Proc. nº 321/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 11 de Junho de 2015
Descritores:
-Contrato de promessa
-Art. 228º do CC
-Interpretação negocial
SUMÁRIO:
I. A interpretação de uma declaração negocial é matéria de direito quando tenha que ser efectuada nos termos do nº1, do art. 228º do C.C., de acordo com um critério normativo, também designado objectivista; mas será matéria de facto, quando tenha que ser efectuada segundo o critério do nº2, do mesmo artigo, isto é, quando tenha que ser feita de acordo com a vontade real do declarante, ou seja, à luz de um critério subjectivista.
II. Se o autor, na causa de pedir formulada na petição inicial da acção, afirmou que o negócio celebrado era um contrato de promessa de compra e venda e se o réu, na sua contestação aceitou expressamente essa afirmação, ambas as partes se puseram de acordo quanto a esse facto.
III. Se, na sequência das posições das partes quanto a esse facto, foi lavrado o despacho saneador, dando como assente aquela factualidade, de que o réu não reclamou (art. 430º, nº2, do CPC), deixou de haver despacho que possa agora, em recurso da sentença, ser impugnado para se defender uma interpretação diferente do negócio e se afirmar que ele não era um contrato de promessa de compra e venda (art. 430º nº3, do CPC).
Proc. Nº 321/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A, casado, de nacionalidade chinesa, titular do BIRM n.º…, residente em Macau, na Rua…, intentou no TJB (proc. nº CV3-11-0107-CAO) acção ordinária contra ----
B, casado, de nacionalidade chinesa, portador do BIRM n.º…, residente na …, pedindo a condenação deste pagamento de Mop$ 5.541.112,49, e juros legais, valor do preço que pagou no âmbito de um contrato de promessa de compra e venda de uma faixa de terreno em Coloane, mas de que ora pretende a resolução, em virtude de, por culpa do R, nunca ter sido celebrada a escritura definitiva de compra e venda.
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Na oportunidade, foi proferida sentença que julgou procedente a acção.
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É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso pelo réu, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1) Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo a fls. 217 e ss. que condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de HKD$5,379.464.70 (cinco milhões, trezentas e setenta e nove mil e quatrocentas e sessenta e quatro Hong Kong dólares e setenta avos), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data de 24 de Outubro de 2011.
2) Ressalvado o devido respeito, as conclusões do acórdão recorrido estão viciadas por um erro de interpretação e qualificação do contrato em discussão nos presentes autos, designadamente quando qualifica o contrato celebrado entre as partes como um “contrato-promessa”.
3) Não é verdade que o contrato tivesse em vista a promessa de transferência do direito de propriedade sobre o terreno, designadamente através da outorga, no futuro, de uma escritura pública de compra e venda, sendo precisamente neste ponto que naufraga toda a argumentação expendida pelo Mm.º Tribunal a quo, nomeadamente no que concerne ao incumprimento da obrigação de celebração do contrato definitivo (obrigação inexistente, pois não está em causa um contrato-promessa).
4) A realidade do contrato impõe-se ao “nomen iuris” atribuído pelas partes, e do contrato (e de todos os actos materiais em execução do mesmo) resulta que as partes pretenderam realizar uma transmissão da posse do Réu para o Autor mediante o pagamento de uma determinada quantia, negócio legalmente atípico mas socialmente típico em Macau, considerando a problemática das “escrituras em papel de seda”.
5) O contrato, na sua 4.ª Cláusula, não oferece dúvidas quanto ao sentido e alcance com que as partes entenderam o negócio, tanto assim que o próprio Autor vem alegar um incumprimento do Réu do dever de colaboração, já que supostamente não teria ajudado o Autor a ser reconhecido pelo Governo de Macau como novo proprietário do terreno [em rigor, concessionário].
6) Como é óbvio, seria contraditório e incompatível que o Réu tivesse de ajudar o Autor para que este fosse reconhecido como novo proprietário pelo Governo de Macau e, posteriormente, fosse suposto ainda celebrar uma escritura pública de compra e venda daquele terreno!
7) Donde se retira que o fito do Autor era obter a posse do terreno para negociar uma concessão por arrendamento junto do Governo de Macau.
8) Aliás, logo em Setembro de 1992 (no mês à conclusão de todas as obrigações resultantes do contrato em apreço), o Autor encetou negociações com o Governo do Território de Macau para obtenção de uma concessão por arrendamento, elaborando um projecto para o aproveitamento daqueles terrenos no âmbito de um projecto de construção predial em sociedade com terceiros, aos quais cedeu parte dos terrenos (tudo conforme documento a fls. 177 a 181 dos autos).
9) Assim, perante o estipulado no contrato (mormente na sua 4.ª Cláusula) e os factos que se sucederam, é patente que não está em causa um contrato-promessa, já que as partes não pretendiam comprometer-se à celebração de um contrato futuro, pois bem sabiam que era impossível celebrar uma escritura pública de compra e venda de um terreno titulado por “Sá Chi Kai”.
10) Ficando antes demonstrado que o contrato pretendia titular, em termos formais, a sucessão do Autor na posse daquele terreno, permitindo-lhe, então, apresentar-se junto da Administração como possuidor e negociar o respectivo aproveitamento.
11) No limite, ainda que assim não fosse de entender, isto é, que não estivesse em causa uma “legitimação formal” da posse do Autor, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se dirá que o que o Autor e o Réu pretenderam foi acordar na desocupação daquela parcela de terreno contra o pagamento de uma certa maquia, de modo a que o Autor pudesse então procurar obter uma concessão administrativa, junto do Governo de Macau, para aproveitamento do terreno.
12) E nunca obter um suposto de direito de propriedade sobre aquele terreno através de uma escritura pública a celebrar com o Réu.
13) A qualificação de um contrato é um juízo predicativo que tem por conteúdo o reconhecimento desse contrato corresponder, ou não, a este ou àquele tipo, no caso, ao tipo legal do “contrato-promessa”.
14) Partindo dos índices do tipo, designadamente da causa do negócio, entendida objectivamente como função, o fim, a estipulação do tipo, o objecto, a contrapartida, a configuração, o sentido, as qualidades das partes e a forma, para a realização daqueles sub-juízos, chega-se à conclusão que, para além do “nomen iuris”, nenhum dos demais índices do tipo permite qualificar o contrato em discussão nos presentes autos como um “contrato-promessa”.
15) Logo à partida, em momento algum o contrato tinha por fim e objecto a celebração de um qualquer contrato ulterior (elemento essencial dos contratos-promessa, nos quais as partes se comprometem a celebrar um contrato).
16) Pelo que uma interpretação que defenda que foi com essa configuração e sentido (de “contrato-promessa”) que as partes celebraram o acordo em questão, viola o disposto no artigo 230.º do Código Civil, pois nunca o Autor e o Réu, no âmbito do contrato, “prometem” comprar e vender, respectivamente, o terreno em causa.
17) Pelo contrário, como se disse, o Autor acusou o Réu de não ter cumprido com o dever de colaboração previsto na 4.ª Cláusula do contrato, impedindo-o de ser reconhecido pelo Governo de Macau como novo proprietário do terreno [em rigor, concessionário ou foreiro].
18) Ainda assim, poderia argumentar-se que o contrato se refere a uma compra e venda do terreno, pelo que não seria um contrato através do qual se procura legitimar, em termos formais, a transferência da posse do Réu para o Autor.
19) No entanto, salvo o devido respeito por melhor opinião, tal objecção omite a referência contratual ao “título” existente sobre o terreno (a “escritura em papel de seda”, que no limite, poderia funcionar como facto que assistia na comprovação da posse) e, também, o facto de no próprio contrato se consagrar a necessidade de diligências junto dos departamentos do Governo de Macau para aproveitamento do terreno.
20) Com efeito, tal entendimento esquece a tipicidade social do contrato em causa, resultante das particularidades de Macau.
21) Por outro lado, não cabendo dúvidas que está em causa um contrato legalmente atípico, não se pode esquecer que o negócio jurídico e todas as cláusulas reguladoras foram incorporadas num documento escrito, estando por isso sujeitas à norma interpretativa contida no artigo 230.º do Código Civil.
22) Ora, das diversas cláusulas do contrato não resulta qualquer obrigação para as partes de, no futuro, celebrarem um contrato definitivo (pois este já era o contrato definitivo!), pelo que a interpretação do Mm.º Tribunal a quo viola o disposto no artigo 230.º, n.º 1, do Código Civil.
23) Como última objecção a este entendimento quanto ao real alcance do negócio, poder-se-á dizer que o contrato refere a realização de uma compra e venda, não tendo um mínimo de correspondência verbal a argumentação de que o mesmo se limita a uma mera transferência de posse.
24) Só que, como se disse, a realização do contrato naqueles termos tem por base uma realidade histórica e social típica de Macau, que justifica os termos empregues no contrato.
25) De todo o modo, o próprio contrato prevê a necessidade de formalidades a serem realizadas junto da Administração do Território para aproveitamento do terreno.
26) O que conjugado, uma vez mais, com o que o próprio Autor refere a propósito de um suposto incumprimento de um dever de colaboração do Réu, o qual alegadamente teria impedido o reconhecimento pelo Governo de Macau do Autor enquanto proprietário [em rigor, concessionário] daquele terreno,
27) Revela que o verdadeiro sentido das declarações das partes consubstanciadas no contrato se prendia, tão somente, com uma “legitimação formal” da transmissão da situação de facto que o Réu tinha sobre o terreno.
28) Devendo, caso fosse de entender que aquela transmissão de posse não tinha um mínimo de correspondência verbal no texto do contrato - o que por mera cautela de patrocínio se concebe -, ser o contrato interpretado de acordo com aquela vontade real das partes (que se retira de vários factos provados nos presentes autos, nomeadamente a entrega do terreno e as diligências iniciadas pelo Autor junto da competente entidade governamental).
29) Sendo ainda de referir que, não sendo um contrato legalmente típico, não se verificam quaisquer razões determinantes da forma do negócio que se oponham à interpretação do mesmo com o sentido dado pela vontade real das partes.
30) Ainda que assim não fosse de entender, isto é, caso não estivesse em causa uma “legitimação formal” da posse do Autor, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se dirá que, no limite, o que o Autor e o Réu pretenderam foi acordar na desocupação daquela parcela de terreno contra o pagamento de uma certa maquia, de modo a que o Autor pudesse então procurar obter uma concessão administrativa, junto do Governo de Macau, para aproveitamento do terreno.
31) Matéria que, de qualquer um dos modos, colide com uma qualquer Vinculação à celebração de um suposto contrato prometido.
32) Nestes termos, não estando em causa um “contrato-promessa” - sem prejuízo do nomen iuris atribuído pelas partes -, verifica-se que todas as obrigações resultantes do contrato celebrado entre as partes foram integralmente cumpridas pelo Réu, ora Recorrente, conforme se retira das respostas aos quesitos 1.º a 3.º, 10.º a 12.º da Base Instrutória.
33) Não tendo sido prometida a celebração de qualquer contrato, inexistem quaisquer razões para se considerar o contrato incumprido.
34) Assim sendo, a falta de promoção de uma acção de usucapião é irrelevante, até porque o contrato não poderia impor a tradição do terreno e, ao mesmo tempo, obrigar o Réu a intentar uma acção de usucapião para aquisição do direito de propriedade sobre o terreno, já que com a tradição o Réu deixa de ter a necessária posse!
35) Salvo o devido respeito, o raciocínio elaborado pelo Mm.º Tribunal a quo está viciado à partida, na medida em que procura forçar a realidade a encaixar na teoria preconcebida do “contrato-promessa”, ao invés de se partir da realidade contratual e factual para se apurar o conteúdo e alcance do negócio jurídico concluído entre as partes.
36) Para além disso, a própria argumentação é contraditória, na medida em que, conforme os Acórdãos citados pelo Mm.º Tribunal a quo, só com a Lei n.º 2/94/M, de 4 de Julho, é que o legislador “ (…) Na contemplação das situações de posse optou por dar a possibilidade de os possuidores obterem o estatuto de foreiros do Território, reconhecida que 'seja, judicialmente, a situação de posse com a duração de vinte anos. (…) ” (cfr. Assento do Tribunal Superior de Justiça de 18 de Outubro de 1995, proferido no âmbito do Processo n.º 295, que continua a constituir jurisprudência obrigatória para os Tribunais da RAEM, nos termos do artigo 2.º, n.º 6, alínea b), do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8 de Outubro).
37) Caso contrário, uma acção de usucapião estaria vetada ao fracasso por falta de título formal de aquisição, através do qual o terreno tivesse ingressado na propriedade privada.
38) Como é óbvio, em Abril de 1992, quando as partes celebraram o negócio jurídico em apreço nos presentes autos, não podiam contar com uma lei que só viria a surgir dois anos mais tarde, muito depois de efectuada a tradição do terreno exigida pelo Autor.
39) Pelo que, também por esta razão, não tem qualquer cabimento pressupor que as partes pretenderam celebrar um contrato definitivo de compra e vencia e que foi o Réu que se colocou na impossibilidade de o cumprir por não ter intentado uma acção de usucapião.
40) Não se vislumbrando, assim, quaisquer outras razões que fundamentem a resolução do contrato, resulta claro que foi o facto de ter, erradamente, qualificado o negócio jurídico como “contrato-promessa” que levou o Mmº Tribunal a quo a concluir que o suposto contrato prometido nunca veio a ser realizado, por culpa do Réu, e não sendo já possível o cumprimento daquele contrato, o Réu teria de devolver ao Autor as quantias recebidas.
Nestes termos, e no mais de Direito, deverão V. Ex.ªs, Venerandos Juízes do Tribunal de Segunda Instância, revogar o acórdão recorrido, substituindo-o por decisão que considere a acção movida pelo Autor totalmente improcedente e, por conseguinte, absolva o Réu do peticionado pelo Autor, assim se fazendo JUSTIÇA!».
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Não houve resposta ao recurso por parte do autor.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
Em 29 de Abril de 1992, o Autor e o Réu celebraram um contrato-promessa de compra e venda. (alínea A) dos factos assentes)
Por via de tal contrato-promessa, o Autor prometeu comprar e o Réu prometeu vender-lhe um troço de um terreno, troço 1 da Área de Terreno X, sito em Coloane, Ká Hó. (alínea B) dos factos assentes)
De acordo com o intróito do contrato-promessa, o Réu manifestou a sua vontade de vender ao Autor esse terreno do tipo de escritura de papel de seda. (alínea C) dos factos assentes)
Nos termos da cláusula 4ª, o Autor e o Réu acordaram que depois da celebração do contrato-promessa, o Réu:
i. Deveria fornecer os respectivos documentos comprovativos; e
ii. Deveria ter as obrigações de ajudar o Autor a tratar das formalidades nos respectivos departamentos do Governo e aproveitar o referido lote de terreno. (alínea D) dos factos assentes)
No respeitante ao preço, nos termos da cláusula 1ª, o Autor e o Réu acordaram que o preço de cálculo de venda do citado terreno seria de cento e setenta Hong Kong dólares (HKD170,00) por pé quadrado. (alínea E) dos factos assentes)
O Autor pagou ao Réu a totalidade do preço de venda acordado, ou sejam, HKD5.379.464,70 (cinco milhões trezentos e setenta e nove mil quatrocentos e sessenta e quatro dólares de Hong Kong e setenta cêntimos), valor este que se obtém considerando o preço unitário de HKD 170,00 por cada ft2 e, por outro lado, a área do troço 1 da Área de Terreno X, ou seja, 31.643,91 ft2. (alínea F) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
O contrato definitivo de compra e venda nunca foi celebrado. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
Mediante notificação judicial avulsa requerida em 16 de Agosto de 2011, o Autor interpelou o Réu para vir cumprir o contrato ou apresentar uma via alternativa à sua resolução. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
Apesar de interpelado, nada foi respondido ou contraposto pelo Réu. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
O Autor comunicou a intenção da resolução do contrato mediante carta escrita de 20 de Setembro de 2011 recebida pelo Réu. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
Desde pelo menos 29 de Abril de 1992 até 20 de Dezembro de 1999, o Réu não promoveu o reconhecimento judicial via usucapião do direito de propriedade sobre o terreno referido. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
O Réu efectuou despesas por causa da presente lide, incluindo os honorários do seu mandatário de montante não apurado. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
O Réu entregou ao Autor a parcela de terreno referido na alínea B), assim que pagou a totalidade do preço acordado. (resposta aos quesitos 10º e 11º da base instrutória)
O Autor passou a administrar esses terrenos. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)».
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III – O Direito
1 – O autor invocou na petição inicial, fundamentando a resolução do contrato e o pedido de restituição do valor entregue ao réu, o seguinte:
Prometeu comprar ao réu, e este prometeu vender-lho, um terreno em Ká Hó, Coloane. Este ficou de lhe fornecer posteriormente os documentos comprovativos (escritura de papel de seda) e de o ajudar a tratar das formalidades junto do Governo para aproveitar o referido lote de terreno.
Pago o valor da totalidade do preço (HK$ 5.379.464,70), nunca foram ao autor entregues os documentos, o réu nunca o ajudou junto dos departamentos governamentais com vista à urbanização do lote, nunca lhe foi entregue o terreno, nunca o contrato definitivo foi, enfim, celebrado, sendo certo que após Dezembro de 1999, com o art. 7º da Lei Básica, já o mesmo se tornou impossível.
O autor interpelou o réu, mas este nada respondeu.
Na contestação, o réu aceitou expressamente que tivesse celebrado com o autor o contrato-promessa, mas sobre a não realização do contrato definitivo, nega que tenha sido sua a culpa.
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2 – A sentença, após o julgamento da matéria de facto, estudou o caso e concluiu:
- O contrato em causa era de promessa de compra e venda;
- O réu entrou em mora, mas não em incumprimento definitivo;
- Houve impossibilidade de incumprimento imputável exclusivamente ao réu, uma vez que o terreno é propriedade da RAEM;´
- Assiste ao autor o direito de resolver o contrato.
E decidiu:
- Condenar o réu no pagamento da quantia peticionada, acrescida de juros;
- Condenar, porém, o autor em litigância de má fé, por este ter dito que nunca entrou na posse do prédio, quando a prova foi feita em sentido contrário;
- Julgar improcedente o pedido do réu no pagamento de indemnização por má fé do autor.
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3 – Vem agora o réu em recurso sustentar basicamente que o tribunal fez uma errada interpretação e qualificação do contrato em discussão. Para si, o contrato não era de promessa de compra e venda, mas sim uma «transmissão de posse do réu para o autor mediante o pagamento de uma determinada quantia, negócio legalmente atípico mas socialmente típico em Macau, considerando a problemática das “escrituras em papel de seda”», até porque ambos bem sabiam que não era possível a escritura de compra e venda de um terreno titulado por “Sa Chi Kai”.
E para sustentar esta sua tese, aduz uma série de argumentos que retira do próprio contrato, como seja, por exemplo, o caso do dever de colaboração do réu no reconhecimento junto do Governo como proprietário [em rigor, concessionário] do terreno (cláusula 4ª), com o objectivo de aproveitamento no âmbito de um projecto de construção predial em sociedade com terceiros.
Além disso, continua, não há no texto do documento nenhuma referência à realização futura de uma compra e venda.
E se não era contrato-promessa, não podia haver resolução. Violou, assim, a sentença o art. 230º do CC.
É este o único fundamento do recurso (art. 589º, do CPC).
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4 – Apreciando, somos a adiantar, desde já, que o recorrente não tem razão.
O que o recorrente vem fazer na presente impugnação é, nada mais, nada menos, do que interpretar o contrato que esteve na origem do pleito. Para si, ele não é de promessa de compra e venda, mas apenas de transmissão de posse.
Ora, a interpretação de uma declaração negocial só é matéria de direito quando tenha que ser efectuada nos termos do nº1, do art. 228º do C.C., mas será matéria de facto, quando tenha que ser efectuada segundo o critério do nº2, do mesmo artigo, isto é, quando tenha que ser feita de acordo com a vontade real do declarante.
No primeiro caso, o critério de interpretação é o normativo, também designado objectivista; no segundo, o critério a seguir é o subjectivista (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág.446 e sgs.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 223-224).
Significa isto que, a interpretação à luz do primeiro critério deve ser considerada matéria de direito, ao passo que o apuramento da vontade negocial à luz do segundo deve ser tida como matéria de facto (neste sentido, Vaz Serra, RLJ, 111, pág. 249; Evaristo Mendes/Fernando Sá, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág.541; na jurisprudência em termos de direito comparado, v.g., Ac. do STJ, de 28/10/1997, in BMJ nº 470, pág. 597, entre outros).
Portanto, saber se as partes quiseram um contrato ou outro é matéria de facto.
Ora, se isto é assim, quando o autor, na causa de pedir formulada na petição inicial da acção, afirmou que o negócio celebrado era um contrato de promessa de compra e venda, logo o réu se deveria ter insurgido contra esse facto, negando-o e dando ao contrato uma outra configuração, outra interpretação.
Todavia, o réu, na sua contestação aceitou expressamente a afirmação do autor no art. 1º, ao considerar verdadeiro o facto contido no art. 14º a 17º da p.i. (fls. 65).
Foi na sequência das posições das partes quanto a esse e outros factos que foi lavrado o despacho saneador, acompanhado do despacho que julgou assente determinada factualidade e incluiu outra na respectiva base instrutória.
E nos factos assentes lá podemos nós ver o que consta da alínea A), B), C), D) e E), onde vem muito claramente assinalada a existência desse facto: a existência de um contrato de promessa de compra e venda entre as partes aqui litigantes. Isso mesmo resulta ainda da matéria factual respeitante à resposta aos arts. 10º e 11º da base instrutória.
E a verdade é esta: o réu não pôs em causa, não censurou, não impugnou esse despacho, apesar de o poder ter feito ao abrigo através da reclamação a que se refere o art. 430º, nº2, do CPC. Podia, efectivamente, discordar nessa ocasião da selecção da matéria assente, negando que o tribunal pudesse dar por bem adquirido que o contrato celebrado era um contrato de promessa. Se o tivesse feito, do despacho que eventualmente lhe negasse razão podia o mesmo interessado apresentar impugnação no recurso que viesse a interpor da decisão final (art. 430º, nº2, do CPC; Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pág. 450-451). Não reclamou, todavia.
E não o tendo feito, podemos dizer que a matéria de facto ficou definitivamente adquirida.
É claro que o tribunal de recurso pode contrariar a matéria de facto se vierem ao processo novos elementos ou se entender que nele existe algum documento ou elemento de prova que não tenha tido levado em conta e que contradiga ou divirja do julgamento efectuado na 1ª instância.
Não é, porém, o caso. Na verdade, a 1ª instância teve o documento em devido apreço (doc. de fls. 20-21), o qual não foi impugnado e, além disso, estava em sintonia com a posição expressa do réu na sua contestação. Dito de outra maneira, nunca sobre ele e sobre o seu conteúdo o processo mostrou alguma posição das partes que conduzisse o litígio para o plano da sua interpretação. Naquela fase do processo apenas estava por apurar quem foi o culpado da não realização do negócio definitivo.
Por conseguinte, sabe-se já qual foi o negócio em causa, por a 1ª instância ter definitivamente apurado esse facto de harmonia com a posição das partes (estiveram de acordo quanto a isso), logo, em consonância com o disposto no nº2 do art. 228º, nº2, do CC).
Por outro lado, não há nos autos nada que contradiga a conclusão da 1ª instância. Efectivamente, nem sequer se pode dizer, com apoio no art. 230º, do CC, que o negócio formal em causa não tem no seu texto nenhuma correspondência com a referida conclusão da 1ª instância.
Sendo assim, entende este TSI que o preceito indicado não se pode dar por violado, e que não tem motivos para ir à procura da interpretação do negócio à luz da teoria objectivista contida no nº1 do mesmo artigo, se face à concepção subjectivista do nº2 do preceito apurada já está a natureza do negócio celebrado.
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5 – Desta maneira, porque não há outra matéria que no recurso deva ser conhecida, e sendo certo que o contrato celebrado era aquele que as partes aceitaram nos articulados, não se pode censurar a resolução que o tribunal “a quo” alcançou acerca da “resolução” do negócio.
Neste sentido, também é impertinente o que o recorrente aduz acerca do mecanismo da usucapião (conclusões 34 e sgs. das alegações). Na verdade, o tribunal nem sequer disse que recaia sobre o réu a obrigação de interpor uma acção judicial para demonstrar a usucapião. O tribunal “a quo” sobre o assunto – independentemente de outras considerações e fundamentos vertidos na sentença que não foram postos em crise no recurso e que nos recordam o que está plasmado no art. 589º, nº4, do CPC - limitou-se a afirmar uma impossibilidade jurídica de o recorrente vender o terreno ao autor após 20/12/99 (tendo sido ele quem se colocou na situação de incumprimento, ao não ter celebrado a escritura antes de Dezembro de 1999) e de, por essa razão, lograr qualquer êxito uma qualquer eventual acção tendente à aquisição do direito real sobre o mesmo pela via da usucapião.
Assim, soçobra o presente recurso jurisdicional.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
TSI, 11 de Junho de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
321/2015 20