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Proc. nº 592/2014
Data do acórdão: 04 de Junho de 2015
Relator: Cândido de Pinho
Descritores:
-Alteração do pedido
-Princípio do contraditório
-Nulidades processuais
-Reclamação

SUMÁRIO:

I. Se o tribunal de recurso determina a baixa dos autos à 1ª instância para que esta se pronuncie sobre uma pretensão tendente à alteração do pedido, e daí retirar as devidas consequências, cometerá a nulidade processual geral a que se refere o art. 147º do CPC o tribunal que passa directamente ao conhecimento do fundo, sem pronúncia expressa sobre aquela questão.

II. Comete ainda outra nulidade processual o tribunal de 1ª instância que, sem respeitar o princípio do contraditório - ouvindo os RR -, decide conceder ao A a titularidade do domínio útil na sequência da aludida alteração do pedido, que inicialmente visava a demonstração da usucapião do direito de propriedade sobre a coisa.

III. A circunstância de ter sido proferida sentença sem ter sido cumprido o referido contraditório e sem pronúncia prévia e expressa sobre a admissibilidade da alteração do pedido (ao abrigo da qual foi proferida a decisão recorrida) não permite extrair implicitamente a ideia de que o julgador tenha querido tomar a decisão sem aquelas formalidades.

IV. Assim, as referidas nulidades não se podem ter por cobertas pela sentença em causa.

V. O referido em IV significa que não podia o interessado servir-se do recurso jurisdicional contra a sentença para simplesmente deduzir ataque contra as referidas nulidades processuais cometidas antes dela.

VI. Deveria o interessado logo que foi notificado da sentença reclamar para o próprio juiz acerca das nulidades e, só da decisão que sobre a reclamação recaísse apresentar, então, recurso jurisdicional, onde essa matéria poderia ser seu fundamento.

VII. Não tendo havido reclamação, mas somente recurso jurisdicional sobre essa exclusiva matéria, é de considerar sanadas as nulidades processuais verificadas, o que conduzirá, em consequência, à improcedência daquele.




Proc. nº 592/2014

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, de nacionalidade chinesa, casado com B no regime da separação de bens, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau com o n.º..., emitido em X-XX-2006, pelos Serviços de Identificação e residente em Macau, na Rua…, ----
intentou no TJB (Proc. nº CV1-09-0012-CAO) contra: ---
1º - C (xxxx-xxxx-xxxx), de nacionalidade chinesa, casado no regime da separação de bens, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau com o n.º..., emitido em X-XX-2002, pelos Serviços de Identificação e residente em Macau, na Estrada…;
2 º - D, de nacionalidade chinesa, solteiro, maior, titular do Bilhete de Residente da República popular da China com n.º..., emitido em XX-XX-2006, pelo Departamento de Segurança Pública da Cidade de Gangmen e residente em na China, na…;
3 º - E (xxxx-xxxx-xxxx), de nacionalidade chinesa, solteiro, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau com o n.º…, emitido em XX-XX-2006, pelos Serviços de Identificação e residente em Macau, Avenida…; e
4º - F, (xxxx-xxxx-xxxx), de nacionalidade chinesa, solteiro, maior, titular do Bilhete de Residente da República Popular da, China com n.º…, emitido em XX-XX-2005, pelo Departamento de segurança Pública da Cidade de ZhongShan, e residente em Macau, na Avenida…;
acção declarativa com processo ordinário, ---
Pedindo:
a) - Se declarasse, para todos os efeitos legais, nomeadamente os de registo, o Autor como único e legítimo proprietário do prédio com o n.º x, sito na…, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número…, a fls… do Livro…, e inscrito na matriz sob o n.º …, por aquisição originária, por usucapião;
b) - Se ordenasse, em consequência, o cancelamento da inscrição predial a favor dos 1.º e 2.º Réus com o n.º…;
c) - Se condenasse os Réus a reconhecer o direito de propriedade do Autor e de se abster de o violar; e, subsidiariamente,
d) - Fossem os 3.º e 4.º Réus condenados a pagar ao Autor a quantia de MOP1,200,000.00 por incumprimento definitivo do contrato-promessa, acrescida de juros legais desde a citação até à liquidação integral e efectiva de todas as quantias devidas.
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Tendo sido julgada procedente a acção por sentença de 9/08/2011, o TSI, em recurso que julgou provido, por acórdão de 14/11/2013 revogou-a e ordenou a baixa dos autos para que o tribunal recorrido interpretasse e decidisse acerca dos possíveis efeitos de um esclarecimento prestado pelo autor da acção nas alegações de resposta ao referido recurso, nomeadamente no sentido de eventual apreciação do pedido na perspectiva de aquisição da titularidade do domínio útil pela via da usucapião.
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O TJB, então, por sentença de 21/01/2014 reapreciou a questão em apreço e, de novo, julgou procedente a acção.
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É contra ela que ora se insurgem os 1º e 2º réus dos autos, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:
«O efeito da procedência do recurso anterior
I. De acordo com os fundamentos constantes dos pontos 1 a 14 acima referidos, os recorrentes concluem que, face à procedência do seu recurso anterior, o Tribunal a quo violou as instruções do Tribunal superior e o disposto no artigo 630.º do CPC. Além disso, dado que o Tribunal a quo proferiu uma decisão surpresa e violou o princípio do contraditório antes de os recorrentes terem tido uma oportunidade de emitir parecer relativamente ao esclarecimento do Autor, deve o Tribunal superior revogar a sentença a quo e ordenar que se proceda ao julgamento de acordo com as instruções do Tribunal superior.
Caso assim se não entenda, não obsta a que os recorrentes apresentem os seguintes fundamentos.
Interpretação do conteúdo e do efeito do esclarecimento do Autor
II. De acordo com os fundamentos constantes dos pontos 15 a 33, os recorrentes conclui que, de acordo com as instruções do Tribunal superior, do conteúdo e dos efeitos do esclarecimento do Autor não pode resultar, absolutamente, a ora decisão a quo.
III. Em primeiro lugar, o que o Autor exige no ponto 56 do seu esclarecimento é que seja rejeitado o pedido dos recorrentes e seja totalmente mantida a sentença a quo. Mas o teor da sentença a quo é que o Autor adquire o direito de propriedade plena, o que viola a Lei Básica.
IV. Por isso, o Tribunal superior deve revogar a sentença a quo e rejeitar a acção pela falta da acção intentada contra a RAEM, que viola as disposições da acção necessária, bem como julgar improcedente o pedido do Autor de acordo com o artigo 7.º da Lei Básica.
V. Com base do princípio da estabilidade da instância, a modificação do pedido do Autor só é possível com a consagração legal.
VI. Primeiro, a lei não prevê que o pedido pode ser alterado no momento da resposta do recurso;
VII. Segundo, o Autor não reduziu nem podia reduzir o pedido da propriedade para o do domínio útil;
VIII. Terceiro, de acordo com o princípio dispositivo e o artigo 564.º, n.º 1 do CPC, o Tribunal também não pode reduzir o pedido da propriedade para o do domínio útil.
IX. Por isso, afinal, dado que não foi pedida a alteração do objecto da acção, nem pode esta ser alterada, a questão ora apreciada é ainda a de propriedade plena, o Tribunal superior deve revogar a sentença a quo e rejeitar a acção pela falta da acção intentada contra a RAEM, que viola a disposição da acção necessária, bem como julgar improcedente o pedido do Autor de acordo com o artigo 7.º da Lei Básica.
Caso assim se não entenda, sustenta-se nos seguintes fundamentos que tinham sido apresentados mas não foram apreciados:
Perda de animus possidendi
X. De acordo com os fundamentos constantes dos pontos 37 a 49, os recorrentes concluem que, a declaração escrita prestada pelo Autor em 2007 no ponto V) dos factos assentes fez com que ele perdesse o animus possidendi, pelo que deve o Tribunal superior revogar a sentença a quo e reconhecer, com base no ponto v) dos factos assentes e em conjugação com as disposições do direito civil, bem como os suficientes elementos constantes dos autos, que o Autor perdeu a posse depois da prestação da declaração em 2007, de forma que julgue improcedente o pedido do Autor por não ser provado.
Caso assim se não entenda, sustenta-se que Interrupção da prescrição
XI. De acordo com os fundamentos constantes dos pontos 50 a 57, os recorrentes concluem que, o Autor reconheceu em 2007 a propriedade dos promitentes compradores, que são E e F segundo o contrato, e os dois apenas alienaram o imóvel aos recorrentes em 2008. Pelo que de acordo com o artigo 317.º, n.º 1 do CC, deve julgar que a contagem do prazo da usucapião do Autor interrompeu-se em 22 de Outubro de 2007.
XII. Uma vez que não há desde a interrupção prova de o Autor ter adquirido de novo a posse e, mesmo que houvesse, da contagem do prazo não resultaria a usucapião, assim sendo, o Tribunal superior deve revogar a sentença a quo, e directamente julgar improcedente a pretensão do Autor.
Caso assim se não entenda, sustenta-se que Violação da lei do registo predial
XIII. De acordo com os fundamentos constantes dos pontos 58 a 61, os recorrentes concluem que dado que o Autor violou a lei do registo predial por não ter pedido o cancelamento do registo do domínio directo a favor da RAEM, o Tribunal superior deve revogar a sentença a quo e, pela violação do artigo 8.º do CRP, absolver da instância, declarando extinguido o processo».
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O autor respondeu ao recurso, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. Os Recorrentes vêm alegar que a douta sentença sub judice viola o comando veiculado pelo acórdão do Tribunal a quem de 14 de Novembro de 2013, o princípio do contraditório e que o “esclarecimento” do Recorrido consubstancia uma modificação do pedido processualmente inadmissível, por extemporânea, ao mesmo tempo que rejeitam a possibilidade aquele ser entendido como uma redução do pedido.
2. E concluem que a decisão em causa viola o princípio do dispositivo e o comando consagrado no n.º 1 do artigo 564.º do CPC, relativo aos limites da condenação, porquanto o direito de propriedade e o domínio útil são coisas diferentes.
3. Segundo o acórdão do TSI, no segmento decisório relativo à invocada impossibilidade de aquisição da propriedade plena do prédio por usucapião: “O Autor na resposta à motivação do recurso esclareceu que não tinha intenção de adquirir, por usucapião, a propriedade plena do prédio sub judice, mas apenas a titularidade do domínio útil do mesmo, posição essa que nunca foi apreciada pelo Tribunal a quo e só surgiu em sede de recurso, pelo que este Tribunal de recurso não pode conhecer ao abrigo do artigo 630.º do CPCM, sob pena de violação do duplo grau de jurisdição. Assim, os autos hão-de baixar para a primeira instância para interpretar e decidir acerca dos possíveis efeitos do esclarecimento supra referido prestado pelo Autor, nomeadamente no sentido de eventual apreciação do pedido na perspectiva de aquisição da titularidade do domínio útil pela via da usucapião.” [sublinhado nosso].
4. No âmbito da prolação de nova sentença, o douto Tribunal a quo, desde logo refere e transcreve o parágrafo acima descrito concluindo que “Nestes termos, nestes autos cabe decidir e apreciar se o Autor adquiriu o domínio útil do prédio em causa por usucapião”, passando de seguida à análise dos factos dados por provados e à aplicação a estes do direito.
5. E após o elenco dos factos dados por provados, o douto Tribunal a quo voltou a referir que “tendo os autos sido remetidos à primeira instância para apreciar o pedido numa forma reduzida - aquisição do domínio útil - uma vez que tendo-se julgado em primeira instância, a acção procedente na totalidade e que o Autor havia adquirido o direito de propriedade sobre o imóvel a que se reportam os autos, veio a Segunda Instância a entender que aquela decisão violava o artigo 7.º da Lei Básica porquanto o domínio directo do prédio se encontra registado a favor da RAEM”.
6. A este propósito, referiu que nos termos do artigo 1491.º do Código Civil Português de 1966, tornado extensivo a Macau pela Portaria n.º… de 4 de Setembro de 1967, norma que subsistiu com a entrada em vigor do actual Código Civil, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei 39/99/M, diz-se enfiteuse (aforamento) o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil.
7. E concluiu, em suma, que estando o prédio dos autos sujeito ao regime enfitêutico (encontrando-se o domínio directo registado a favor da RAEM e o domínio útil a favor de particular), e sendo uniforme a jurisprudência no sentido de se entender que o domínio útil é usucapível quando este estiver reconhecido antes do estabelecimento da RAEM (a 20 de Dezembro de 1999), como é o caso do imóvel dos autos, se impõe julgar a acção por procedente, por provada e ser declarado o Recorrido como titular do domínio útil do prédio em causa, com as demais consequências legais.
8. Da leitura do acórdão em causa, resulta claro que o objectivo do douto TSI é simplesmente colocar à consideração do douto Tribunal a quo a possível consideração dos argumentos avançados pelo Recorrido no sentido de pretender única e exclusivamente a aquisição, por usucapião, do domínio do imóvel e a apreciação da possibilidade de procedência dos autos nessa vertente.
9. A forma como o douto Tribunal a quo o faz e os exactos termos ou fundamentos com que decide, desde que dentro dos limites da lei civil e processual, não obedecem, nem têm de obedecer, às alegadas “instruções” do douto Tribunal a quem.
10. Conforme decorre dos trechos da sentença sub judice acima evidenciados, o douto Tribunal a quo teve em consideração a razão pela qual os autos foram baixados para reapreciação e decidiu pela viabilidade da procedência da acção/ reduzida à aquisição do domínio útil, e fê-lo de uma forma fundada e dentro dos limites impostos por lei.
11. A este respeito, releva desde logo estabelecer, de uma forma crítica e ajustada, o objecto da presente acção, ou seja, se a pretensão do Recorrido nos presentes autos é a aquisição, por usucapião, da propriedade plena do imóvel, incluindo a titularidade do domínio directo do mesmo, pertencente à RAEM e a do domínio útil, registada a favor dos Recorrentes, conforme deturpada mente vêm agora os Réus defender,
12. Ou se, pelo contrário, pretende apenas usucapir a titularidade do domínio útil, conforme propugnado pelo Recorrido e reconhecido pelo douto Tribunal a quo na douta sentença sub judice.
13. De acordo com a petição inicial e os documentos com ela juntos, resulta claro e evidente que a pretensão do Recorrido (embora, se admita, imperfeitamente concretizada) é, e sempre foi, a aquisição, por via da usucapião, da titularidade do domínio útil do imóvel em causa.
14. Pretensão essa, aliás, que os Recorrentes sempre alcançaram perfeitamente, o que é indubitavelmente comprovado pelo facto de só no segundo recurso, depois da fase dos articulados, onde a defesa por impugnação e por excepção dos Réus foi expendida, da realização do audiência de discussão e julgamento, do prazo para apresentarem alegações de direito, que os Recorrentes decidiram não apresentar, e de um primeiro recurso para o TSI, virem levantar a questão.
15. Com efeito, o Recorrido veio intentar a presente acção alegando, em síntese, que foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda do prédio dos autos entre o Recorrido e os 3.º e 4.º Réus, e que, em cumprimento (material) do mesmo aquele pagou a estes o preço integral da venda e, em contrapartida, recebeu deles a tradição do imóvel acompanhada de uma procuração irrevogável a favor dos seus advogados, ficando assim convencido de que o negócio prometido se mostrava cumprido e que nunca seria posto em causa, faltando apenas a formalidade da outorga da escritura pública de compra e venda.
16. E alegou, ainda, que aqueles Réus, depois de terem recebido o valor total do imóvel, de terem outorgado a procuração irrevogável, pela qual haviam transmitido todos os direitos sobre o mesmo, e de terem transmitido a sua posse para o Autor, haviam vendido, em 16 de Janeiro de 2008, o mesmo imóvel aos ora Recorrentes.
17. Para tanto, o Recorrido juntou, e deu por integralmente reproduzidas, públicas-formas do contrato promessa de compra e venda, da procuração irrevogável outorgada a favor dos seus advogados, da escritura de compra e venda a favor dos Recorrentes e certidão predial na qual constava a descrição do imóvel e a inscrição desta última venda.
18. Ora, conforme decorre da procuração irrevogável outorgada pelos 3.º e 4.º Réus a favor do Recorrido (nas pessoas dos seus advogados), em cumprimento material do contrato prometido, foram-lhe conferidos os mais amplos poderes de administração e disposição relativamente ao domínio útil do prédio em causa.
19. E conforme consta da escritura de compra e venda de 16 de Janeiro de 2009 e da certidão de registo predial, junta de modo a comprovar o registo do imóvel a favor dos Recorrentes, em violação dos direitos e expectativas do Recorrido decorrentes do cumprimento (material) do contrato de compra e venda, consta igualmente que aqueles compraram e se mostram os proprietários inscritos do domínio útil do mesmo imóvel.
20. Neste sentido, é evidente que a posse do Recorrido, adquirida com fundamento no cumprimento do contrato promessa de compra e venda, repete-se, consubstanciado na outorga, pelos promitentes-vendedores, de uma procuração irrevogável que lhe conferiu (por intermédio dos seus advogados) os mais amplos poderes de administração e de disposição relativos (apenas) ao domínio útil do imóvel em causa, se circunscreve apenas a este domínio útil e não ao domínio directo ou à propriedade plena (abarcando estes dois domínios), como querem agora fazer crer os Recorrentes.
21. Aliás, tanto assim é que apenas os Recorrentes foram demandados na presente acção, e não também a RAEM, por apenas aqueles terem um direito registado que contende com o direito que o recorrido pretende fazer valer com a mesma, ou seja, a aquisição (originária) da titularidade do domínio útil do imóvel.
22. Sentido esse claramente demonstrado pelo facto de o Recorrido, na sequência e como consequência do seu primeiro pedido, ter vindo única e exclusivamente pedir o cancelamento da inscrição predial a favor dos Recorrentes com o n.º…, a qual, conforme certidão predial junta e dada por integralmente reproduzida, diz respeito precisamente ao domínio útil.
23. Deixando, assim, de fora dos pedidos de cancelamento de registo (essenciais em acções de usucapião) a inscrição a favor da RAEM (aí ainda referida por Fazenda Nacional) n.º…, relativa à titularidade do domínio directo.
24. Nesta medida, as referências ao “direito de propriedade”, à aquisição e decurso da posse pelo Recorrido, assim como ao pedido do reconhecimento da sua aquisição originária por usucapião, deverão ser lidos e interpretados tendo em consideração os factos e o enquadramento acima referido.
25. Leitura e interpretação essas, repete-se que sempre foram perfeitamente entendidas pelos Recorrentes e só agora invocadas numa clara deturpação do sentido da pretensão do Recorrido.
26. Assim, a pretensão do Recorrido, e o objecto da presente acção, é a de ver reconhecido o seu direito à titularidade do domínio útil do imóvel em causa, registado formalmente a favor dos Recorrentes, e não à do domínio directo, pertencente e registado a favor da RAEM, que não é usucapível à luz da legislação da RAEM.
27. Ora, tendo em consideração o acima descrito, a douta sentença sub judice, não só considera especificamente a questão colocada pelo douto Tribunal a quem, ou seja, aprecia os autos na perspectiva da aquisição do domínio útil por usucapião, como, ao dar provimento à acção (o que pressupõe uma resposta positiva àquela questão do TSI) respeita na íntegra os limites da condenação impostos pelo n.º 1 do artigo 564.º do CPC.
28. Peio exposto, deverão os fundamentos avançados pelos Recorrentes improceder, com as demais consequências legais.
29. De acordo com os Recorrentes, o douto Tribunal a quo, ao decidir os autos na perspectiva do domínio útil e dando a acção por procedente, sem lhe dar o direito de resposta ao “esclarecimento” do Recorrido, violou o direito do contraditório e proferiu uma decisão surpresa.
30. Conforme acima descrito, a douta sentença sub judice foi proferida na sequência de um acórdão do TSI, no qual foi dado provimento ao recurso dos Recorrentes na parte em que aqueles, nas suas alegações, invocaram que a pretensão do Recorrido nos presentes autos era usucapir a propriedade plena do imóvel, abrangendo esta o domínio directo, pertencente à RAEM, e o domínio útil, registado a seu favor, o que é ilegal por força do artigo 7.º da Lei Básica.
31. Em resposta ao alegado pelos Recorrentes, o Recorrido, nas suas contra-alegações de recurso, veio afirmar que o entendimento daqueles se encontrava deturpado e não correspondia à verdadeira pretensão deste (evidenciada pela petição inicial e documentos lidos e interpretados de uma forma integrada e crítica), vindo o douto Tribunal a ordenar que os autos baixassem para apreciação da questão nesta vertente.
32. Neste sentido, não é verdade que os Recorrentes não tenham tido a oportunidade de se pronunciar sobre a questão em apreço.
33. Na realidade foram os próprios Recorrentes que a iniciaram ao afirmar que a pretensão do Recorrido é usucapir a propriedade plena e ao defender que, por causa disso, a acção deveria improceder, tendo o Recorrido respondido nas suas contra-alegações no sentido de o alegado pelo Recorrente não ter qualquer fundamento.
34. Nesta medida, o princípio do contraditório mostra-se perfeitamente cumprido, não tendo os Recorrentes direito a replicar, ou a responder à resposta do Recorrido sobre uma questão levantada por eles próprios.
35. Por outro lado, Invocam ainda os Recorrentes, para substanciar a violação do princípio do contraditório, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 630.º do CPC.
36. Tal invocação não tem, no entanto qualquer cabimento, porquanto este dispositivo destina-se a garantir que as partes tenham o direito de se pronunciar relativamente a questões que o Tribunal de Segunda Instância se vai pronunciar, sem que haja prévia pronúncia do Tribunal de Primeira Instância, o que claramente não é o caso.
37. Nestes termos, também a invocada violação do princípio do contraditório não tem qualquer cabimento, factual ou legal, pelo que o recurso dos Recorrentes deverá improceder, com as demais consequências legais.
38. De acordo com os Recorrentes, o “esclarecimento” do Recorrido consubstancia uma modificação (inadmissível) do pedido e o mesmo não pode valer como redução do pedido porque o direito de propriedade e o domínio útil são duas coisas completamente diferentes.
39. Em primeiro lugar, no seguimento do acima já mencionado, do douto acórdão de 14 de Novembro de 2013, retira-se claramente que a “instrução” do douto TSI ao douto Tribunal a quo era no sentido de este apreciar a possibilidade de a acção proceder na vertente reduzida à aquisição, por usucapião, do domínio útil.
40. Ainda de acordo com o acima descrito, uma interpretação enquadrada e crítica da petição inicial, da causa de pedir - a aquisição da posse por força do cumprimento formal de um contrato promessa, consubstanciado na entrega, pelos 3.º e 4.º Réus, de uma procuração irrevogável a conferir amplos poderes de administração e de disposição do domínio útil do imóvel - dos documentos juntos por ele para suportar a sua pretensão - incluindo públicas-formas da procuração irrevogável, da escritura de compra e venda (do domínio útil) a favor dos Recorrentes e da certidão do registo predial a comprovar o registo (do domínio útil) a seu favor -, tudo conjugado com os restantes pedidos do Recorrido relativamente à aquisição da usucapião - isto é, o pedido de cancelamento do registo (do domínio útil) a favor dos Recorrentes, e apenas deste,
41. Evidencia e comprova que a pretensão do Recorrido com os presentes autos (ainda que imprecisamente concretizados) é, e sempre foi, a aquisição, por usucapião, do domínio útil do imóvel dos autos.
42. Donde resulta que a sentença em crise, não violou os limites impostos à condenação, consagrados no transcrito n.º 1 do artigo 564.º do CPC, porquanto não condenou os Réus em quantidade superior, ou em objecto diverso do que o Recorrido peticionou (devidamente interpretado e criticamente enquadrado).
43. No entanto, caso assim se não entenda, e se considere que o pedido proferido pelo Recorrido na sua petição inicial só pode ser interpretado ou tido como um pedido para aquisição, por usucapião, da propriedade plena do imóvel, então nesse caso, o “esclarecimento” do Recorrido deverá ser entendido como uma redução do pedido.
44. E ainda que assim se não entenda, e o esclarecimento não seja tido como uma redução do pedido, o Recorrido vem, nesse caso, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 217.º do CPC, reduzir o pedido para a aquisição da titularidade do domínio útil do imóvel dos autos.
45. Segundo o mencionado dispositivo, “ (...) O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido (...) ”, donde resulta claramente que até decisão final (transitada em julgado) o autor está em tempo para o fazer.
46. Por outro lado, conforme o Tribunal a quo referiu na douta sentença em crise, o regime enfitêutico, que se aplica ao imóvel em causa, pressupõe a divisão da propriedade em dois domínios, o domínio directo e o domínio útil.
47. O que quer dizer que a propriedade (plena) no caso em apreço compreende aqueles dois domínios sendo, pois, evidente que o domínio útil está inteiramente compreendido naquela e é uma parte (reduzida) da mesma.
48. Donde resulta também que sempre a sentença nos termos em que foi proferida estaria compreendida nos limites impostos pelo transcrito n.º 1 do artigo 564.º, por não estar em causa objecto diverso.
49. Neste sentido, a sentença, ao dar provimento à acção por provada e ter declarado o Recorrido titular do domínio útil do imóvel em causa, com as demais consequências legais, não padece de quaisquer dos vícios (novos) que os Recorrentes lhe imputam.
50. Pelo que, deverá o recurso ser rejeitado e mantida a sentença sub judice com as demais consequências legais.
51. De acordo com as alegações de recurso dos Recorrentes, estes defendem que a menção feita pelo Recorrido no contrato promessa de compra e venda - de que a escritura de compra e venda, quando fosse feita, deveria ser feita a favor do Sr. G - impunha desde logo, por si só e sem necessidade de mais considerações ou averiguações, nomeadamente de demonstração fáctica, a improcedência da acção por perda da posse por parte do Autor, na sua vertende animus possidendi.
52. Salvo o devido respeito, que é muito, não tem qualquer razão de ser o entendimento e a pretensão dos Recorrentes, os quais revelam apenas o desacordo relativamente à apreciação (criteriosa e devidamente fundamentada) da prova pelo douto Tribunal a quo e da resposta dada aos quesitos 17.º, 18.º e 20.º da Base Instrutória, o que, igualmente lhes está vedado por força do princípio processual basilar da livre apreciação das provas, consagrado no artigo 558.º do CPC.
53. Com efeito, cabe lembrar que a questão da natureza e do efeito da referida declaração na posse do Autor foi abordada desde logo na contestação dos Recorrentes, em sede de defesa por excepção peremptória.
54. E de acordo o entendimento expendido pelos Recorrentes naquele articulado, a declaração implicaria a cessão da posição contratual de promitente-comprador do Autor para o Sr. G e a perda da posse por parte daquele a favor deste último.
55. Em sequência da invocada excepção peremptória, o Recorrido apresentou a competente réplica a opor-se ao entendimento dos Recorrentes e a evidenciar a falta de fundamento legal e factual do mesmo, tendo essa matéria acabado por ser vertida na Base Instrutória, por controvertida.
56. Após a devida produção de prova realizada na primeira audiência de discussão e julgamento conjugada com a apreciação dos documentos juntos aos autos, entendeu, e bem, o douto Tribunal a quo que apenas ficou provado que “O A., em 22 de Outubro de 2007 (por mero lapso de escrita encontra-se 1997 no texto do acórdão de fls. 193 a 194 v.), indicou no próprio contrato mencionado na alínea A) que a escritura pública de compra e venda, quando fosse outorgada, fosse feita a favor de G”.
57. E que “A. e 3º e 4º RR. acordaram que o primeiro poderia determinar que o contrato definitivo, e só este, fosse realizado directamente com um terceiro por si indicado”, dando integralmente por não provado o quesito 18.º.
58. Ora, ao contrário do que os Recorrentes querem fazer crer, face à produção de prova realizada nos autos, onde, não só os Recorrentes não conseguiram provar os factos que suportavam a excepção peremptória que invocaram, como o Autor demonstrou ter mantido a posse do imóvel após a referida declaração, e à letra da declaração em causa conforme expressa pelo Autor no contrato promessa, outra não poderia ter sido a decisão do douto Tribunal a quo senão a de considerar a invocada excepção improcedente, por não provada.
59. Com efeito, nem a referida declaração em si mesma, nem a prova produzida nos autos, permite aos Recorrentes retirarem as ilações (ou interpretações) que descrevem nas suas alegações de recurso, nem, tão pouco, a conclusão de que o Recorrido perdeu, de facto, a posse do imóvel após a mesma.
60. A única interpretação que aos Recorrentes é permitida fazer é o que dela consta conjugado com os depoimentos prestados a este respeito nos autos: que a escritura de compra e venda, quando, e apenas quando, fosse outorgada deveria sê-lo a favor do Sr. G.
61. Ao contrário do que os Recorrentes defendem, a aquisição e a perda da posse, quer na sua forma de corpus possidendi quer na de animus possidendi, não é matéria de direito mas de facto, pelo que esta última só poderia ser comprovada por factos concretos que demonstrassem a efectiva e factual perda da posse por parte do Autor, o que simplesmente não aconteceu.
62. A verdade é que a presente questão foi devidamente abordada e vertida na Base Instrutória, foi convenientemente apreciada em sede de decisão da matéria de facto e adequada e expressamente fundamentada na douta sentença sub judice.
63. E a verdade é que os Recorrentes não só não conseguiram provar que essa declaração teve como consequência a perda da posse pelo Autor, como advogam, como este último demonstrou cabalmente que continuou, de facto, a exercer a posse no imóvel exactamente nos mesmos termos e moldes que vinha a fazer até a ter aposto no contrato promessa.
64. Pelo exposto, não procede, nesta parte, a argumentação dos Recorrentes, devendo a mesma ser dada por Improcedente, para os devidos efeitos legais.
65. Ainda na senda de tentar demonstrar que existem elementos nos autos que impunham decisão diversa da que foi proferida pelo douto Tribunal a quo, vêm os Recorrentes alegar a interrupção do prazo da usucapião.
66. Mais concretamente alegam os Recorrentes que o facto de o Autor ter marcado escritura de compra e venda para a aquisição do imóvel para o dia 29 de Janeiro de 2008; ter declarado no contrato-promessa que as formalidades da escritura seriam tratadas em nome do Sr. G; de o contrato-promessa e a procuração irrevogável outorgada pelos 3.º e 4.º Réus a favor dos advogados do Autor, terem sido exibidos para extracção de públicas-forma pelo Notário Privado Rui Sousa em 20 de Fevereiro de 2008; e de a procuração forense junta aos autos ter sido outorgada por aquele no dia 1 de Fevereiro de 2008, resulta o reconhecimento (tácito) pelo Recorrido de que o direito de propriedade (os Recorrentes deverão querer dizer a titularidade do domínio útil) pertencia aos promitentes-vendedores.
67. Ou seja, em suma, sugerindo que o Recorrido entrou em contradição consigo próprio, os Recorrentes alegam que se aquele marcou a escritura de compra e venda era porque estava a reconhecer a sua qualidade de promitente-comprador e que não podia estar convencido de que o negócio se mostrava cumprido, porque sabia que aquela escritura era necessária para o efeito.
68. Assim corno, alegam ainda os Recorrentes, este reconhecimento funciona como uma causa de interrupção do prazo da usucaplão, nos mesmos termos da interrupção da prescrição, e, particularmente nos termos do artigo 317.º do Código Civil.
69. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 317.º invocado, “A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido”.
70. E segundo o n.º 2 do mesmo artigo, “O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam”.
71. Da leitura destes dois normativos, resulta que a interrupção da usucapião só pode resultar de um reconhecimento, pelo Recorrido, do direito (ao domínio útil) dos 3.º e 4.º Réus, efectuado por aquele perante estes e que o reconhecimento tácito (ainda no pressuposto de que é um reconhecimento efectuado pelo Recorrido perante os 2.º e 3.º Réus) só é relevante quando se reflicta em factos que inequivocamente o exprimam.
72. Ora, os referidos argumentos expendidos pelos Recorrentes não têm qualquer fundamento fáctico ou legal, demostrando ser mais uma tentativa descabida de os Recorrentes justificarem o injustificável e contrariarem, por via dos documentos juntos aos autos aquilo que não conseguem atacar (por não terem como) por via dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento.
73. Em primeiro lugar, importa sublinhar que em nenhum dos exemplos apontados pelos Recorrentes como representando o reconhecimento do direito dos 3.º e 4.º Réus à titularidade do domínio útil, esse alegado “reconhecimento” foi efectuado perante os 3.º e 4.º Réus, conforme exigido pelos normativos em causa para a existência da interrupção do prazo da usucapião.
74. Por outro lado, nenhum dos exemplos avançados pelos Recorrentes representa (expressa ou tacitamente) o reconhecimento inequívoco pelo Recorrente do direito dos 3.º e 4.º Rés ao domínio útil do imóvel em causa.
75. A este respeito, importa desde logo sublinhar que o Recorrido, desde sempre assumiu saber que a escritura de compra e venda do domínio útil do imóvel consubstanciava uma formalidade que seria necessária para que ele se tornasse formal e oficialmente no legítimo titular deste (isto, claro, antes do domínio útil do imóvel ter sido vendido aos Recorrentes e registado a favor destes últimos, restando-lhe por isso lançar mão à presente acção de usucapião).
76. O que o Recorrido sempre disse, e logrou indiscutivelmente provar pelo depoimento prestado pelas testemunhas ouvidas nos autos, é que, depois de ter pago aos 3.º e 4. Réus o preço integral acordado para a venda do (domínio útil) imóvel, e deles ter recebido as chaves do mesmo acompanhada da referida procuração irrevogável, adquiriu a posse do mesmo, nos exactos termos em que a teria adquirido caso o contrato prometido tivesse sido formalmente cumprido pela realização da escritura de compra e venda) e desde então a tem exercido sem a contestação de quem quer que seja.
77. E tal é o que basta para a aquisição da posse, o que, conjugado com o decurso do prazo previsto na lei, é suficiente para a aquisição originária por usucapião.
78. Os factos que os Recorrentes alegam apenas demonstram que o Autor sabia que, não obstante dispor a seu favor (por intermédio dos seus advogados) de uma procuração irrevogável que lhe permitia promover a venda do imóvel a si próprio (ou a quem ele indicasse) sem a intervenção dos titulares registados, ainda lhe faltava formalizar a compra e venda.
79. Face ao exposto, não tem qualquer lógica ou fundamento os Recorrentes virem, como o fazem, alegar que o prazo da usucapião foi interrompido uma vez que o Recorrido, ao tentar promover a realização da escritura de compra e venda (antes de saber que a mesma seria impossível por o imóvel ter sido vendido aos Recorrentes), reconheceu tacitamente que não era o proprietário do mesmo.
80. Para afeitos da aquisição e manutenção da posse, não releva que o Recorrido reconheça a necessidade da realização de certas formalidades para oficializar a transferência da propriedade (ou titularidade) do domínio útil do imóvel, importa apenas que este a tenha adquirido e mantido durante um certo lapso de tempo agindo como se proprietário (ou titular) do domínio público o fosse.
81. Aliás, nem tal faria sentido, porquanto, a vencer a tese dos Recorrentes, a aquisição por usucapião ficaria irremediavelmente arredada por ser sempre necessário que a mesma seja judicialmente invocada pelo possuidor para concretizar a “transferência” pretendida, o que necessariamente importa o reconhecimento por este de que não é o verdadeiro e legítimo proprietário do imóvel (ou do seu domínio útil) que pretende usucapir.
82. Pelo exposto, também neste ponto não procede o alegado pelos Recorrentes, devendo ser considerada improcedente a alegação de que o prazo da usucapião foi interrompido antes de este se ter completado, tudo com os demais efeitos legais.
83. Os Recorrentes, renovando o entendimento de que o Recorrido pretende adquirir a propriedade do domínio directo pertencente à RAEM, vêm alegar que o Recorrido deveria ter pedido também o cancelamento do registo do domínio directo inscrito a favor da RAEM.
84. Em primeiro lugar, pelas razões acima elencadas a este propósito, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, não é verdade que o Autor pretenda adquirir a propriedade do domínio directo da RAEM, conforme consta da petição inicial e dos documentos com ela juntos, e o demonstra precisamente o facto de o Recorrido ter apenas requerido especificadamente o cancelamento da inscrição (do domínio útil) a favor dos Recorrentes.
85. E, em segundo lugar, esta é matéria de defesa por excepção, a qual, de acordo com a lei processual civil aplicável deve ser alegada pelos Réus nos articulados, o que simplesmente não aconteceu, pelo que não poderão vir fazê-lo agora.
86. Mas ainda que assim se não entenda, o que por mero dever de patrocínio se invoca, sem conceder, sempre a redução do pedido acima requerida subsidiariamente, restringindo o objecto da presente acção à vertente da aquisição da titularidade do domínio útil do imóvel, colmataria a alegada falta apontada pelos Recorrentes.
87. Assim, deverá ser dado sem provimento o presente recurso dos Recorrentes e ser confirmada a douta sentença do Tribunal a quo, com as demais consequências legais.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser mantido o douto acórdão recorrido, assim se fazendo a devida e habitual JUSTIÇA!».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os Factos
Vem dada por assente a seguinte factualidade:
«a) No dia 23 de Março de 1993, os 3º e 4º RR. celebraram com o A. um contrato-promessa de compra e venda, através do qual aqueles prometeram vender a este último, pelo preço de HKD$600.000,00 (seiscentos mil dólares de Hong Kong) - rectificado o valor face à prova documental constante dos autos -, o prédio com o n.º 3, sito…, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número …, a fls…. do Livro…, e inscrito na matriz sob o n.º….
b) De acordo com o estipulado no contrato-promessa, o A. entregou a título de sinal o montante de HKD$200.000,00 (duzentas mil dólares de Hong Kong) - rectificado o valor face à prova documental constante dos autos.
c) Do contrato-promessa constava um período de 90 dias para a celebração do contrato definitivo.
d) No dia 16 de Julho de 1993, os 3º e 4º RR. outorgaram no Cartório Notarial do Notário Privado Jorge Neto Valente, uma procuração irrevogável com plenos poderes de administração e de disposição, incluindo a venda do imóvel aludido em A), constituindo como procuradores os Senhores Drs. Pedro Branco e Paulo Tavares, em conformidade com o documento de fls. 17 a 19 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
e) Os 3º e 4º RR. venderam o imóvel aludido em A), no dia 16 de Janeiro de 2008, aos 1º e 2º RR. C e D, pelo preço de MOP$348.000,00 (trezentas e quarenta e oito mil patacas) em conformidade com a escritura pública de compra e venda constante dos autos a fls. 24 a 27, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
f) Pela apresentação n.º 17.01.2008, inscrição n.º…, os 1º e 2º RR. registaram a seu favor a aquisição do imóvel, tal como resulta da certidão constante dos autos a fls. 28 a 31, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
g) Não obstante o aludido em C), A. e 3º e 4º RR. acordaram que, em vez de outorgarem a escritura pública de compra e venda, outorgariam uma procuração a favor dos advogados do A. e entregariam o imóvel a este último, contra o pagamento do remanescente do preço.
h) Em cumprimento do acordado, no dia 16 de Julho de 1993, o A. entregou aos 3º e 4º RR. valor remanescente do preço do prédio, na quantia de HKD$400.000,00 (quatrocentas mil dólares de Hong Kong).
i) Em consequência do acordado em 1º e do pagamento da totalidade do preço, os 3º e 4º RR. outorgaram a procuração aludida em D).
j) Constituindo seus procuradores os então advogados do A., Srs. Drs. Pedro Branco e Paulo Tavares.
k) A procuração estabeleceu expressamente que os mandatários estavam dispensados de prestar contas daquele mandato uma vez que aos 3º e 4º RR. já tinha sido integralmente pago o preço do imóvel.
l) Foi também por esse facto que na procuração se mencionou que – por ter sido outorgada no interesse de terceiros (do A.) – não poderia ser revogada.
m) O custo da compra do referido imóvel foi totalmente suportado pelo A., tendo para o efeito, o seu pai G, emitido, por conta do filho, os dois cheques,
n) Em contrapartida do pagamento integral do valor de venda do imóvel, os 3º e 4º RR. entregaram as chaves do mesmo ao A., para este dele tomar posse.
o) Com a entrega das chaves e pagamento do valor total do imóvel, o A. ficou convencido de que o negócio estava “cumprido” e de que nunca seria posto em causa.
p) Desde que o A. tomou posse do imóvel tem agido como verdadeiro e legítimo proprietário do mesmo.
q) O A. transferiu a titularidade dos contratos de água e de luz para o seu nome e, como a ajuda do seu pai, efectuou nele obras de reparação e conservação.
r) E em Março de 1994 arrendou-o, pelo valor de MOP$ 500,00 mensais, a Primo H e I, que desde então vivem na casa em referência com o seu filho.
s) O A. é conhecido por todos os vizinhos e amigos como o legítimo proprietário do prédio.
t) Durante todos estes anos o A. nunca mais teve qualquer contacto com os 3º e 4º RR.
u) Desde Julho de 1993 que o A. utiliza o imóvel sem qualquer oposição dos RR. ou de quem quer que seja.
v) O A., em 22 de Outubro de 2007 (houve lapso de escrita, tendo em consideração o teor do documento nº 1 junto com a petição inicial), indicou no próprio contrato mencionado na alínea A) que a escritura pública de compra e venda, quando fosse outorgada, fosse feita a favor de G.
w) A. e 3º e 4º RR. acordaram que o primeiro poderia determinar que o contrato definitivo, e só este, fosse realizado directamente com um terceiro por si indicado.»
***
III – O Direito
1 – O percurso processual
O autor da acção tinha apresentado uma causa de pedir com vista à aquisição do direito de propriedade sobre um determinado prédio devidamente identificado nos autos. Em sua opinião, os factos invocados eram suficientes à demonstração da usucapião.
Esta tese vez vencimento, pois a primeira sentença lavrada deu-lhe razão, reconhecendo-lhe o direito de propriedade reclamado.
Os 1ºs e 2º RR, porém, discordaram e apresentaram recurso jurisdicional para o TSI. E num primeiro acórdão, este tribunal anulou o julgamento da matéria de facto a fim de que, baixados os autos, fosse o julgamento da matéria de facto repetido de modo a incluir nova factualidade tida por importante para o desfecho da causa (fls. 307-310).
Renovado o julgamento, foi na oportunidade lavrada nova sentença, que uma vez mais julgou procedente a acção e declarou o A como dono e legítimo proprietário do referido prédio.
Apresentado novo recurso pelos mesmos 1º e 2º RR, nas respectivas alegações foi por eles suscitada, entre outras coisas, a questão da impossibilidade de aquisição do direito de propriedade do prédio por meio de usucapião, face ao disposto no art. 7º da Lei Básica.
Na resposta a esse recurso, o autor esclareceu que nunca teve a intenção de adquirir por usucapião a propriedade plena do prédio, mas sim e apenas a titularidade do seu domínio útil.
E o TSI, face a esse esclarecimento do A, por acórdão de 14/11/2013, concedeu provimento ao recurso e determinou a baixa dos autos à 1ª instância a fim de o tribunal “a quo” “interpretar e decidir acerca dos possíveis efeitos do esclarecimento supra referido prestado pelo Autor, nomeadamente no sentido de eventual apreciação do pedido na perspectiva de aquisição da titularidade do domínio útil pela via da usucapião” (fls. 530).
Face a esta posição do TSI, uma vez recebidos os autos, o juiz da 1ª instância proferiu outra sentença em 21/01/2014, reconhecendo ao A, por usucapião, a titularidade do domínio útil do prédio, assim julgando procedente a acção (fls. 538-545).
*
2 – O recurso
Vêm agora, uma vez mais, os 1º e 2º RR recorrer dessa sentença, alegando, num primeiro momento, que ela:
- Viola as instruções do acórdão de 14/11/2013;
- Viola o princípio do contraditório.
Num segundo momento, defendendo que ela deve ser revogada, na medida em que:
- O esclarecimento do autor acerca do seu propósito traduz uma modificação do pedido do autor;
- Tal modificação seria impossível de fazer em alegações de resposta ao recurso;
- O tribunal, face ao princípio do dispositivo, não podia reduzir o pedido da propriedade para o domínio útil.
Num terceiro momento, os recorrentes continuam a defender que se não mostram reunidos os requisitos para aquisição do direito, acrescentando ainda que este estaria prescrito e que teria sido violado o art. 8º do Código do Registo Predial.
*
3 – Parece-nos que os recorrentes têm razão no que respeita à primeira parte das suas alegações. As consequências é que não serão aquelas por que eles se batem. Mas vejamos.
Quando o TSI, no seu acórdão de 14/11/2013 disse que não podia conhecer do recurso na perspectiva do esclarecimento do autor da acção (então recorrido), segundo a qual a sua pretensão não era a aquisição do direito de propriedade plena, mas apenas o domínio útil do prédio, explicou a razão porque assim agia: não atentar contra o duplo grau de jurisdição. Foi por essa razão - e pouco importa agora averiguar se podia haver lugar a diferente solução para o problema posto ao TSI naquela fase – que o tribunal de recurso determinou a baixa dos autos à 1ª instância.
A intenção era perfeitamente compreensível: cometer ao tribunal “a quo” uma apreciação prévia sobre a possibilidade de o autor modificar o pedido. Na verdade, pedir a aquisição da propriedade é diferente da aquisição do domínio útil. Há aí uma diferença, que não é só de grau, mas que é, também e principalmente, de qualidade da pretensão, a qual, na tese do tribunal “ad quem”, haveria que ser ponderada.
E quem havia de fazer essa ponderação, segundo o aresto? Seria a 1ª instância. Esta deveria decidir se a alteração do pedido seria possível de acordo com as regras processuais vigentes. Se chegasse à conclusão de que tal era admissível, di-lo-ia expressamente e lavraria posteriormente a correspondente sentença favorável ao autor; se entendesse que não, julgaria em consequência improcedente a acção, face à nova perspectiva. Isto é facilmente entendível.
Como nos parece claro, portanto, antes de decidir pela procedência ou improcedência da acção, deveria fazer o seu próprio juízo acerca dessa modificação (qualitativa) do pedido, tal como lho havia determinado o TSI. E fazê-lo de forma expressa, numa manifestação evidente de ter apreciado tal questão imposta pelo tribunal superior, não valendo, para esse efeito, um silêncio de que agora se queira extrair efeitos tácitos. Quer dizer, de nada valerá neste momento dizer que a sentença lavrada, mesmo que nada tenha dito sobre o tema, acabou por sufragar a tese da admissibilidade da modificação do pedido. Desse mutismo não se pode retirar um efeito favorável à referida alteração, na medida em que ele atenta contra o que o TSI determinou.
Este é, pois, um aspecto que mereceria consideração.
Todavia, da omissão - simultaneamente do não cumprimento da determinação do tribunal de recurso – não resulta mais do que uma nulidade processual geral (art. 147ºdo CPC), que deveria ter sido arguida em reclamação/requerimento em modo autónomo (arts. 147º, 148º, 152º, nº3, do CPC). Quando, com a notificação da sentença, o recorrente se deu conta da omissão ocorrida, logo a deveria ter suscitado junto do autor a nulidade e esperar pela respectiva decisão. E, conforme a decisão que sobre ela recaísse, haveria lugar ou não a recurso.
Isto, portanto, para dizer, que não é possível apreciar no âmbito do presente recurso esta matéria, uma vez que ela não é, sequer, de conhecimento oficioso.
E o facto de os recorrentes a virem arguir agora de nada já vale, uma vez que nem o momento (já transitou essa matéria; está sanada a nulidade, por não ter sido observado o prazo de 10 dias para a arguição, face aos arts. 103º e 582º, do CPC), nem o meio (haveria de ser reclamação) são os próprios.
*
4 – Mas há um outro, sem dúvida nenhuma.
Estando nós perante uma alteração do pedido, que esbarra contra o princípio da estabilidade da instância (art. 212º do CPC), a admissibilidade dessa mudança de estratégia por parte do autor da acção, salvo o devido respeito, não podia culminar num acolhimento de tal pretensão, sem que sobre ela os RR pudessem manifestar a sua posição, eventualmente contrária.
Na verdade, sendo essa alteração tão profunda e podendo ela produzir consequências tão importantes quanto ao sentido da decisão final dos autos - com um acórdão, por exemplo, que não acolhesse a tese da aquisição da propriedade por usucapião, face à jurisprudência conhecida da RAEM a propósito do art. 7º da Lei Básica – deveria ela ser comunicada aos demandados, a fim de que sobre o assunto se pudessem pronunciar, eventualmente dando o seu acordo, tal como possibilitado pelo art. 216º do CPC, ou negando-o, caso em que haveria o tribunal de indagar se o caso tinha ou não cabimento na previsão do art. 217º, do CPC.
Ora, ao não dar a palavra aos RR e, em vez disso, partir directamente para uma nova decisão, estamos convictos de que o tribunal “a quo” atentou contra o princípio do contraditório a que se refere o art. 3º do CPC.
A não audição da parte contrária sobre este tema constitui uma omissão com aptidão para influir no exame e decisão da causa - a posição dos RR respondentes podia permitir a decisão que acabou por ser tomada, se dessem o seu acordo à alteração do pedido ou podia inviabilizá-la, na hipótese contrária – e, por isso mesmo, nos termos do art.147º, do CPC representa uma segunda nulidade processual1.
Não é, todavia, tal como a primeira acima citada, uma nulidade de que o tribunal possa conhecer oficiosamente2.
Por outro lado, tal nulidade processual não pode ser arguida em sede de recurso, mas sim perante o tribunal que a tenha cometido em sede de reclamação3.
É certo que, segundo alguma doutrina e jurisprudência, nem sempre a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva deve ser feita através da reclamação de nulidade. Poderá, dizem alguns, ser através de recurso, desde que o despacho ou sentença tenham dado cobertura à nulidade4. É que nesse caso o problema muda de nulidade, para erro de julgamento5.
Neste ponto, o problema consiste em saber se dar cobertura implica ou não uma posição expressa acerca do posicionamento do tribunal a respeito da nulidade concreta, de modo a ficar a saber-se se o julgador assim agiu em consciência e se, de modo claro, sopesou o problema para concluir no sentido de que, para si, não havia nulidade.
Pois bem. Esta questão mereceu duas posições até hoje conhecidas.
Segundo uma, a autorização ou o sancionamento do acto ou da omissão de um acto pode ser feito de modo implícito, não sendo necessário que haja indicação mais ou menos concludente no sentido de o juiz ter considerado a questão a que se refere a nulidade. É neste sentido que se posiciona Alberto dos Reis6 e alguma jurisprudência comparada7
Segundo outro ponto de vista, se falta uma pronúncia expressa sobre a irregularidade, não se pode dizer que a nulidade está coberta pelo despacho ou pela sentença ou que estes foram consequência dela. É a posição de Anselmo de Castro8 à qual aderiu Lebre de Freitas9.
Trata-se, como se vê, de uma questão que está longe de ter solução pacífica.
Todavia, somos a optar pela solução que procura ver no despacho ou na sentença impugnada uma manifestação resolutória expressa acerca de uma eventual irregularidade/nulidade. Quer dizer, para nós haveria recurso da sentença com esse fundamento (omissão do princípio do contraditório) se o juiz tivesse dito em qualquer momento dela (sentença) que não seria necessário ouvir os RR. Nesse caso hipotético, sim, a sentença cobriria a nulidade e não haveria necessidade de reclamação desta.
Mas, se o tribunal, como foi o caso, nenhuma pronúncia fez acerca da desnecessidade do respeito pelo princípio do contraditório (tal como nada disse sobre a possibilidade de alteração substancial do pedido), então não podemos nós extrair a conclusão de que ele assim agiu porque desse modo bem o quis. Não podemos inferir, deduzir ou pressupor nada disso. Não podemos ver nessa ausência de pronúncia sobre o assunto uma decisão implícita acerca da desnecessidade de observância das formalidades legais em causa.
Assim, deveriam os recorrentes ter suscitado, através de reclamação, as nulidades referidas junto do seu autor, a fim de que este, em conformidade, pudesse decretá-la, arrastando desse modo com a anulação a própria sentença, nos termos do art. 147º, nº2, do CPC10.
Repetimos o que acima já dissemos: o facto de os recorrentes virem arguir agora a nulidade de nada já vale, uma vez que nem o momento (já transitou essa matéria; está sanada, por ter sido ultrapassado o prazo de 10 dias para a arguição, face aos arts. 103º e 582º, do CPC), nem o meio (haveria de ser reclamação) são os próprios.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
*
4.1- E se improcede quanto a este fundamento, a mesma sorte tem quanto à surpresa que o recorrente invoca ao ser, segundo diz, confrontado com a decisão impugnada.
Por um lado, relativamente a esta matéria, os argumentos a utilizar são os mesmos que deixámos atrás exarados na rubrica que antecede. Por outro, não é inteiramente certo que tal decisão seja uma verdadeira surpresa, na medida em que o recorrente foi notificado do acórdão do TSI e, pela sua leitura, logo se apercebeu acerca do que estava em causa e, assim, da eventualidade de uma decisão como aquela (cujo pecado, repetimos, consiste somente em não ter sido precedida do contraditório e de uma pronúncia expressa sobre a alteração do pedido).
*
5 – Do mérito da decisão recorrida
5.1 - Entendem os recorrentes que, de acordo com o ponto V dos factos assentes, deveria o tribunal reconhecer que o autor da acção perdeu a posse, circunstância que deveria levar à improcedência do pedido.
O referido facto (V) diz o seguinte: “O A., em 22 de Outubro de 2007 (…), indicou no próprio contrato mencionado na alínea A) que a escritura pública de compra e venda, quando fosse outorgada, fosse feita a favor de G”.
Na opinião dos recorrentes, o autor revelou que a titularidade da aquisição seria clausulada a favor do seu pai; logo, nesse momento, perdeu o animus possidendi por vontade própria. E perdendo o “animus”, perdeu a posse. Ou seja, desde 1993 até 2007 não teriam decorrido 15 anos de posse para se dar a usucapião.
Não tem razão, evidentemente.
Os actos de posse são actos materiais exercidos sobre a coisa; o animus é a vontade de os exercer e de, por intermédio deles, extrair dela (coisa) as devidas utilidades. Ora, o facto de o autor ter dito que a escritura poderia ser efectuada a favor de outrem, não significa que não tenha continuado a exercer aqueles actos de posse e com a mesma vontade de adquirir. Em nossa opinião, aceitar transmitir o direito de aquisição para outrem em determinado momento posterior, não envolve a perda dos efeitos que habitualmente andam associados à posse e ao animus. O que realmente interessa é saber se os actos de posse ocorreram pelo período de tempo previsto na lei e se durante esse período a intenção era aquisitiva para o interessado directo. Ora, isso foi provado. Logo, aquela declaração concernente à identificação da pessoa que iria figurar como adquirente não pode ter efeitos descaracterizadores dos restantes elementos da usucapião, desde que eles se tenham verificado em concreto.
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5.2 – Da prescrição
Defendem ainda os recorrentes que o facto de o A ter aposto a declaração acima assinalada (V dos factos) envolve o reconhecimento a que se refere o art. 317º do CC, suficiente à interrupção da usucapião, face ao disposto no art. 1217º do mesmo Código.
Pois bem. É certo que se aplicam à usucapião, nos termos do art. 1217º, do CC, as regras referentes à suspensão e interrupção da prescrição, sendo verdade, por outro lado, que, por força da mesma disposição, se lhe aplica ainda a regra da necessidade de invocação da prescrição, conforme art. 296º.
Mas, o artigo invocado no recurso, tanto no nº1, como no nº2, não favorece a tese dos recorrentes. Na verdade, o art. 317º visa interromper o prazo da prescrição (agora, da usucapião) com fundamento no reconhecimento do direito efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.
Trata-se de uma declaração/aceitação com carácter confessório, feita por aquele contra quem o direito pode ser exercido, de que este existe na esfera do titular: o obrigado, não obstante a prescrição, reconhece que o direito existe na esfera do credor.

Transpondo a “fattispecie” para o caso dos autos, e seguindo o percurso mental dos recorrentes, dir-se-ia que o A. teria visto interrompido o curso normal da usucapião, a partir do momento em que, a certa altura, reconheceu que o direito afinal não lhe pertencia.
Todavia, a formulação não está certa.
Na verdade, em primeiro lugar, aquela declaração não tem o condão de reconhecer pelo A. um direito dos 3º e 4 RR que seja incompatível com o seu e que o impeça e vir a adquirir. Quer dizer, naquele momento uma tal declaração não quer significar que o direito à aquisição se torna impossível face ao direito do transmitente. Aliás, o que está patente nos contratos de promessa é sempre essa intenção de adquirir e de vender, consoante a posição das partes no negócio. A propriedade prometida transmitir, nos contratos de promessa de compra e venda, mantém-se na esfera do promitente vendedor até que se realize a escritura ou, nos casos de usucapião, até que o tribunal decrete esta a favor dos promitentes compradores que a invocaram judicialmente.
Em segundo lugar, aquela declaração, como já se disse, não equivale a confessar que não tem direito à escritura definitiva e que o direito à propriedade (agora, ao domínio útil) existe na esfera dos 3º e 4º RR e que não o perderam. Limita-se a plasmar que ela, a escritura, poderia vir a ser celebrada por outrem, que não por si. Ora, isso não envolve o reconhecimento de que, nem está a praticar actos de posse, nem que não tem intenção de adquirir.
Da mesma maneira, a circunstância de o A. e os 3º e 4º RR terem acordado que os 3º e 4ª RR outorgariam uma procuração irrevogável (o que veio a acontecer em 16/07/1993: factos D), G), H), I) e J)) nada muda. Com efeito, dessa procuração não se retira a ideia de que o A. se tivesse querido despojar do direito à aquisição ou que quisesse transmitir esse direito a outrem. Aliás, tal procuração foi emitida a favor do A, conforme consta do facto L).
Enfim, se mesmo depois da declaração e da referida procuração os actos de posse continuaram com o respectivo animus e pelo tempo necessário à usucapião, então não se pode apelar ao art. 317º, na esperança de com isso se ilustrar um factor interruptivo, que realmente inexiste.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
*
5.3 – Da violação da lei registral
Entendem ainda os recorrentes que, pelo facto de o A. pretender adquirir por usucapião a propriedade, isso implicaria que tivesse que pedir, sem que o tivesse porém feito, o cancelamento do registo do domínio directo da RAEM.
Ora, se, como se viu, já deixou de estar em discussão a aquisição originária da propriedade, mas simplesmente o domínio útil sobre a coisa, perde sentido e utilidade o argumento trazido pelos recorrentes.
*
6 – Conclusão
Não há outros fundamentos de que o tribunal deva conhecer, porque invocados, ou porque de conhecimento oficioso.
Sendo assim, pese embora a verificação das supra referidas nulidades, outra solução não nos resta, senão confirmar a sentença recorrida.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custa pelos recorrentes.
TSI, 04 de Junho de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Parcialmente vencido nos termos da declaração de voto que se junta.







Processo nº 592/2014

Declaração de voto de vencido
O Acórdão qualifica a violação do princípio do contraditório como nulidade processual.
É-me correctíssima essa qualificação.
No entanto, já não acompanho o entendimento de que, in casu, a tal nulidade processual não pode ser arguida por via do presente recurso que, na óptica dos Exmº Colegas, não é o meio de impugnação idóneo, pois para os Exmº Colegas a mesma nulidade deveria ter sido arguida perante o Tribunal a quo.
Na verdade, a nulidade processual dependente de arguição, em regra, deve ser arguida perante o Juiz, autor do acto ou da omissão.
E da decisão sobre a arguição cabe recurso para o Tribunal superior.
Todavia, há situações em que a nulidade processual só é reflectida na sentença final da instância.
É o que se sucede no caso em apreço.
Ora, por força do princípio do auto-esgotamento do poder jurisdicional, consagrado no artº 569º do CPC, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa, sem prejuízo das limitadas excepções expressamente permitidas no artº 569º/2 do CPC, à luz do que o Juiz pode rectificar erros materiais, suprir nulidades da sentença, esclarecer dúvidas provocadas pela sentença e reformá-la quanto a custas e multa, assim como competência para resolver os incidentes e questões que surjam no desenvolvimento posterior do processo, desde que não se repercutam na sentença que proferiu.
Assim, neste tipo de situações, entendo que tal nulidade processual só reflectida na sentença não deve ser arguida perante o Tribunal a quo, mas sim por via de recurso perante o Tribunal de recurso.
Pois, se admitíssemos a arguição de nulidade processual, cometida antes da prolação da sentença, mas apenas reflectida na sentença, perante o Tribunal que a proferiu, estaríamos a conferir ao Juiz autor da sentença o poder para alterar ou modificar, por via indirecta, a decisão proferida, o que seria de todo em todo intolerável, pois se criaria a desordem, a incerteza e a confusão, nas palavras de Alberto dos Reis – CPC Anotado, V, pág. 127.
Subscrevo assim as restantes partes do presente Acórdão em tudo quanto que não dependa da solução dada à questão da violação do princípio do contraditório.
RAEM, 04JUN2015
Lai Kin Hong


1 Ver, por exemplo, na jurisprudência comparada, Ac. RE, de 1/04/2004, Proc. nº 2737/03; RL, de 11/01/2011, Proc. nº 286/09, entre outros.
2 Na jurisprudência comparada, por exemplo, o Ac. do STJ, de 13/01/2005, Proc. nº 04B4031.
3 Neste sentido, por exemplo, os Acs. do TUI, de 30/04/2008, Proc. nº 10/2007 e de 27/04/2011, Proc. nº 64/2010; do TSI, de 13/02/2014, Proc. nº 221/2009.
4 Neste sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, pág. 424; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, 1993, pág. 183; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 393. Na jurisprudência comparada, Ac. da RC, de 4/06/2000, in BMJ, nº 496, pág. 314.
5 Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, I, pág. 350.
6 Comentário ao Código de Processo Civil, II, pág. 510.
7 Na jurisprudência comparada, ver, por exemplo, neste sentido, o Ac. da RL, de 4/06/2009, Proc. nº 67/00, precisamente a propósito da omissão do contraditório em sentença que condena em litigância de má fé. No mesmo sentido – ainda que citando deturpadamente a posição de Anselmo de Castro – o Ac. da RL, de 11/01/2011, Proc. nº 286/09; também, o Ac. do STA, de 9/04/1997, Proc. nº 021070 ou os arestos do TCA/SUL, de 19/10/2004, Proc. nº 07203/02 e de 7/03/2006, Proc. nº 1186/2003.
8 Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1981, pág. 134-135.
9 Código…cit. pág. 350. Na jurisprudência comparada, neste sentido, por exemplo, o Ac. da RL, de 10/07/2007, Proc. nº 270/04
10 Lebre de Freitas, ob. cit., I, pág. 351, nota 8; Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pág. 387.
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