Processo nº 361/2015 Data: 04.06.2015
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “roubo”.
Falta de fundamentação; (art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M.).
Exame crítico da prova.
Nulidade; (art. 360°, al. a) do C.P.P.M.).
SUMÁRIO
1. A nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. “reforçou” o dever de fundamentação, exigindo (agora) o “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”, suficiente (já) não sendo uma (mera) “enumeração dos elementos probatórios” a que se atendeu com a afirmação (conclusiva) de que se lhes deu crédito.
Evidente é assim que o Tribunal deve também “expor os motivos” que o levaram a atribuir relevo e crédito aos elementos probatórios de que se serviu para decidir a matéria de facto da forma que o fez.
Se é certo que com a nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. se pretendeu acabar com a chamada “fundamentação tabelar”, igualmente certo é que com a mesma não se quis introduzir a exigência de uma fundamentação “exaustiva” relativamente a todos os pontos, pormenores ou circunstâncias da matéria de facto”.
Não se pode esquecer que o comando em questão faz, (continua a fazer), referência a “uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa…”.
A “fundamentação do Tribunal” não é o segmento da sentença ou acórdão com o qual se tenta dar (ou se dá) resposta a toda e qualquer questão ou dúvida que os sujeitos processuais possam (ou venham a) ter, (esgotando-se, em absoluto, o tema e eventuais questões), destinando-se, antes, a expor e a permitir conhecer os “motivos que levaram o Tribunal a decidir (a matéria de facto) da forma como decidiu”, (acolhendo, ou não, uma ou mais versões apresentadas e discutidas em audiência de julgamento), devendo-se ter – sempre – em conta os “ingredientes do caso concreto”.
2. Verificando-se que em audiência de julgamento foram inquiridas 7 testemunhas – 4 da acusação e 3 da defesa – e constando (tão só) da fundamentação exposta pelo Tribunal recorrido que a sua convicção resultou “da apreciação crítica das provas, nomeadamente, as declarações das testemunhas ouvidas as quais de acordo com as regras da experiência corroboram os factos constantes da acusação”, é de considerar que inobservado foi o dever de fundamentação (por falta de “exame crítico da prova”), o que gera a nulidade da decisão.
O relator,
______________________
José Maria Dias Azedo
Processo nº 361/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão de 13.02.2015 do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor de 1 crime de “roubo” (tentado), p. e p. pelos art°s 204°, n.° 1 e art. 21°, 22° e 67°, todos do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão; (cfr., fls. 133 a 139-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado, veio o arguido recorrer.
Na sua motivação e conclusões imputa ao Acórdão recorrido os vícios de “erro notório na apreciação da prova”, “falta de fundamentação” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 159 a 170-v).
*
Respondendo, pugna o Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 172 a 176-v).
*
Admitido o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I..
*
Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.159 a 170v. dos autos, o recorrente assacou ao douto Acórdão sob sindicância, o erro notório na apreciação de prova, a nulidade por falta de fundamentação nos termos do no n.°2 do art.355° e na a) do n.° 1 do art. 360° do CPP, a violação do preceituado no art.48° do CPM e dos princípios de adequação e proporcionalidade.
Antes de mais, sufragamos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na Resposta (cfr. fls 172 a 176v. dos autos), no sentido do não provimento da invocada violação.
No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica e consolidada, no nosso actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014): O erro notário na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Fundamentando o invocado erro notório na apreciação de prova e a consequente ofensa do princípio de in dúbio pro reo, O recorrente arguiu que o Tribunal a quo não especificava qual testemunha concreta cujo depoimento tinha sido ponderado, nem explicava as análises e valorizações das restantes provas documentais e medidas de prova nos autos.
Invocou, ainda, que infringiam as regras de experiência e o axioma da Lógica tanto a convicção do Tribunal a quo respeitante aos 3°, 4° e 6° a 8° factos provados, como a valorização pelo mesmo dos depoimentos do ofendido e da 5ª testemunha, por se tratar de depoimentos, na sua prisma, inexactos, duvidosos e descreditáveis.
No caso sub judice, sucede que excepto o depoimento do próprio ofendido, nenhum outro meio de prova (testemunha, vídeo, ect.) pode demonstrar presencialmente a conversa entre o recorrente e o ofendido no táxi por este conduzido. Todavia, e sem prejuízo do respeito pela opinião diferente, não nos parece que a valorização e convicção do Tribunal a qual contenda com as regras de experiência e o axioma da Lógica.
De outro lado, o raciocínio do recorrente dá-se a entender que na sua óptica, o «erro notório na apreciação de prova» consiste em não existir prova segura para suportar a convicção do Tribunal a qual sobre os aludidos factos provados. O que torna patente e líquido que a argumentação do recorrente não integra em nenhuma daquelas modalidades delineadas reiteradamente pelo TUI.
Bem, os argumentos aduzidos em sede do «erro notório na apreciação de prova» mostram nitidamente que ele pretendeu pôr em crise, no fundo, a apreciação e livre convicção do Tribunal a quo sobre os vários meios de prova, tentando sobrepor a sua valorização sobre a do Tribunal.
O que justifica que se recorda o ensinamento do Venerando TUI no seu Processo n.°13/2001: O recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador.
Por sua vez, o Venerando TSI inculca (arestonoProc.n.°470/2010): Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
Em conformidade com tais sensatas jurisprudências, afigura-se-nos inquestionável que não se verifica o invocado «erro notório na apreciação de prova», sendo os argumentos do recorrente supra transcritos vedado pelo preceito no art.114° do CPP.
Em sede da fundamentação, o Tribunal a qual aponta: A convicção do tribunal relativamente aos factos dados por assentes resultou da apreciação crítica das provas, nomeadamente, as declarações das testemunhas ouvidas as quais de acordo com as regras da experiência corroboram os factos constantes da acusação.
Sendo embora curta e abstracta tal fundamentação, preferimos a entender que o Acórdão in questio não fere da nulidade cominada no n.°2 do art.355° e na a) do n.°1 do art.360° do CPP.
Atendendo aos três antecedentes criminais, à moldura penal consignada no n.°1 do art.204° do Código Penal, e também ao disposto na a) do n.°1 do art.67° deste Código, não descortinamos, com tranquilidade, a invocada violação do preceituado no art.48° do CPM e dos princípios de adequação e proporcionalidade.
Por todo o expendido acima, pugnamos pela total improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 185 a 186-v).
*
Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Deu o Colectivo do T.J.B. como provados os factos seguintes:
“1° Em 02 de Fevereiro de 2014, cerca das 08H30 da manhã, o ofendido B conduziu o táxi de matrícula MA-XX-XX até perto da Rua de S. Paulo.
2° Nesse momento, o arguido acenou para pedir táxi e, e seguida, ocupou o assento de trás do mesmo, bem como, solicitou ao ofendido que o transportasse ao Casino “XX”, usando este, na altura, uma máscara.
3° Ao chegar ao cruzamento entre a Rua de Sacadura Cabral e a Rua do Almirante Costa Cabral, o arguido retirou, de repente, do bolso direito das suas calças um molho de chaves (num total de nova chaves e um porta-chaves de cor azul, ora apreendido nos autos) e agarrou as chaves na palma da mão, bem assim, envolveu o pescoço do ofendido B com a mão que segurava as chaves, dizendo em voz alta “roubo, dá-me todo o dinheiro”.
4° Perante esta situação, o ofendido B ofereceu resistência, fazendo para o seu táxi e buzinando sem parar para sinalizar o transeuntes a ocorrência de acto ilícito, e, de seguida, saiu do seu táxi para pedir ajuda. O arguido, durante o confronto, causou directamente ao ofendido, com as chaves que segurava na mão, ferimentos na córnea do olho direito, na face direita e no pescoço e, durante a resistência deste, escoriações nos tecidos moles da mão direita.
5° Conforme o exame pericial do médico legal, B necessitou de dois dias para se convalescer dos acima referidos ferimentos, constituindo ofensa simples à sua integridade física (vide parecer clínico do médico legal constante a fls. 55 do inquérito).
6° Apercebendo-se do insucesso, o arguido galgou do assento traseiro para o assento do condutor e pretendia sair do acima referido táxi através da janela para se pôr em fuga, mas, foi imobilizado por transeunte(s) e pelo ofendido.
7° O arguido A agiu voluntária e conscientemente, ao utilizar com dolo violência contra o ofendido, com a intenção de se apoderar e apropriar de bens de terceiros, mas não conseguiu concretizar o seu objectivo devido à resistência oferecida pelo ofendido e, por sim, foi imobilizado por transeunte(s) e pelo ofendido.
8° O arguido A tinha conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
9° No âmbito dos autos CR2-09-0437-PCS, por sentença de 27/09/2010, o arguido A, por prática de um crime de fuga à responsabilidade e de uma contravenção p.p. pelo art° 89° da Lei do Trânsito Rodoviário e pelo n° 1 do art° 95° da mesma Lei, foi condenado numa pena de 40 dias de multa, a taxa diária de MOP$50,00 e a que correspondem 26 dias de prisão subsidiária, uma contravenção na pena de MOP$5.000,00, a que correspondem 33 dias de prisão subsidiária. Foi ainda punido com a inibição de condução por um período de 3 meses. Multa essa que foi paga conforme despacho de 10/03/2011.
No âmbito dos autos CR3-10-0064-PCS, o arguido A, por sentença de 29/04/2011, por prática de um crime de furto de uso de veículo p.p. pelo n°1 do art° 202° do Código Penal, foi condenado numa pena de 75 dias de multa, a taxa diária de MOP$60,00 e a que correspondem 50 dias de prisão subsidiária, mais condenado no pagamento de indemnização de MOP$600,00 ao ofendido. Multa essa que foi paga conforme despacho de 31/01/2012.
No âmbito dos autos CR1-13-0178-PCT, o arguido A, por sentença de 27/06/2013, por prática de uma contravenção de condução sob influência de álcool p.p. pelo art n° 1 e 2 do art° 96° da Lei do Trânsito Rodoviário, foi condenado numa pena de MOP$3.600,00 de multa a que correspondem 24 dias de prisão, pena extinta por despacho de 05/12/2013”; (cfr., fls. 134-v a 136-v).
Seguidamente, e depois de declarar que “não há factos não provados”, consignou que:
“A convicção do tribunal relativamente aos factos dados por assentes resultou da apreciação crítica das provas, nomeadamente, as declarações das testemunhas ouvidas as quais de acordo com as regras da experiência corroboram os factos constantes da acusação”; (cfr., fls. 136-v a 137).
Do direito
3. Vem o arguido dos autos recorrer do Acórdão condenatório a que atrás se fez referência, assacando ao mesmo os vícios de “erro notório na apreciação da prova”, “falta de fundamentação” e “excesso de pena”.
E, (certo sendo que inexistem outras questões – prévias – de conhecimento oficioso, não estando este T.S.I. vinculado a conhecer das questões colocadas na mesma ordem em que pelo recorrente vem suscitadas), afigura-se-nos que a primeira questão que importa tratar é a de saber por qual das assacadas maleitas começar: pelo “erro notório” ou pela “falta de fundamentação”?
Ora, cremos que adequado é começar por conhecer da segunda das aludidas questões.
Com efeito, se no conhecimento do imputado “erro” necessário (imprescindível) é atentar nos elementos probatórios em que assenta a convicção do Tribunal, sendo, igualmente, de ponderar na “forma” como o Tribunal a quo “apreciou a prova”, (se incorreu em erro), óbvio é que, para tal, imprescindível é atentar na “exposição” pelo mesmo feita quanto às “razões” que o levaram a dar (ou não) crédito a determinado meio de prova (e não a outro), e que, como se sabe, é exactamente o segmento decisório que integra a “fundamentação”, cuja falta vem alegada.
Daí que se nos mostre de começar por esta questão.
Dito isto, cabe notar que aos presentes autos – visto que a data da audiência de julgamento no T.J.B. foi designada por despacho de 26.09.2014, cfr., fls. 65 – aplicam-se as alterações pela Lei n.° 9/2013 introduzidas no C.P.P.M, (por força do seu art. 6°).
Nesta conformidade, e regulando a matéria da “fundamentação”, preceitua (agora) o n.° 2 do art. 355° do C.P.P.M. que:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”; (notando-se que a alteração na redacção do preceito em questão consistiu na introdução das expressões “exame crítico…”).
Comentando o preceito em questão, considera Leal Henriques que:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, sem dúvida a parte mais melindrosa da sentença e aquela que desde sempre vem suscitando as maiores divisões quer no seio da Doutrina, quer no âmbito da Jurisprudência, apesar dos esforços feitos pelos legisladores no sentido de dotarem o ordenamento processual penal de dispositivos suficientemente claros e insusceptíveis de dúvidas.
A necessidade de fundamentação de determinados actos processuais que ocorrem num processo penal é inquestionável.
Efectivamente, quando esses actos definem situações jurídicas que se reflectem de forma significativa na esfera das pessoas, tais actos não podem produzir efeitos se não se fizerem acompanhar do porquê das respectivas decisões.
Actos tais – que o legislador apelida de actos decisórios – carecem, pois, de fundamentação, isto é, de uma explicação que permita compreender porque razão se decidiu de determinada maneira e não de outra.
A fundamentação, porém, não obedece sempre às mesmas regras, tendo o legislador diversificado as respectivas exigências consoante se trate de:
- actos decisórios em geral;
- actos decisórios em especial.
Para os actos decisórios em geral basta que o órgão decisor explique a decisão por forma a que o seu sentido se contenha na argumentação expendida para o efeito.
Isto significa que para tais actos a lei não exige específicas fórmulas de fundamentação, tal como decorre do n.° 4 do art. 87°, que apenas pede fundamentação sem quaisquer especificações.
Outro tanto não acontece relativamente à fundamentação dos actos decisórios especiais, de que é exemplo paradigmático a sentença, a qual, por força da lei, está subordinada a exigências acrescidas de sustentação.
Efectivamente, quanto a esta, não considerou a lei como bastante a simples fundamentação genérica de que cuida o art.° 89°, n.° 4, pedindo muito mais, isto é, que a sentença, como acto decisório por excelência, e portador de definição de interesses dos mais profundos e mais marcantes para determinados sujeitos processuais envolvidos na lide, seja rodeada de garantias acrescidas que permitam a compreensão e justificação do que foi decidido.
É exactamente essa fundamentação específica e qualificada que vem imposta no n.° 2 deste artigo, quando nele se proclama que a fundamentação ter-se-á por cumprida se e sempre que:
- a sentença faz enumeração dos factos provados e não provados;
- a sentença expõe, o mais completamente possível ainda que de forma concisa, as razões de facto e de direito que dão apoio à decisão e se façam acompanhar do exame crítico das provas que serviram de base à formação da convicção do tribunal”
(…)
“Mais problemática e incerta é a parte da fundamentação que se destina a dar a conhecer, convincentemente, como e porquê o Tribunal chegou à prova de determinados factos e de outros não, para daí se poder inferir se, no caso, foram apreciadas as provas que podia e devia apreciar e se o fez de modo objectivo, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência comum.
Em suma, o que se exige quanto a este ponto concreto é que «o tribunal (ao motivar) está obrigado a explicitar as razões concretas porque deu credibilidade a determinados depoimentos e não deu a outros; porque lhe mereceram crédito ou não as declarações do arguido; porque entendeu ser (ir) relevante para a decisão o documento junto aos autos (no caso de serem apenas estas as provas em análise, como é óbvio)» (SÉRGIO POÇAS, op.cit., págs. 38 e 39).
Apesar disto parecer intuitivo, a Jurisprudência de Macau vinha-se contentando com uma fundamentação fáctica um tanto ou quanto abreviada, mais solidificada ainda a partir das alterações introduzidas no correspondente preceito português (n.° 2 do art.° 374.° pela Lei n.° 59/98, de 25 de Agosto, que deu nova redacção a esse dispositivo, por forma a dele passar a constar a expressão “exame crítico” das provas); (cfr., Anot. e Comentário ao C.P.P.M., Vol. III, pág. 789 e segs.).
Pronunciando-se sobre o tema da “motivação fáctica” assim considerou Marques Ferreira:
“A Obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do CPP de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção do tribunal, à semelhança do que tradicionalmente vem sucedendo com a interpretação e aplicação do estipulado sobre este assunto no art. 665.°, n.° 2, do CPC, embora com desacordo completo da doutrina e, a nosso ver, violando-se materialmente a ratio do art. 210.°, n.° 1, da CRP.
De facto, o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle o espírito de um determinado sistema processual, e no que concerne ao nosso processo penal vigente este informa, neste particular, de nítidas características medievais e ditatoriais.
No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art. 320.°, n.° 1 e no art. 210.°, n.° 1, da CRP, exige-se não só a indicação das provas ou meios de prova que serviram para formar convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão.
Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (them probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impões inequivocamente o art. 410.°, n.° 2.
E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade…”; (in “Jornadas de Direito Processual Penal”, 229-230, notando-se também que o Ac. do T. Const. português n.° 680/98 de 02.12, Proc. n.° 456/95, in D.R. II série, de 05.03.1999, considerou mesmo inconstitucional a norma do art. 374°, n.° 2 do C.P.P. português na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de factos se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, não exigindo a explicitação do processo de formação de convicção do Tribunal por violação do dever de fundamentação das decisões…).
Tratando da mesma matéria, (e referindo-se à nova redacção do art. 355°, n°. 2), consignou-se no Ac. deste T.S.I. de 12.02.2015, (Proc. n.° 847/2014), que:
“O preceito em questão, (com a nova redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 9/2013), “reforçou” (ou intensificou) o dever de fundamentação, exigindo (agora) o “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”, suficiente (já) não sendo uma (mera) “enumeração dos elementos probatórios” a que se atendeu com a afirmação (conclusiva) de que se lhes deu crédito.
Evidente é assim que o Tribunal deve também “expor os motivos” que lhe levaram a atribuir relevo e crédito aos elementos probatórios de que se serviu para decidir a matéria de facto da forma que o fez”, acrescentando-se, porém, que “se é certo que com a nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. se pretendeu acabar com a chamada “fundamentação tabelar”, (…), igualmente certo é que com a mesma não se quis introduzir a exigência de uma fundamentação “exaustiva” relativamente a todos os pontos, pormenores ou circunstâncias da matéria de facto”, notando-se que “não se pode esquecer que o comando em questão faz, (continua a fazer), referência a “uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa…”, e que, há que ter – sempre – em conta, os “ingredientes do caso concreto (…)”.
Não se olvida, por sua vez, que no recente Ac. deste T.S.I. de 07.05.2015, Proc. n.° 162/2015 se consignou igualmente que:
“A “fundamentação do Tribunal” não é o segmento da sentença ou acórdão com o qual se tenta dar (ou se dá) resposta a toda e qualquer questão ou dúvida que os sujeitos processuais possam (ou venham a) ter, (esgotando-se em absoluto, o tema e eventuais questões), destinando-se, antes, a expor e a permitir conhecer os “motivos que levaram o Tribunal a decidir (a matéria de facto) da forma como decidiu”, (acolhendo, ou não, uma ou mais versões apresentadas e discutidas em audiência de julgamento).
Pode-se não concordar com a fundamentação apresentada, mas então, a questão não é a da “falta de fundamentação”, (sendo apenas uma questão de concordância com o exposto em sede de fundamentação, que não equivale a “falta de fundamentação”)”.
Porém, afigura-se-nos que uma coisa é o que se consignou nos transcritos veredictos e que se mantém, (no sentido de que a fundamentação não tem de “esgotar o tema e resolver todas as dúvidas…”, e onde se considerou não existir falta de fundamentação nas decisões recorridas), e outra, a situação dos autos.
Com efeito, e sem prejuízo do respeito devido a entendimento diverso, consignar-se que “a convicção do tribunal relativamente aos factos dados por assentes resultou da apreciação crítica das provas, nomeadamente, as declarações das testemunhas ouvidas as quais de acordo com as regras da experiência corroboram os factos constantes da acusação”, é (algo) “curto”, nomeadamente quando, em audiência, foram inquiridas 7 testemunhas, 4 apresentadas pela acusação, e 3 pela defesa; (cfr., acta de julgamento a fls. 130 a 133).
Não se deixa de referir que não se está aqui a querer pretender uma fundamentação “abundante” ou “generosa”.
Como é evidente, (e assim se deixou atrás consignado), há que reflectir sobre a questão, atentando-se, sempre, nos “ingredientes do caso”.
E, in casu, ponderando no tipo de crime em questão, na matéria de facto dada como provada em relação às circunstâncias da sua ocorrência, e resultando dos autos que em “oposição” estão (essencialmente) duas versões, a do ofendido que imputa os factos ao arguido, e a deste, que nega e que diz ter apenas respondido a uma agressão por parte do ofendido, cremos pois que se terá de considerar “insuficiente” a fundamentação apresentada, que apenas faz uma referência à “prova testemunhal” e às “regras de experiência”, sem concretizar e explicitar as razões (concretas) que levaram a acolher uma versão, em detrimento da outra.
Admite-se que no “espírito do julgador” claros e evidentes poderão ser os motivos da sua decisão.
Contudo, (e como cremos ser pacificamente entendido), tal não basta, necessários sendo que estes mesmos “motivos” constem (expressamente) da própria decisão.
Aliás, a não se entender assim, nenhum efeito ou sentido útil teria a (alteração e) (nova) redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M., (com a introdução das expressões “exame crítico”), o que, como se apresenta evidente, não se mostra de crer ser o caso.
Cremos que adequado será considerar-se que com tal “exame crítico” se terá pretendido uma (ainda que breve) “enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários – e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas – fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”; (neste sentido, crf., v.g., o Ac. Rel. Guimarães de 27.04.2015, Proc. n.° 411/13).
Dest’arte, constatada a apontada “falta de fundamentação”, e originando a mesma a nulidade do Acórdão recorrido – cfr., art. 360°, al. a) do C.P.P.M. – há que decidir em conformidade.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam julgar procedente o recurso, devendo os autos voltar ao T.J.B. para aí se suprir a verificada falta de fundamentação da decisão prolatada.
Sem tributação.
Macau, aos 04 de Junho de 2015
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 361/2015 Pág. 26
Proc. 361/2015 Pág. 13