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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 39 / 2007

Recorrente: A







1. Relatório
   O recorrente A, juntamente com outros arguidos, foi julgado no processo comum colectivo n.° CR1-05-0266-PCC do Tribunal Judicial de Base.
   Afinal o recorrente foi absolvido dos seguintes crimes:
   – um crime de extorsão tentada previsto e punido pelos art.ºs 215.º, n.º 1, 21.º e 22.º do Código Penal;
   – um crime de injúria agravado previsto e punido pelos art.ºs 175.º, n.º 1 e 178.º do Código Penal.
   E foi condenado pelos seguintes crimes:
   – um crime de usura para o jogo previsto e punido pelos art.ºs 13.º da Lei n.º 8/96/M e 219.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 10 meses de prisão;
   – um crime de sequestro previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 2, al. a) do Código Penal na pena de 4 anos e 3 meses de prisão;
   – um crime de injúria agravado previsto e punido pelos art.ºs 176.º, 175.º, n.º 1 e 178.º do Código Penal na pena de 2 meses de prisão;
   – um crime de resistência e coacção previsto e punido pelo art.º 311.º do Código Penal na pena de 2 anos de prisão;
   – um crime de dano previsto e punido pelo art.º 206.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 7 meses de prisão.
   Em cúmulo, foi condenado na pena de 5 anos e 9 meses de prisão.
   Inconformado com a decisão, recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 26 de Julho de 2007 proferido no processo n.º 609/2006, foi negado provimento ao recurso.
   Vem agora o arguido recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões da sua motivação em relação ao crime de sequestro, para além de outras que se incidem sobre os crimes de usura para o jogo e de dano:
   “1. Por outro lado, o acórdão recorrido, na parte que condenou o recorrente pelo crime de sequestro, padece do vício de contradição insanável entre factos provados e não provados, dando como provado, que, “Pelas 10h00 da manhã do mesmo dia, os arguidos B, C e D, contra a vontade do E, levaram-no no carro preto de marca BMW (chapa desconhecida) pertencente ao arguido B, para uma fracção autónoma situada em [Endereço], e exigiram-lhe o pagamento do empréstimo acima referido no valor total de HKD$30,000.00, e se não pagasse não o deixariam sair.”, e, por outro lado, deu-se como não provado, que, “Os 4.º, 5.º e 6.º arguidos bem sabiam que não podiam manter o ofendido, de qualquer forma, e contra a sua vontade, confinado a um espaço fechado, impedindo a sua liberdade de movimentos durante mais de 2 dias, factos esses que os arguidos praticaram de forma consciente e voluntária, agindo por acordo e em conjugação de esforços.”
   2. Esses dois factos encontram-se entre si de forma diametralmente oposta, incompatibilizando-se absolutamente.
   3. Esta incompatibilidade faz inquinar o acórdão recorrido, nessa parte, do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto na al. b) do n.º 2 do art.º 400.º do CPPM, o que impede ao Tribunal a qualificação jurídica desses factos e conduz à anulação do julgamento.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso e revogada a decisão recorrida.
   
   Na resposta emitida pelo Ministério Público e ainda sobre o crime de sequestro, entende-se que não existe qualquer contradição por um facto ser objectivo e outro subjectivo, para além de os dois factos não ter nada a ver com o recorrente. Consequentemente deve ser negado provimento ao recurso.
   
   O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância mantém a posição assumida na resposta.
   
   Foi suscitada a admissibilidade do recurso em relação aos crimes de usura para o jogo e de dano. Notificado da questão, o recorrente não se pronunciou. O Ministério Público pugna pela sua não admissibilidade.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados os seguintes factos pelas instâncias:
   “No dia 5 de Fevereiro de 2005, cerca das 11 horas à noite, o ofendido E, depois de perder todo o dinheiro trazido na Sala VIP do Casino do Hotel(1) e através da apresentação de ‘F’ de identidade desconhecida, emprestou ao arguido A HK$30.000,00 para continuar a jogar, mas é necessário retirar 15% do valor de cada aposta feita por E como juro do empréstimo.
   A partir das 06:14 da madrugada de 6 de Fevereiro de 2005, os arguidos C, D, G e A acompanharam sucessivamente o E a jogar bacará na Sala VIP do Casino(2). O arguido D entregou fichas no valor de HK$28.000,00 a E para jogar e afirmou-lhe ao mesmo tempo que já retirou HK$2.000,00 da quantia de empréstimo acordada como despesas de apresentação a “F’.
   Até às 09:34 da manhã do mesmo dia, E perdeu o referido dinheiro emprestado e assinou o documento de dívida.
   Durante o referido jogo, o arguido D ficou a cargo de retirar HK$10.000,00 como juros.
   Até às 10:00 da manhã do mesmo dia (isto é, 6 de Fevereiro de 2005), os arguidos B, C e D utilizaram o veículo particular do arguido B, de cor preta e de marca BMW (de número de matrícula desconhecida), levaram E, sem o seu consentimento, ao apartamento [Endereço], e exigiram-lhe entregar HK$30.000,00 que inclui o referido empréstimo, sob pena de não o deixar abandonar.
   Depois, E foi vigiado rotativamente pelos arguidos A, C e D.
   Durante a vigilância, os arguidos A, C e D afirmaram de tom formal e sério a E que este tinha de assumir as consequências se não entregasse a referida quantia com a maior brevidade.
   Assim, E não podia deixar de contactar com o seu irmão mais velho H com os telefones XXXXXXXXXXX, XXXXXXXXXXX, XXXXXXXXXXX e XXXXXXXXXXX para entregar o dinheiro por ele.
   Às 7:30 de noite de 11 de Fevereiro de 2005, H recebeu mais uma vez o telefone do seu irmão mais novo E. Os referidos arguidos exigiram a E que tinha de depositar no mesmo dia HK$30.000,00 no cartão do Banco da China n.º XXXXXXXXXXXXXXXXXXX sob pena de sofrer ele próprio as consequências.
   Até às 9 horas de manhã de 12 de Fevereiro de 2005, a polícia chegou ao referido local segundo a denúncia. O arguido C abriu a porta e E retomou a liberdade. Naquele dia encontraram-se ainda no referido apartamento os arguidos A, C, D e I e J.
   Os agentes da PSP encontraram logo numa mesinha do referido apartamento dois telefones móveis, um pertencia ao arguido A de n.º XXXXXXXXXXX, que foi utilizado no mencionado período para contactar H, o irmão mais velho de E, pedindo a entrega do dinheiro (v. o auto de apreensão a fls. 6 dos autos).
   Ao mesmo tempo, os agentes da PSP apreenderam a I, namorada do arguido A, um documento de dívida em que é devedor J (v. o auto de apreensão a fls. 6 dos autos). E apreenderam na mesma altura os telefones móveis dos arguidos C e D (v. fls. 7 e 8 dos autos).
   O arguido A, ao ser detido pelos agentes da PSP, injuriou com palavrões os agentes presentes.
   Depois, ao entrar no carro da polícia e para resistir à detenção da polícia, o arguido A deu um pontapé com a perna direita na cara do lado esquerdo do agente da PSP K, que lhe causou ferimento e hemorragia na boca, atacou com cotovelo o abdómen do agente da PSP L e cuspiu ao agente da PSP M.
   A conduta do arguido A determinou directa e necessariamente os ferimentos (palato e pulso feridos com inchaço ligeiro) referidos no relatório médico legal a fls. 27 ao agente da PSP K com dois dias para recuperação (v. o parecer médico legal a fls. 168). Os relatórios consideram-se aqui reproduzidos para todos os efeitos legais.
   A conduta do arguido A determinou igualmente directa e necessariamente os ferimentos (contusão na zona abdominal) referidos no relatório médico legal a fls. 26 ao agente da PSP L com um dia para recuperação (v. o parecer médico legal a fls. 169). Os relatórios consideram-se aqui reproduzidos para todos os efeitos legais.
   Ao entrar no carro da polícia, o arguido A deu um pontapé com a sua perna direita no carro de polícia do Departamento de Informação da PSP e determinou o dano na porta traseira do mesmo carro (v. relatório a fls. 203 a 207).
   Às 4:50 à tarde do mesmo dia, ao realizar a vigilância no referido apartamento, os agentes da PSP interceptaram com sucesso o arguido G que estava a entrar no apartamento e apreenderam o seu telefone móvel (fls. 9 dos autos).
   Os 1º, 2º e 3º arguidos (A, C e D) agiram livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de vontade e esforço, e sabiam perfeitamente que não podiam emprestar dinheiro nas referidas circunstâncias, com o objectivo de procurar obter assim os interesses monetários ilícitos acima mencionados.
   Os 1º, 2º e 3º arguidos sabiam perfeitamente que não podiam reter, sob qualquer forma, o ofendido E no espaço fechado sem o seu consentimento, impediram a sua liberdade de movimentação durante mais de dois dias. As suas condutas foram realizadas livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de vontade e esforço.
   O arguido A injuriou dolosamente com acção agente policial (cuspiu ao agente da PSP M) sob forma livre, voluntária e consciente.
   O arguido A sabia também que o agente policial estava a exercer funções e praticou violência sobre agente policial para resistir à detenção realizada contra ele.
   O arguido A agiu com a intenção de ofender a integridade física e causou ferimentos corporais nos referidos dois ofendidos K e L, sabia perfeitamente que estes eram agentes da PSP, ou seja, funcionários públicos e que estavam a exercer funções.
   O arguido A sabia perfeitamente que não podia danificar sob qualquer forma veículo pertencente a outrem.
   Os 1º, 2º e 3º arguidos sabiam perfeitamente que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
   O arguido A era comerciante antes de ser preso, com vencimento mensal cerca de MOP$11.000,00 a 12.000,00.
   O arguido é casado e tem a seu cargo a sua mulher e dois filhos.
   O arguido não confessou os factos e é primário.
   O arguido C era bate-ficha antes de ser preso, com vencimento mensal de MOP$5.000,00.
   O arguido é solteiro e tem a seu cargo a mãe e uma irmã mais nova.
   O arguido confessou parcialmente os factos e não era primário.
   O arguido D era bate-ficha com vencimento mensal de MOP$10.000,00.
   O arguido é solteiro e tem a seu cargo os pais.
   O arguido confessou parcialmente os factos e era primário.
   O arguido G era bate-ficha com vencimento mensal de MOP$8.000,00.
   O arguido é casado e tem a seu cargo a sua mulher e uma filha.
   O arguido não confessou os factos e era primário.
   O arguido B era motorista com vencimento mensal de MOP$8.000,00.
   O arguido é casado e tem a seu cargo dois filhos.
   O arguido não confessou os factos e era primário.
   O arguido N era bate-ficha com vencimento mensal cerca de MOP$30.000,00 a 50.000,00.
   O arguido é casado e tem a seu cargo a mãe, a mulher e dois filhos.
   O arguido não confessou os factos e era primário.
   Os três ofendidos (agentes policiais L, M e K) declararam todos que desejavam ser indemnizados dos danos sofridos.
   Através do ofício a fls. 194 dos autos, o Comandante da PSP exprimiu claramente que não precisava de qualquer valor indemnizatório. Mas os três ofendidos (agentes policiais L, M e K) declararam todos que desejavam procedimento criminal contra respectivo arguido por injúria e dano.
   
   Factos não provados: Os restantes factos da acusação e mais os seguintes.
   Os 4º, 5º e 6º arguidos (G, B e N) agiram livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de vontade e esforço, sabendo perfeitamente que não podiam efectuar empréstimo sob os referidos pressupostos, com o objectivo de procurar obter assim interesses monetários ilícitos acima mencionados.
   Os 4º, 5º e 6º arguidos sabiam perfeitamente que não podiam reter, sob qualquer forma, o ofendido E no espaço fechado sem o seu consentimento, impediram a sua liberdade de movimentação durante mais de dois dias. As suas condutas foram realizadas livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de vontade e esforço.
   A fim de obter interesses ilícitos para os próprios, todos os arguidos obrigaram o ofendido E a entregar HK$50.000,00, utilizando meios coercivos e ameaçadores, sabendo perfeitamente que o ofendido não tinha obrigação legal de entregar o referido montante. Embora não conseguissem obter o respectivo montante, tal não resultou da sua vontade.
   Os 4º, 5º e 6º arguidos sabiam perfeitamente que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.”
   
   
   2.2 Admissibilidade do recurso em relação aos crimes de usura para o jogo e de dano
   Foi suscitada a questão de admissibilidade do recurso na parte relacionada com estes dois crimes.
   O crime de usura para o jogo previsto nos art.ºs 13.º da Lei n.º 8/96/M e 219.º, n.º 1 do Código Penal (CP) é punível com pena de prisão até 3 anos.
   O crime de dano previsto no art.º 206.º, n.º 1 do CP é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
   
   Prescreve o art.º 390.º, n.º 1, al. f) do Código de Processo Penal, na redacção dada pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999:
   “Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.”
   Se cada um dos crimes em causa não é punível com pena de prisão superior a oito anos, não é admissível o recurso.
   Os referidos dois crimes são punidos no máximo com pena de prisão até 3 anos, logo não é admissível o presente recurso na parte respeitante a estes dois crimes, o que determina o não conhecimento do recurso nesta parte.
   
   
   2.3 Contradição insanável entre factos provados e não provados
   O recorrente entende que existe contradição insanável da fundamentação nos seguintes dois factos, o primeiro provado e o segundo não provado, no que diz respeito ao 5º arguido:
   “Até às 10:00 da manhã do mesmo dia (isto é, 6 de Fevereiro de 2005), os arguidos B, C e D utilizaram o veículo particular do arguido B, de cor preta e de marca BMW (de número de matrícula desconhecida), levaram E, sem o seu consentimento, ao apartamento [Endereço], e exigiram-lhe entregar HK$30.000,00 que inclui o referido empréstimo, sob pena de não o deixar abandonar.”
   “Os 4º, 5º e 6º arguidos (G, B e N) sabiam perfeitamente que não podiam reter, sob qualquer forma, o ofendido E no espaço fechado sem o seu consentimento, impediram a sua liberdade de movimentação durante mais de dois dias. As suas condutas foram realizadas livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de vontade e esforço.”
   
   Realmente, no facto provado refere que o 5º arguido B, juntamente com outros dois arguidos, levaram o ofendido E, sem o seu consentimento, a um apartamento e exigiu-lhe entregar certa quantia, sob pena de não o deixar abandonar.
   Este quadro, segundo as regras de experiência, é quase impossível compatibilizar com o facto de o 5º arguido não saber que não podia reter, sob qualquer forma, o ofendido no espaço fechado sem o seu consentimento, impedir a sua liberdade de movimentação, mesmo sem participar na ulterior vigilância.
   Pode-se entender praticamente que existe aqui contradição insanável de fundamentação entre os factos provado e não provado.
   
   Só que, tal vício, a existir, é irrelevante para o recorrente, pois nada se relaciona com ele. Tal contradição em nada afecta a qualificação jurídica dos actos praticados e provados pelo recorrente. Além disso, o 5º arguido B já foi absolvido do crime de sequestro. Não há qualquer efeito útil invocar tal vício nesta sede pelo ora recorrente.
   Em consequência, esta parte do recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em não conhecer do recurso na parte relacionada com os crimes de usura para o jogo e de dano e rejeitar a restante parte do recurso.
   Nos termos do art.° 410.°, n.° 4 do Código de Processo Penal, condenam o recorrente a pagar 5 UC.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 5 UC.


   Aos 10 de Outubro de 2007.



Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Processo n.° 39 / 2007 1