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Processo nº 746/2015 Data: 08.10.2015
(Autos de recurso penal)

Assuntos : “Homicídio por negligência”.
“Abandono de sinistrados”.
“Condução perigosa de veículo rodoviário”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.
Atenuação especial da pena.
Pedido civil.
Indemnização.
Direito à vida.
Danos não patrimoniais.
Responsabilidade pelo risco.
Proprietário da viatura.
Direcção efectiva.



SUMÁRIO

1. Se o Tribunal emitiu pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”, (elencando os factos provados e identificando os não provados), sentido não faz falar-se de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

2. Inexiste (também) “erro notório na apreciação da prova” se na sua decisão da matéria de facto não violou o Tribunal qualquer “regra sobre o valor da prova tarifada”, “regra de experiencia” ou “legis artis”.

3. Em conformidade com o prescrito no art. 88° da Lei n.° 3/2007, pode o crime de “abandono de sinistrados” ser cometido com “dolo” (n.° 1 e 2), ou “negligência”; (n.° 3).

No n.° 2 do aludido art. 88° - e ao estatuir-se aí que “Se o abandono ocorrer depois do agente se haver certificado dos seus prováveis resultados, aceitando-os ou considerando-os indiferentes, é aplicável a pena do correspondente crime doloso de comissão por omissão” - pretende-se uma “certeza”, (ainda que não absoluta e infalível), o que poderia, (v.g.), acontecer se o arguido tivesse saído ou imobilizado a viatura e, após observação do estado do ofendido, apurado das prováveis lesões a este causadas.

4. A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

5. No domínio da “responsabilidade civil extracontratual”, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito - isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido - censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico - ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa - de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto; (cfr., art° 477°, n°1, 480°, n°2, 556°, 557°, 558°, n°1, do C.C.M.).

E embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre (cfr., art°477°, n°2, 496° a 501° do C.C.M.).

6. É de admitir a existência de uma verdadeira presunção (legal) de “direcção efectiva e interessada” do veículo por parte do seu proprietário, incumbindo-lhe, por isso, fazer prova do facto contrário, (impeditivo do direito contra ele invocado).

7. O proprietário mantém a direcção efectiva e interessada do veículo se o emprestar a terceiro que, por sua vez, o empresta ao arguido culpado pelo acidente, respondendo solidáriamente pelos danos causados.

O relator,

______________________



Processo nº 746/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva respondeu A, com os restantes sinais dos autos, vindo a ser condenado como autor material da prática em concurso real de:
- 1 crime de “homicídio por negligência (grosseira)”, p. e p. pelos art°s 134°, n.° 2 do C.P.M. e 93°, n.° 2 e 3, al. 1) da Lei n.° 3/2007, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão:
- 1 crime de “abandono de sinistrados”, p. e p. pelo art. 88°, n.° 2 da Lei n.° 3/2007 e art. 128° do C.P.M., na pena 12 anos de prisão; e,
- 1 crime de “condução perigosa de veículo rodoviário”, p. e p. pelo art. 279°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo, foi o arguido condenado na pena única de 13 anos e 6 meses de prisão.

Em relação ao “pedido civil” pelos (7) demandantes civis deduzido, decidiu o Tribunal julgá-lo parcialmente procedente, condenando a “demandada ‘B INSURANCE COMPANY LIMITED’ (B保險有限公司) no pagamento de MOP$1.500.000,00”, (correspondente ao limite da sua responsabilidade), e condenando também o identificado arguido e os (3°) e (4°) demandados civis, C e D, no pagamento solidário de MOP$1.261.426,00; (cfr., fls. 545 a 553 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados recorrerem o arguido e os referidos (3° e 4°) demandados civis, C e D.

O arguido, impugnando a decisão da sua condenação como autor de 1 crime de “abandono de sinistrados” e “condução perigosa de veículo rodoviário”, considerando também excessiva(s) a(s) pena(s) aplicada(s) assim como o montante da indemnização arbitrado a título de “direito à vida” da vítima, no montante de MOP$1.200.000,00; (cfr., fls. 565 a 587).

Os (3° e 4°) demandados civis C e D, pedindo a sua absolvição, e, subsidiariamente, a redução dos montantes indemnizatório fixados a título de “danos não patrimoniais”; (cfr., fls. 594 a 607).

*

Adequadamente processados os autos, cumpre apreciar.
Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 546-v a 549, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Ponderando nas questões colocadas e sobre as quais cabe emitir pronúncia, mostra-se de começar pelo recurso da “decisão crime”.

Vejamos.

3.1 Da “decisão crime”.

Como se viu, foi o arguido condenado pela prática como autor material e em concurso real de:
- 1 crime de “homicídio por negligência (grosseira)”, p. e p. pelos art°s 134°, n.° 2 do C.P.M. e 93°, n.° 2 e 3, al. 1) da Lei n.° 3/2007, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão:
- 1 crime de “abandono de sinistrados”, p. e p. pelo art. 88°, n.° 2 da Lei n.° 3/2007 e art. 138° do C.P.M., na pena 12 anos de prisão; e,
- 1 crime de “condução perigosa de veículo rodoviário”, p. e p. pelo art. 279°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo, foi condenado na pena única de 13 anos e 6 meses de prisão.

E, com também se deixou relatado, impugna a decisão da sua condenação pela prática de 1 crime de “abandono de sinistrados” e “condução perigosa de veículo rodoviário”, considerando também excessiva(s) a(s) pena(s) aplicada(s).

Apreciemos.

Desde já, cabe dizer que em sede do seu recurso, diz o arguido que o Acórdão recorrido padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e de “erro notório na apreciação da prova” que, em nossa opinião, não se verifica, nenhuma censura merecendo o veredicto do T.J.B. na parte em questão.

Com efeito, o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 23.01.2014, Proc. 756/2013, e mais recentemente, de 12.02.2015, Proc n.° 103/2015), e, por sua vez, “O erro notório na apreciação da prova também apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015 do ora relator).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 29.01.2015, Proc. n.° 13/2015).

No caso dos autos, basta uma mera leitura ao Acórdão recorrido para se constatar sue evidente é que o Colectivo a quo emitiu pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”, (elencando os factos provados e identificando os que não se provaram), não se vislumbrando que tenha incorrido em desrespeito de qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis.

Mais não se mostrando de dizer para a conclusão a que se chegou, (por nos parecer ocioso), e, assim, inexistindo os assacados vícios da “decisão da matéria de facto”, continuemos, passando agora para a “decisão de direito”.

–– Pois bem, quanto ao crime de “abandono de sinistrados”, prevê o art. 88° da Lei n.° 3/2007 que:

“1. Quem abandonar vítima de acidente a que tenha dado causa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. Se o abandono ocorrer depois do agente se haver certificado dos seus prováveis resultados, aceitando-os ou considerando-os indiferentes, é aplicável a pena do correspondente crime doloso de comissão por omissão.
3. Se a conduta prevista no n.º 1 resultar de negligência do agente, este é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

No caso e tanto quanto se alcança da motivação e conclusões do recurso em apreciação, entende o arguido que a situação dos autos não se subsume ao n.° 2 do transcrito comando legal, verificados estando apenas os pressupostos do n.° 1.

E, atenta a factualidade provada, e da reflexão que nos foi possível efectuar, cremos que tem o arguido razão.

Como sobre a mesma questão já tivemos oportunidade de consignar:
“Em conformidade com o prescrito no transcrito art. 88° da Lei n.° 3/2007, pode o crime de “abandono de sinistrados” ser cometido com “dolo” (n.° 1 e 2), ou negligência; (n.° 3).
No n.° 2 do aludido art. 88° - e ao estatuir-se aí que “Se o abandono ocorrer depois do agente se haver certificado dos seus prováveis resultados, aceitando-os ou considerando-os indiferentes, é aplicável a pena do correspondente crime doloso de comissão por omissão” - pretende-se uma “certeza”, (ainda que não absoluta e infalível), o que poderia, (v.g.), acontecer se o arguido tivesse saído ou imobilizado a viatura e, após observação do estado do ofendido, apurado das prováveis lesões a este causadas”; (cfr., Ac. de 19.01.2012, Proc. n.° 841/2011).

Afigura-se-nos de manter o assim entendido, e, daí, a solução que se deixou adiantada.

De facto, e em nossa opinião, dúvidas não há que o arguido se apercebeu da colisão do veículo por si conduzido com a vítima, (até porque da mesma resultaram danos visíveis para o para – brisas).

Porém, afigura-se-nos que da factualidade provada não resulta, (nem permite, com a necessária segurança, concluir), que o mesmo arguido abandonou a dita vítima do acidente que causou após se haver “certificado dos seus prováveis resultados, aceitando-os ou considerando-os indiferentes”.

Dest’arte, por verificado não estar tal “circunstancialismo”, não integra a conduta do arguido o previsto no n.° 2 do art. 88° da Lei n.° 3/2007, devendo-se considerar que a mesma se subsume ao previsto no n.° 1, (já que evidente é que agiu com dolo e não com negligência, caso em que em causa estava o n.° 3).

–– Vejamos agora o crime de “condução perigosa de veículo rodoviário”.

Nos termos do art. 279° do C.P.M.:

“1. Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada,
a) não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, por deficiência física ou psíquica ou por fadiga excessiva, ou
b) violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária, e criar deste modo perigo para a vida, perigo grave para a integridade física de outrem ou perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3. Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Em relação a este crime, considera o arguido que devia ser absolvido.

Ora, aqui, não se mostra de lhe reconhecer razão.

Com efeito, provado está que o arguido consumiu bebidas alcoólicas, e, mesmo assim, “decidiu” conduzir, imprimindo (ainda) “altas velocidades” ao seu veículo automóvel que, por não conseguir travar a tempo, em espaço livre e visível, veio a embater na vítima dos autos que circulava à sua frente numa bicicleta, causando-lhe as lesões referidas nos autos que, não só a colocaram em “perigo de vida”, tendo mesmo provocado a sua morte, sendo-lhe detectada uma taxa de álcool de 1.63 gramas por litro, (portanto, confirmando-se que conduzia em “estado de embriaguez”; cfr., art. 90°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007).

Parente isto, clara nos parece que verificados estão todos os elementos típicos do n.° 1, al. a) e b) do art. 279° do C.P.M., censura não merecendo (nesta parte) o decidido.

–– Tratada que ficou a questão da “qualificação jurídico – penal” da conduta do arguido, vejamos das penas.

Pois bem, nos termos do art. 134° do C.P.M.:

“1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos.
2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos”.

Por sua vez, preceitua o art. 93° do Lai n.° 3/2007 que:

“1. Os crimes por negligência cometidos no exercício da condução são punidos com as penas cominadas na lei geral agravadas, no seu limite mínimo, com um terço da sua duração máxima, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal.
2. Se a negligência for grosseira, a agravação no limite mínimo da pena é de metade da sua duração máxima, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal.
3. A negligência grosseira na condução pressupõe a verificação de algum dos seguintes requisitos:
1) Condução em estado de embriaguez ou sob influência de álcool;
2) Condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas cujo consumo seja considerado crime nos termos da lei;
3) Excesso de velocidade igual ou superior a 30 km/h sobre os limites impostos, no caso de ciclomotor, de motociclo ou de automóvel ligeiro, ou a 20 km/h, tratando-se de automóvel pesado;
4) Condução em sentido oposto ao legalmente estabelecido;
5) Desrespeito da obrigação de parar imposta pelo agente regulador de trânsito, pela luz vermelha de regulação do trânsito ou pelo sinal de paragem obrigatória nas intersecções;
6) Condução sem iluminação do veículo, quando obrigatória;
7) Utilização dos máximos de modo a provocar encandeamento”.

No caso, estando em causa um crime de “homicídio por negligência” cometido no “exercício da condução”, importa ter em conta a “agravação da pena” a que faz referência o n.° 2 e 3, n.° 1 deste art. 93° da Lei n.° 3/2007.

Como sabido é, em termos de “fins das penas” estatui o art. 40° do C.P.M. que:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

E, com temos vindo a entender, “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.02.2000, Proc. n° 2/2000, e, mais recentemente, de 13.01.2015, Proc. n° 13/2015).

Parente isto, quid iuris?

Pois bem, pede o arguido uma “atenuação especial da pena”, alegando que está “arrependido” e que se “sente muito mal” com a sua conduta.

Ora, em relação à atenuação especial da pena prevista e regulada nos art°s 66° e 67° do C.P.M. temos entendido que a mesma “só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.04.2011, Proc. n°130/2011 e de 29.01.2015, Proc. n° 22/2015).

E, sem prejuízo do muito respeito por entendimento em sentido diverso, (e até mesmo atentas as graves consequências da conduta do arguido), não nos parece que a “situação dos autos” seja uma situação “excepcional” ou “extraordinária” ao ponto de justificar o accionamento do art°s 66° e 67° do C.P.M..

E, nesta conformidade, (ponderando também na aludida “agravação” prevista no art. 93°, n.° 2 da Lei n.° 3/2007 e aos critérios do art. 40° e 65° do C.P.M.), não se vê como considerar excessiva a pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada pelo crime de “homicídio por negligência (grosseira)”, (que, mesmo assim, não deixa de estar próxima do mínimo legal).

Por sua vez, ponderando igualmente no que se deixou exposto – em especial, nas mencionadas “graves consequências” – e na pena aplicável para o crime de “abandono de sinistrados” pelo arguido cometido – o do n.° 1 do art. 88°, punido com “pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” – afigura-se-nos adequada a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, já que fortes são as necessidades de prevenção criminal, (totalmente afastada estando a aplicação de uma pena de multa por não verificação dos pressupostos do art. 64° do C.P.M.).

Por fim, para o crime de “condução perigosa de veículo rodoviário”, há que dizer que não se considera excessiva a pena de 1 ano de prisão, valendo aqui os mesmos argumentos que atrás se deixaram expostos.

Em, sede de cúmulo jurídico, e atento (especialmente) o estatuído no art. 71° do C.P.M., afigura-se-nos adequada uma pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.

3.2 Apreciada que assim fica a “decisão crime”, vejamos da “decisão civil”.

Aqui, e ainda em sede do seu recurso, diz o arguido que excessivo é o montante de MOP$1.200.000,00 arbitrado a título de “direito à vida” da vítima, alegando nomeadamente ter a mesma 69 anos de idade.

Pois bem, admite-se que uma “pessoa de 69 anos de idade” não seja (propriamente) um “jovem”.

Porém, há que ter em conta que não obstante ser uma “pessoa de idade”, adequado não é considerar-se como “menos útil” ou com “direitos diminuídos”, notando-se que, no caso, à vítima dos autos não eram conhecidas quaisquer doenças ou maleitas impeditivas ou limitativas de prosseguir uma “vida normal”, que estava casada e tinha 6 filhos, e que não se pode esquecer que uma “vida (ainda que) simples”, não implica nem corresponde necessáriamente a uma “vida menos feliz”.

Dest’arte, face ao exposto, atento os valores habitualmente fixados pela jurisprudência local como “indemnização do direito à vida”, (que ronda MOP$1.000.000,00), e não se podendo esquecer a “evolução natural das coisas”, com o permanente aumento do custo e carestia de vida, e tendo presente que em matérias como a em questão, em que a decisão assenta em juízos de equidade, onde, interfere sempre, algum subjectivismo, afigura-se-nos de confirmar o quantum fixado.

–– Com isso, e apreciado que assim fica o recurso do arguido, passemos para o recurso dos (3° e 4°) demandados civis C e D.

Ora, como atrás se deixou relatado, pedem estes recorrentes a sua absolvição, e, subsidiariamente, a redução do montante indemnizatório fixado a título de “danos não patrimoniais”.

Como parece óbvio, comecemos pela peticionada absolvição.

Nota-se que nos temos do decidido no Acórdão do T.J.B., foram estes recorrentes condenados com base na “responsabilidade pelo risco”, pelo facto de serem os “proprietários do veículo automóvel” conduzido pelo arguido e que embateu na vítima que, infelizmente, em resultado das lesões sofridas, veio a falecer.

E, nesta conformidade, (nenhuma culpa se tendo apurado em relação à vítima ou a terceiro), cremos que bem andou o T.J.B. na decisão que proferiu.

Vejamos.

No domínio da “responsabilidade civil extracontratual”, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito - isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido - censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico - ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa - de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto; (cfr., art° 477°, n°1, 480°, n°2, 556°, 557°, 558°, n°1, do C.C.M.).

E embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre (cfr., art°477°, n°2, 496° a 501° do C.C.M.).

Com efeito, nos termos do art. 496° do C.C.M., (integrado na subsecção da “responsabilidade pelo risco”):

“1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artigo 482.º
3. Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, excepto quando, estando aquele no exercício das suas funções, o veículo não se encontre em circulação”.

E, como sabido é, a “responsabilidade (objectiva ou) pelo risco” cabe àquele que cria o risco, e, atento o n.° 1 do transcrito comando legal, este é criado por quem tem a “direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu próprio interesse”.

Em Acórdão deste T.S.I. de 22.05.2008, Proc. n.° 507/2006, e abordando-se tal matéria, consignou-se que “a direcção efectiva do veículo constitui uma fórmula de natureza normativa, envolvendo um poder real ou material de utilização e destino desse veículo, com a inerente faculdade, quer de manutenção ou de conservação, quer de superintendência ou vigilância. Não se esgota, como é óbvio, no mero fenómeno da condução. No seu núcleo conceitual, insere-se a noção de guarda, a que Rodière deu esta extensão: guarda é uma obrigação derivada da utilização interessada de uma coisa por aquele que tem o domínio dela”.

Como nota M. Trigo: “Tem a “direcção efectiva” quem tem o poder de decidir sobre a sua utilização e conservação e que é normalmente o seu detentor habitual, quem tem o poder de facto de uso, direcção e controlo. Mas não tem de corresponder a um poder jurídico sobre o veículo ou à disponibilidade jurídico do veículo para utilização, embora assim possa ser e suceda normalmente. Por isso, e primeiramente, tem a direcção efectiva de um veículo o seu proprietário, os comproprietários, o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade, o tomador de um veículo mediante um regime de locação financeira e de outros direitos de uso estipulados em contratos de alienação de veículo.
Têm também a direcção efectiva o locatário e o comodatário em geral. No caso de haver cedência temporária do gozo de um veículo, por aluguer ou comodato, o que se questiona é saber se o detentor habitual perde a sua qualidade jurídica de detentor do veículo, entendendo-se generalizadamente que não e que o detentor habitual deve responder simultaneamente ao lado do detentor temporário, não só porque se não desliga do veículo, fonte do risco, mas também porque continua interessado na sua utilização, e assim se estimula a sua utilização responsável, designadamente evitando o empréstimo leviano ou precipitado de veículo. E, neste caso, responderão solidariamente pelos danos causados”; (in “Lições de Direito das Obrigações”, pág. 331 e segs).

Por sua vez, provado estando que os ora recorrentes eram os “proprietários do veículo interveniente no acidente”, a eles cabia a alegação e prova de que não tinham a sua “direcção efectiva e interessada”.
De facto, como se decidiu no Ac. do Vdo T.U.I. de 07.11.2012, Proc. n.° 64/2012: “Presume-se que o proprietário do veículo tem a sua direcção efectiva e o utiliza no seu próprio interesse”; (como igualmente considera A. Varela, “em regra, o responsável é o dono do veículo visto ser ele a pessoa que aproveita as especiais vantagens do meio de transporte e quem correlativamente deve arcar com os riscos próprios da sua utilização”, in “Das Obrigações”, pág. 668; e, ainda, no sentido do referido “ónus da prova” e “presunção”, cfr., v.g., os Acs. do S.T.J. de 29.01.2014 e 17.12.2014, Proc. n.° 249/04 e 35/13, in www.dgsi.pt).

Porém, in casu, os mesmos recorrentes nem sequer contestaram o pedido de indemnização civil contra eles deduzido, onde (expressamente) alegado estava o facto de serem os “proprietários do veículo” em questão, o que, como se viu, veio-se a provar, sendo aliás facto que nem os próprios recorrentes discutem; (cfr., também o citado Ac. do S.T.J. de 21.01.2014, onde se consignou que: “A simples alegação da propriedade do veículo sem a invocação expressa de quem tem a sua direcção efectiva e interessada é suficiente para poder conduzir à procedência do pedido de indemnização emergente de acidente formulado contra a ré (…), sua  proprietária, (…)”).

E, perante isso, outra solução não se vislumbra.

Admite-se que (à primeira vista) se possa (eventualmente) considerar “algo estranha” a decisão em causa, dado que, no caso dos autos, o que sucedeu foi que os recorrentes, (proprietários do veículo), emprestaram o seu veículo a uma terceiro – ao 2° demandado civil que foi absolvido – que por sua vez o emprestou ao arguido, podendo-se assim entender como “interrompida” ou “quebrada” a sua ligação ou relação com o acidente em causa.

Contudo, não se mostra de adoptar este entendimento.

Os ora recorrentes, como proprietários do veículo, e ao permitir que o veículo em causa fosse utilizado pela pessoa a quem o emprestaram (o 2° demandado civil), respondem pelos “actos e omissões” decorrentes dessa utilização, ainda que, como no caso, no momento do acidente, o veículo estivesse a ser utilizado por uma outra pessoa, (o arguido).

E só assim não seria se provado estivesse o “uso abusivo” por parte desta outra pessoa, o que, no caso, não sucedeu; (cfr., v.g., o T.R.L. de 10.03.1992, P. 0047391, e, em situação próxima da provada nos presentes autos, em que o proprietário empresta o veículo ao seu filho que permite a sua utilização a terceiro, o de 18.05.2006, P. 3022/2006).

Nesta conformidade, atento o estatuído no n.° 1 do art. 496° do C.C.M., (e verificada não estando a situação do art. 498° do mesmo código), há que confirmar a decisão que considerou os ora recorrentes (e o arguido) solidariamente responsáveis pelo acidente.

Aqui chegados, resta ver dos montantes indemnizatórios arbitrados a título de “danos não patrimoniais”.

Porém, atento ao que atrás já se deixou relatado, (quanto à “indemnização pelo direito à vida” da vítima) pouco há a dizer.

Com efeito, em causa está agora o montante fixado como indemnização dos “danos não patrimoniais” da própria vítima e dos 7 demandantes, (cônjuge e 6 filhos).

Provado estando que a vítima não teve morte instantânea ou imediata, evidente nos parece que excessivo não é o quantum de MOP$100.000,00 pelos seus (próprios) danos não patrimoniais (que sofreu até falecer).

Por sua vez, tendo-se fixado em MOP$300.000,00 os danos não patrimoniais do demandante cônjuge, e em MOP$200.000,00 os dos restantes (6) demandantes filhos, igualmente patente se nos afigura que, pela sua razoabilidade, reparo não merece o decidido.

Tudo visto, (e afigurando-se-nos que ultrapassados não estão os “limites máximos” da indemnização previstos no art. 501° do C.C.M.), resta decidir em conformidade.

Decisão

4. Em face do exposto, acordam julgar parcialmente procedente o recurso do arguido A, (alterando-se a qualificação jurídico – penal da sua conduta, e ficando o mesmo condenado numa pena única de 4 anos e 6 meses de prisão), julgando-se improcedente o recurso dos (3° e 4°) demandados civis C e D.

Custas pelos recorrentes em conformidade com os seus decaimentos, fixando-se a taxa de justiça individual em 6 UCs.

Macau, aos 08 de Outubro de 2015
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José Maria Dias Azedo
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Tam Hio Wa
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Chan Kuong Seng
(entendo, porém, que no caso, o arguido praticou tão-só um crime de abandono de sinistrado (punível com a pena aplicável ao crime de homicídio doloso cometido por omissão prevista no art.º 128.º do CP) e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, pelos quais já vinha condenado em primeira instância, devendo, pois, ser feito o novo cúmulo jurídico das penas achadas aí para estes dois delitos (pois, quanto aos pressupostos da verificação daquele crime de abandono de sinistrado, mantenho a minha interpretação das coisas já assumida no acórdão de 19/1/2012, no Processo n.º 841/2011, i.e., na declaração de voto por mim feita para esse aresto), sendo, por outro lado, de manter toda a decisão civil também recorrida, havendo que salientar que o montante de MOP$1.200.000,00 arbitrado na decisão recorrida para a reparação do “direito à vida” da vítima não poderia ser reduzido, porquanto o arguido praticou um crime doloso de abandono dessa vítima, e como tal, não poderia beneficiar do art.º 487.º do Código Civil).


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