de Concessão.
IX. Não obstante as testemunhas terem confirmado que o documento n.º 8 dos autos se trata do Fund Withdrawal Acknowledgment mencionado na Clausula 7.ª do Contrato de Concessão (ou marker), a verdade é que, o depoimento das testemunhas não deveria ser suficiente para afastar a total falta de correspondência entre a letra do documento e o seu real significado.
X. É que se atentarmos na letra do documento de fls. 8 e o teor da cláusula 7 do Contrato de concessão, onde se diz que o documento que deve ser assinado pelo devedor aquando da entrega das fichas de jogo deve revestir a forma de um Fund Withdrawal Acknowledgment, facilmente se conclui que tal documento de fls. 8 não tem qualquer referência de que se trata do aludido Fund Withdrawal Acknowledgment.
XI. O doc. de fls. 8 nem sequer menciona a entrega efectiva das fichas, e, tal como acima se disse, a prova testemunhal produzida não deveria ser suficiente para afastar esta discrepância de teores.
XII. Se atentarmos ao teor do Contrato de Concessão de Crédito, nomeadamente a sua Cláusula 5.ª, salvo devido respeito por melhor opinião, o documento de fls. 8 enquadra-se melhor no tipo de documentos aí mencionados, ou seja, “negotiable instrument in the amount of the credit provided”.
XIII. Atendendo a que do depoimento das testemunhas não resultou que as fichas no montante de HK$5,000,000.00 tenham sido entregues em mão ao ora Recorrente, e que a prova produzida não é bastante, no modesto entendimento do ora Recorrente, para se concluir se margem para dúvidas que o documento junto a fls. 8 se trata do Fund Withdrawal Acknowledgment mencionado no Contrato de Concessão de Crédito,
XIV. O douto Tribunal a quo deveria ter dado antes como não provados os factos constantes dos quesitos 1.º, 2.º e 10.º da Base Instrutória e necessariamente absolver o ora Recorrente do pedido.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente ser revogada a decisão recorrida e substituída por uma outra que absolva o ora Recorrente do pedido.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!».
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A autora respondeu ao recurso, não formulando, porém conclusões, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
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Cumpre apreciar.
***
II – Os Factos
A - Do despacho interlocutório
O despacho interlocutório tem o seguinte conteúdo
« “Incidente de intervenção provocada” requerido a fls. 29 e ss.:
O Réu veio deduzir o incidente de intervenção (principal) provocada de D.
Alega, em síntese, que assinou o contrato de mútuo em questão nestes autos a pedido do chamado, e com o intuito de o ajudar a obter crédito junto da Autora, tendo sido o mesmo quem recebeu as respectivas fichas de jogo da Autora e quem as utilizou no seu casino.
A Autora opôs-se ao chamamento de D defendendo, muito em síntese, que a questão suscitada pelo Réu se prende com o mérito da acção, dado que não tem qualquer dúvida sobre quem é o titular da relação material subjacente a este litígio.
Cumpre apreciar.
A Autora formula um pedido de condenação do Réu no pagamento de uma quantia que lhe foi mutuada para jogo, nos termos da Lei 5/2004, de 14 de Junho.
O Réu, ao contestar, defende que não é o responsável pela restituição de tal quantia porque a entregou a terceira pessoa e é no seguimento desta alegação que foi deduzido o incidente de intervenção provocada em apreço.
Ora, nos termos do disposto no artigo 262.º a) do Código de Processo Civil, é admissível a intervenção principal de quem tem um interesse igual ao do réu, nos termos do artigo 27.º do Código de Processo Civil.
Ora, no caso dos autos, segundo o alegado pela Autora na sua PI, o Réu é o mutuário da quantia peticionada, pelo que o chamado não pode ter um interesse igual ao do réu, para efeitos da citada norma; é evidente que, face ao alegado na petição inicial, a Autora não podia demandar ab inicio o réu e a agora chamada.
Assim, é evidente que nos termos do disposto no artigo 262.º a) do Código de Processo Civil, não é admissível a intervenção principal requerida.
E julgamos que também não é admissível a intervenção principal requerida à luz do disposto no artigo 271.º do Código de Processo Civil, visto que, segundo a tese do Réu, nenhuma obrigação terá em relação à Autora que o coloque na posição de condevedor ou de obrigado subsidiário.
À luz do acima exposto indefiro o pedido de intervenção principal deduzido.
Custas do incidente pelo Réu. Notifique.».
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B - Da sentença
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«a) A A. é uma sociedade comercial que se dedica a instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar em casino e outras actividades conexas, tendo outorgado em 19 de Dezembro de 2002 com o Governo da RAEM contrato de Subconcessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou outros jogos em casino na Região Administrativa Especial de Macau e estando-lhe assim concessionada a actividade de exploração e operação de jogos de fortuna e azar em casino;
b) Para além dessa actividade a A. dedica-se acessoriamente ao exercício da actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na Região Administrativa Especial de Macau;
c) O Réu e a Autora, no dia 01 de Outubro de 2008, acordaram nos termos do documento constante dos autos a fls. 7, subscrito por ambas as partes, e denominado AMACAULIMITEDCREDITAPPLICATION/AGREEMENT, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
d) No âmbito da sua actividade e no seguimento da assinatura do acordo aludido em c), em 02.10.2008, a Autora emprestou ao Réu o montante de HKD5.000.000,00 (cinco milhões de dólares de Hong Kong);
e) A quantia referida na alínea anterior foi entregue ao Réu através de fichas de jogo;
f) O Réu obrigou-se a restituir à Autora a quantia de HKD5.000.000,00 (cinco milhões de dólares de Hong Kong) no prazo de 07 dias a contar do dia 02.10.2008;
g) O documento constante de fls. 8 dos autos é o Fund Withdrawal Acknowledgement / “marker” previsto na cláusula 7.º do acordo escrito assente em c).».
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III – O Direito
1 – Do recurso interlocutório
Pretendia o réu fazer intervir nos autos através do incidente da intervenção provocada de D, cidadão de Singapura, que o réu diz ser seu amigo e a favor de quem assinou o contrato de mútuo para facilitar a aprovação do crédito para ele jogar, e a quem, de resto, foram entregues as fichas de fogo.
O requerente não se acha devedor e diz não ter culpa que o seu amigo tenha perdido o dinheiro mutuado.
O despacho impugnado funda-se no facto de o caso não se integrar no âmbito de previsão do art. 262º, al. a), do CPC, na medida em que o interveniente não tem um interesse igual ao do réu (art. 27º do CPC).
Por outro lado, também diz que não se justificaria a intervenção à luz do art. 271º, pois que a matéria invocada pelo réu era suficiente, se provada, para o ilibar da responsabilidade e para o afastar da posição de co-devedor ou de obrigado subsidiário.
Vejamos, então.
O art. 267º do CPC dispõe:
«1. Qualquer das partes pode chamar a juízo os interessados com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2. Nos casos previstos no artigo 67.º, pode ainda o autor chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido.
3. O autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar».
Foi dito no Ac. deste TSI, de 3/04/2014, Proc. nº 628/2013:
«Como é sabido, uma vez admitido o incidente e tendo o chamado intervindo no processo, passa a figurar como parte principal, a ponto de, inclusive, a sentença constituir caso julgado em relação a ele (art. 270º, nº1, CPC). Portanto, o chamado nesse caso é um interessado directo e, na qualidade de réu (portanto, parte principal), supre a ilegitimidade passiva, a ponto de poder vir a ser condenado na respectiva acção em que intervém.
A intervenção principal implica, por isso, uma modificação subjectiva da instância mediante a constituição processual de um novo autor ou um novo réu1, circunstância que se revela excepcional à regra da imutabilidade da instância consagrada no art. 212º, nº1, do CPC. E tal como está configurado o art. 267ºdo CPC, este incidente tanto cobre os casos de litisconsórcio necessário, como o voluntário2 (…).
Duas notas se extraem, desde logo, da norma:
a) A intervenção em causa implica uma associação do chamado a uma das partes.
b) A presença do terceiro é feita a título de parte principal (daí a designação de “intervenção principal”). Ou seja, deixa de ser terceiro, para passar a parte principal. Significa que se opera uma cumulação da apreciação da relação material controvertida entre as partes primitivas com a apreciação da relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a primeira, “conexão essa que era susceptível de desencadear, logo de início, um litisconsórcio ou uma coligação”3.
Ora, assim sendo, se a situação material de que depende a intervenção permitiria a existência de um litisconsórcio voluntário ou necessário desde o início, de modo a que, com a sua presença, por exemplo, o chamado pudesse ser, tal como o primitivo réu, condenado na acção, então, a contrario, a inexistência desse litisconsórcio impedirá o chamamento.
E isto acontece, por exemplo, nos casos em que as posições de chamante e chamado têm origem em relações jurídicas distintas relativamente ao autor e “seja de excluir a existência de qualquer ligação por via de acto ou facto jurídico entre credor e o garante, v.g., quando o direito de regresso, a caracterizar exclusivamente pelo réu, possa resultar de uma mera responsabilidade baseada em subcontrato, numa relação de contratos em cadeia ou em evicção”4.
Por isso se diz que “A intervenção principal, espontânea ou provocada, não é admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha…”5.».
É sabido, por outro lado, que “…a admissibilidade do chamamento não deve ser apreciado somente à luz dos fundamentos da petição inicial, mas sim também do teor da contestação. (…), …o que interessa é ver se estão reunidos os pressupostos da intervenção requerida…”6
Ora, de acordo com a tese exposta pelo réu na sua contestação, a relação material controvertida não lhe diz respeito, mas somente ao amigo de quem pede a intervenção provocada. Isto é, se o réu imputa responsabilidade a este, parece evidente que a situação não é de litisconsórcio voluntário, muito menos necessário. Nesse sentido, não se pode dizer que o interesse do chamando é igual ao do réu requerente.
Como se disse no Ac. do TSI, de 9/06/2011, Proc. nº 32/2011 para uma situação que, embora seja diferente no caso material, tem semelhanças do ponto de vista substantivo: «A autora não podia accionar simultaneamente réu e chamado (…).
De modo que, se a autora obtém ganho de causa contra o réu demandado, mas se ficar demonstrado que a culpa do acidente, afinal não se deveu exclusivamente a culpa sua, mas a culpa do terceiro com quem o réu havia contratado a fabricação dos botes, então o réu terá direito de regresso contra ele. E assim sendo, a situação fica sob a alçada do incidente da intervenção principal acessória, não da principal (neste sentido, também, o Ac. da R.P., de 25/01/1999, Proc. n. 9851313, in www.dgsi.pt).
Eis, pois, a razão pela qual somos levados a pensar não terem sido violadas os arts.262º, 267º e 271º, do CPC, improcedendo o recurso nesta parte. »
Ou seja, o crédito concedido pela autora constitui apenas uma ligação remota nas relações entre réu e amigo chamando, mas por aí se fica. Por esse motivo, pensamos que nunca o requerido do chamamento poderia ser parte principal na acção dirigida contra o primitivo réu. Agora, se existiu um contrato entre R e amigo, ele terá efeitos nas relações internas entre ambos, mas essa convenção é estranha em absoluto à autora.
Por este motivo se julga improcedente o recurso interlocutório.
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2 – Da sentença final
2.1 - A sentença considerou que o contrato de concessão de crédito para jogo foi celebrado com o réu, condenando-o, por isso, a pagar a importância em dívida.
O réu vem agora colocar em causa o julgamento da matéria de facto referente aos arts. 1º, 2º e 10º da Base Instrutória. Em sua opinião, não se mostra demonstrado que as fichas de jogo lhe foram efectivamente entregues, nem que o “Fund Withdrawal Acknowlegment” corresponda ao “marker” a que se refere a resposta ao art. 10º.
Para a respectiva impugnação fez a transcrição das passagens dos dois depoimentos prestados pelas testemunhas da autora.
Apreciando.
É verdade que as testemunhas da autora, as únicas, aliás, que depuseram em audiência, não assistiram à assinatura dos “markers”. Todavia, foram seguras e firmes, tanto quanto este tribunal pode colher da forma como responderam às perguntas que lhes foram feitas. Mostraram saber qual o procedimento que a “A” observa nos contratos de concessão de crédito para jogo, desde a assinatura do contrato propriamente dito (1ª fase) até à assinatura do “Fund Withdrawal Acknowlegment”, documento que para elas não é senão aquilo que numa linguagem mais directa e simples se designa “marker” (2ª fase).
Revelaram, efectivamente, saber que o “Fund” é a mesma coisa que o “marker” e que tal documento representa a efectiva transferência do valor mutuado (total ou parcial) em fichas de jogo para virem a servir nas apostas nas mesas do casino.
Esta “traditio” não precisa de ser total. O cliente, o beneficiário da concessão de crédito sabe que, com a celebração do contrato (1ª fase) passa a ter à sua disposição as fichas que entender até ao limite contratado. Pode utilizá-las de uma só vez e, nesse caso, apenas assinará um “marker”, ou em parcelas ou tranches, consoante a sua necessidade, situação em que deverá assinar vários “markers”, comprovativos da efectiva entrega das fichas.
É isto o que vem provado e não há razões para infirmar o depoimento das testemunhas que revelaram pleno conhecimento da situação.
Não assistiram à entrega das fichas é certo, mas isso em nada as impediu de revelar o que sabem a respeito dos procedimentos normais, sem que o réu alegasse, em defesa por excepção (art. 407º, nº2, al. b, do CPC), haver procedimentos diferentes ou especiais que permitissem a entrega das fichas a terceiros, que não os contratantes. Portanto, se os elementos dos autos não toleram essa possibilidade, fica de pé o procedimento aparentemente único que implica a entrega das fichas a quem foi concedido o crédito.
Quanto a isto, pouco mais há a dizer, senão aquilo que já se sabe a propósito do princípio da prova e da livre convicção do julgador. A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC.
E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu (neste sentido, v.g., Ac. do TSI, de 19/10/2006, Proc. nº 439/2006).
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2.2 - É bom que se não esqueça, por outro lado, que a prova obtida não foi apenas testemunhal, mas também documental.
Ora, quer o documento de fls. 7 dos autos (cláusula 7ª), quer o de fls. 8 são elementos de prova que não podiam deixar de ser, como foram (cfr. respostas e fundamentação a fls. 259), ponderados. Deles emerge que o réu foi o contratante da concessão de crédito para jogo e o beneficiário directo (na relação entre si e o Casino) dessa concessão, além de ter sido concomitantemente o receptor das fichas.
O réu não questionou a falsidade de tais documentos particulares, nem impugnou a respectiva assinatura (art. 368º, 370º, nº1, do CC).
Ora, este documentos de fls. 8 (“Fund…”) funciona como declaração pessoal do recebimento ou transferência das fichas, assim como o de fls. 7 funciona como declaração negocial.
E sendo assim, não só por não ter sido feita a necessária contraprova (art. 339º, do CC), mas ainda porque de tais documentos particulares (art. 356º, nº1, “fine, do CC) se deve considerar reconhecida a assinatura (neste caso, reconhecimento tácito, porque não impugnada), fica plenamente provada a emissão das declarações contidas nos documentos em apreço e a sua autoria (art. 370º, nº1, do CC).
Dito de outro modo, face a um documento particular (art. 356º, nº1, “fine”, do CC) que é apresentado pelo A. contra o réu, se este não impugnar a assinatura cuja autoria lhe é imputada, fica provada a sua autenticidade formal, por reconhecimento tácito (art. 368º e 370º, nº1, do CC), ou seja, fica demonstrada a emissão e a autoria ou proveniência das declarações (essa é a sua força probatória formal).
E na parte em que tais declarações se têm por confessórias e desfavoráveis ao seu autor (neste caso, o recebimento das fichas), tal como flui dos arts. 351º e 353º, do CC, também importa concluir que os respectivos factos se devem ter por plenamente provados, tal como resulta do art. 370º, nº2, do CC (essa é a sua força probatória material).
Só assim não seria se o réu provasse a falsidade do documento, a falta de vontade ou outros vícios da vontade, ou o documento contivesse notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras ou emendas e outros vícios externos, caso em que o juiz fixaria livremente a medida em que tais vícios excluiriam ou reduziriam tal força probatória. (art. 370º, nº 3, do CC). Circunstâncias, porém, que aqui não tiveram lugar.
Desta maneira, não cremos que o tribunal “a quo” pudesse conferir valor diferente a tais documentos.
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Nestes termos, e concluindo, não se pode dizer que a matéria dos artigos constantes da base instrutória a que o recurso se refere foi mal julgada.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos (interlocutório e da sentença).
Custas pelo recorrente.
TSI, 28 de Maio de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, Vol. 1º, 2ª ed., pág.612. Tb. Ac. TSI, de 16/01/2014, Proc. nº 950/2010
2 Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 182. Ainda, o cit. Ac. do TSI, de 16/0/01/2014, Proc. nº 950/2010
3 Abílio Neto, C.P.C. anotado, 21ª edição, pag. 491.
4 Na jurisprudência comparada, ver Ac. R. C., de 29.03.2006,in C.J. 2006, 2º, 273. Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 180.
5 Na jurisprudência comparada, ver Ac. STJ, de 15.02.2007, CJ, 2007, 1º, 72. Na RAEM, ver Ac. TSI, de 9/06/2011, Proc. nº 32/2011.
6 Ac. TSI, de 9/06/2011, Proc. nº 32/2011
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332/2015 21