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Processo nº 564/2015(I)
(Autos de recurso penal)
(Incidente)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. No âmbito dos presentes autos proferiu-se a seguinte “decisão sumária”:

“1. Em audiência colectiva no T.J.B. respondeu A, arguido com os sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática de 2 crimes de “burla qualificada”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M., nas penas parcelares de 3 anos e 6 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão; (cfr., fls. 349 a 361-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu.
Em sede das suas conclusões que produziu a final da sua motivação de recurso, diz, em síntese, que incorreu o Colectivo a quo em “erro notório na apreciação da prova”, “erro na qualificação jurídica da matéria de facto provada”, pedindo também uma redução da(s) pena(s); (cfr., fls. 370 a 378-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Em resposta, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 402 a 405).

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Neste T.S.I. e em douto Parecer, é o Ilustre Procurador Adjunto de opinião que o recurso deve ser rejeitado; (cfr., fls. 415 a 417):

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Em sede de exame preliminar constatou-se da manifesta improcedência do presente recurso, e, nesta conformidade, atento o estatuído no art. 407°, n.° 6, al. b) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M., (redacção dada pela Lei n.° 9/2013, aplicável aos presentes autos nos termos do seu art. 6°, n.° 1 e 2, al. 2), passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 354-v a 357-v, que se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou nos termos atrás já referidos, na pena única de 5 anos de prisão.

Resulta das suas conclusões de recurso que, em sua opinião, incorreu o Colectivo a quo em “erro notório na apreciação da prova”, “erro na qualificação jurídica da matéria de facto provada”, pedindo também uma redução da(s) pena(s).

–– Comecemos então pelo assacado “erro”.

Como temos vindo a entender: “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015 do ora relator).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015).

Dito isto, tendo em conta o decidido no Acórdão recorrido, em especial, na “fundamentação”, em que o Colectivo a quo expõe (“detalhadamente ”) o porque da sua convicção e decisão, descrevendo as declarações das ofendidas dos autos assim como identificando os documentos dos autos, evidente se mostra que limita-se o recorrente a controverter a decisão proferida sobre a matéria de facto, afrontando o princípio de livre apreciação da prova e tentando impor a (sua) versão que não foi acolhida pelo T.J.B., e que, por não se vislumbrar nenhuma violação às regras sobre o valor das provas tarifadas, regras de experiencia ou legis artis, impõe a decisão de manifesta improcedência do recurso na parte em questão.

–– Passemos agora para a “qualificação jurídica”.

Pois bem, preceitua o art. 211° (onde se tipifica o crime de “burla”) que:

“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial resultante da burla for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
4. A pena é a de prisão de 2 a 10 anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida; ou
c) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.

E, como já teve este T.S.I. oportunidade de consignar:

“A construção do crime de “burla” supõe a concorrência de vários elementos típicos: (1) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; (2) a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial – (elementos objectivos) – e, por fim, (3) a intenção do agente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo (elemento subjectivo).
Impõe-se, assim, num primeiro momento, a verificação de uma conduta (intencional) astuciosa que induza directamente em erro ou engano o lesado, e, num segundo momento, a verificação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro.
O crime de burla é um crime de dano, que se consuma quando existe um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo, mas também de resultado, pois apenas se consuma com a saída do valor da esfera patrimonial do sujeito passivo, consubstanciada num prejuízo efectivo”; (cfr., Ac. de 27.09.2012, Proc. n.° 681/2012).

No caso dos autos, óbvio é que verificados estão todos os pressupostos dos 2 crimes de “burla” pelo arguido cometidos e pelos quais foi condenado.

Com efeito, resulta – fundamentalmente – da factualidade provada que o arguido, após conhecer as ofendidas, e invocando (falsamente) ser pessoa de “posses e conhecimentos”, com as mesmas foi desenvolvendo uma relação de amizade e namoro, que – inclusivé – chegou a promessa de casamento, e, no âmbito desta, alegando “ajuda em tratar de documentos para residência em Macau”, “necessidades de dinheiro”, “urgências”, “doenças” e outras “tragédias” – todas bem retratadas na factualidade provada – induziu as ofendidas em “erro”, fazendo com que lhe fosse entregue quantias de dinheiro, agindo com intenção de se apropriar do mesmo, e bem sabendo que inverídicos eram os motivos alegados como razão para que o dinheiro lhe fosse entregue, causando às ofendidas um prejuízo de mais de MOP$500.000,00 e quase MOP$3.000.000,00, respectivamente.

Ora, em face do que (sinteticamente) se deixou explicitado, temos pois para nós que evidente é que verificados estão todos os elementos típicos dos crimes pelos quais foi condenado, nada mais se mostrando de dizer sobre o ponto em questão.

–– Aqui chegados, passemos para a “pena”.

Vejamos.

Aos crimes de “burla” pelo ora recorrente cometidos cabe a pena de 2 a 10 anos de prisão.

Nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Por sua vez, tem este T.S.I. entendido que:

“Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.02.2000, Proc. n° 2/2000, e, mais recentemente, de 13.01.2015, Proc. n° 13/2015).

E, quanto à atenuação especial da pena, tem igualmente este T.S.I. considerado que “a atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.04.2011, Proc. n°130/2011 e de 29.01.2015, Proc. n° 22/2015).

No caso, de uma pena de 2 a 10 anos de prisão, fixou o T.J.B. a pena de 3 anos e 6 meses de prisão para cada 1 dos (2) crimes de “burla” pelo recorrente cometidos, evidente sendo que censura não merecem tais penas parcelares, já que motivos não existem para qualquer “atenuação especial” da pena, (uma vez que não se vislumbra nada que torne a situação dos autos “extraordinária” ou “excepcional”), não sendo também de considerar aquelas excessivas; (pois que, ainda assim, se encontram-se próximas do seu limite mínimo.

De facto, o arguido agiu com dolo directo e muito intenso, elevado sendo o grau de ilicitude, causando prejuízos consideravelmente elevados às ofendidas dos autos – num total de cerca de MOP$3.500.000,00 – nenhuma censura merecendo o decidido, (que em nossa opinião, até se mostra benevolente, especialmente, no crime em relação à 2ª ofendida).

Vejamos agora a “pena única”.

Nos termos do art. 71° do C.P.M.:

“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”.

E, no caso, em causa estando uma pena com uma moldura de 3 anos e 6 meses a 7 anos de prisão, evidente se mostra que a fixada, de 5 anos, (não atingindo o meio da pena) não é passível de ser considerada inflacionada.

Como recentemente decidiu o Tribunal da Relação de Évora:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II – Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência).

Mostrando-se de subscrever – como temos feito – o assim entendido, e tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Em face do exposto, decide-se rejeitar o recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs, e pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 5 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 3 do C.P.P.M.).

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
(…)”; (cfr., fls. 425 a 432 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, veio o identificado arguido/recorrente apresentar reclamação para a conferência, insistindo na verificação dos vícios que tinha suscitado em sede do seu recurso sobre o qual incidiu a aludida decisão sumária; (cfr., fls. 438 a 447).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

Fundamentação

2. Colhe-se do teor da reclamação pelo recorrente apresentada que é o mesmo de opinião que a “decisão sumária” reclamada incorreu em erro na apreciação dos vícios que no seu recurso assacava ao Acórdão pelo T.J.B. prolatado e que foi por aquela conhecido.

Porém, sem razão.

A decisão sumária em questão, (e que se deixou transcrita na sua íntegra), apresenta-se clara na sua fundamentação e sentido, nela se tendo identificado adequadamente as questões pelo recorrente trazidas à apreciação em sede do seu recurso, tendo-se, na mesma, efectuado uma correcta ponderação da factualidade (dada como provada) assim como uma boa aplicação do direito, nenhuma censura merecendo.

Daí, clara e adequada nos apresentando a decisão sumária reclamada, e afigurando-se-nos que em sede da presente reclamação nada de novo alega o recorrente/reclamante, impõe-se consignar (também) que nada se mostra de acrescentar para, confirmando-se aquela, se decidir pelo indeferimento da pretensão deduzida.

Decisão

3. Nos termos que se deixarem expostos, em conferência acordam indeferir a reclamação deduzida.

Pagará o reclamante 3 UCs de taxa de justiça.

Macau, aos 24 de Setembro de 2015
José Maria Dias Azedo
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Proc. 564/2015-I Pág. 8

Proc. 564/2015-I Pág. 7