Proc. nº 283/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 08 de Outubro de 2015
Descritores:
-Autorização de residência
-Estado civil
-Falsa declaração
-Fortes indícios da prática de um crime
SUMÁRIO:
Pode a entidade administrativa competente, ao abrigo do disposto no art. 9º, nº2, 1) e 4º, nº2, 3), ambos da Lei nº 4/2003 e 11º do DL nº 14/95/M, indeferir a renovação de autorização de residência concedida a título de investimento imobiliário se, no momento da renovação já o requerente era divorciado cerca de dois anos antes, embora no respectivo requerimento afirmasse ser casado.
Proc. nº 283/2013
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A, do sexo masculino, casado, de nacionalidade chinesa, titular do passaporte da China n.º GXXXXX215, emitido no dia 13 de Dezembro de 2011 pelo Departamento de Migração do Ministério de Segurança Pública de Xangai da RPC, residente em XX n.º XX, XXº andar, Cidade de XX, Província de XX (XX省XX市XX區XX路XX號XX樓), ----
Recorre do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, datado de 19/03/2013, que indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência por investimento em imóveis.
Na petição inicial, formulou as seguintes conclusões:
«(1) O despacho recorrido indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência por investimento de bens imóveis do recorrente e dos membros do seu agregado familiar, portanto, o recorrente não se conforma e vem interpor o presente recurso.
(2) O despacho recorrido concordou com a proposta do parecer, todavia, faltaram os 1º a 7º artigos nele, violou o art.º 70.º alínea a) do Código de Procedimento Administrativo e padeceu do vício de ilegalidade previsto no art.º 114.º n.º 1 do mesmo Código; deva-se anular o despacho recorrido nos termos do art.º 124.º do Código de Procedimento Administrativo.
(3) No dia 15 de Dezembro de 1989, o recorrente casou-se com B; no dia 21 de Abril de 2007, o recorrente divorciou-se de B; mas até a emissão de carta sobre a realização de audiência escrita por parte do IPIM, por motivo pessoal, o recorrente não notificou este com iniciativa da alteração do estado civil.
(4) Entretanto, de 21 de Abril de 2007 a 8 de Abril de 2011, o recorrente e B vivia em união de facto e não conseguiram completar pontualmente as tramitações de novo casamento; no dia 4 de Fevereiro de 2009, ao pedir a renovação de autorização de residência temporária, o recorrente não declarou que se divorciou de B em 21 de Abril de 2007. Porém, no dia 8 de Abril de 2011, o recorrente casou-se de novo com B.
(5) Respeitantemente a essa matéria, o Ministério Público instaurou os processos de inquérito n.º 4980/2011 e n.º 2330/2012.
(6) Atendendo ao crime grave previsto no art.º 9.º n.º 2 alínea 1) da Lei n.º 4/2003, subsidiariamente aplicado de acordo com o art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M, o despacho recorrido entendeu que não existia o pressuposto da autorização de fixação de residência do recorrente. Portanto, nos termos do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M e do art.º 9.º n.º 2 alínea 1) e art.º 4.º n.º 2 alínea 3) da Lei n.º 4/2003, foi indeferido o pedido de renovação da autorização de residência do recorrente e dos membros do seu agregado familiar.
(7) Primeiro, no art.º 29.º n.º 2 da Lei Básica dispõe-se o “princípio de presunção de inocência”.
(8) Existe distinção notória e simples entre a instauração de processo de inquérito penal, a elaboração de acusação e a condenação. Se provocar resultado desfavorável ou impor decisão ou sanção a qualquer pessoa somente com base na instauração de processo de inquérito penal por parte do Ministério Público, é violado o princípio de presunção de inocência previsto no art.º 29.º n.º 2 da Lei Básica,
(9) Que consiste em direito fundamental dos residentes de Macau (permanentes ou não permanentes, e até os indivíduos com autorização de permanência);
(10) Pelo que, o despacho recorrido admitiu a instauração de processo de inquérito penal por parte do Ministério Público e tomou-a como fundamento de prolação, violou o art.º 29.º n.º 2 da Lei Básica e o art.º 122.º n.º 2 alínea d) do Código de Procedimento Administrativo, por isso, deve-se declarar nulo o despacho recorrido nos termos do art.º 122.º do Código de Procedimento Administrativo.
(11) Segundo; o despacho recorrido foi proferido efectivamente nos termos do art.º 4.º, n.º 3, aplicado por remissão do art.º 9.º n.º 2 da Lei n.º 4/2003;
(12) Como acima dito, quando não haja decisão do tribunal, qualquer indivíduo goza do direito de ser presumido inocente nos termos do art.º 29.º n.º 2 da Lei Básica.
(13) É certo que “fortes indícios” consistem em um dos elementos da disposição referida, que é uma norma associada ao uso do poder discricionário dos órgãos administrativos.
(14) Ao punir um direito do recorrente em matéria administrativa, com base em fortes indícios, deve-se referir, aplicar por analogia e comparar a definição jurídica provavelmente única de “fortes indícios”,
(15) Ou seja, o art.º 186.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal. A jurisprudência geral interpretou essa norma, isto é, a possibilidade de sentença condenatória é maior que a de sentença absolutória.
(16) Entretanto, não há indícios suficientes dos quais o Ministério Público consegue resultar uma possibilidade de ser proferida pelo tribunal, em julgamento, uma sentença condenatória, até não se verifica qualquer prova persuasiva que revela uma possibilidade de sentença condenatória relativamente ao processo de inquérito penal maior que a de sentença absolutória.
(17) Pelo que o despacho recorrido, nesta parte, padece do “vício de ilegalidade” por aplicação errada do elemento de “fortes indícios” previstos no art.º 4.º n.º 3 da Lei n.º 4/2003, deste modo, deve-se anular o despacho recorrido nos termos do art.º 124.º do Código de Procedimento Administrativo.
(18) Terceiro; conforme o art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M e o art.º 5.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, em conjugação com a norma sobre relação matrimonial prevista no Código Civil;
(19) No sistema jurídico de Macau, quer o Código Civil de Portugal de 1967, quer o Código Civil de Macau vigente, não proíbem os divorciados de viver juntos e gerar a união de facto. Ou prevêem que não são havidos cônjuges aqueles que se tenham divorciado”;
(20) De acordo com a parte anterior do art.º 287.º do Código Civil vigente, é tido como princípio da lei civil que o acto do agente não viola a lei se esse acto não seja proibido,
(21) O despacho recorrido alegou que não existia a relação conjugal entre o recorrente e B no respectivo período, O que consiste certamente em interpretação errada sobre os requisitos legais referidos, nomeadamente sobre a união de facto.
(22) Pelo que, o despacho recorrido padece do “vício de ilegalidade” por aplicação errada do art.º 4.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 14/95/M, deve-se anular o despacho recorrido nos termos do art. º 124.º do Código de Procedimento Administrativo.
(23) No fim, pede-se que sejam apreciados oficiosamente os vícios legais no presente processo e seja proferida a sentença com habitual justiça».
*
A entidade recorrida, concluiu a sua contestação do seguinte modo:
« I
1. A incompletude do despacho não resulta em ineficácia ou até anulabilidade do acto, mas sim somente atribui ao recorrente o direito de requerer suprir o devido teor e provoca a suspensão do prazo para interposição de recurso a partir da data de apresentação desse requerimento (art.º 27.º n.º 2 do Código de Processo Administrativo Contencioso).
2. O recorrente enviou carta ao IPIM através do seu advogado para pedir consultar todo o conteúdo do processo' e a ele foi fornecido o processo em 30 de Abril de 2013. Daqui vê-se que o advogado sabia todo o conteúdo do despacho recorrido.
3. Se ainda não conseguisse conhecer todo o teor após consulta (embora seja impossível), o advogado do recorrente devia saber exercer os direitos conferidos pela lei e requerer às autoridades administrativas suprir o conteúdo, mas ele não aprestou requerimento. Daqui mostra-se que o advogado do recorrente já conheceu todo o teor após consulta.
4. Assim sendo, não se fundamenta juridicamente o pedido de anulação do despacho recorrido por faltar conteúdo de uma página.
II e III
5. Em conjugação adequada com o art.º 4.º n.º 2 alínea 3) da Lei n.º 4/2003, recusou-se de conceder a renovação de autorização de residência, porém, não obsta ao recorrente gozar do direito de se submeter ao julgamento de tribunal e ser presumido inocente antes de condenação, pelo que não tem razão alegar que a recusa de concessão de renovação de autorização de residência viola o princípio de presunção de inocência.
6. O recorrente declarou, após divórcio, perante as autoridades administrativas que foram cônjuges e pediu a autorização de residência de B. A sua declaração falsa é suficiente para fazer acreditar a possibilidade de usar prova falsa para ocular o estado civil, a fim de obter a autorização de residência.
7. O recorrente indicou na audiência escrita que, foi muito difícil para ele e B abrir mão das emoções após divórcio e têm estes mantido a relação em união de facto.
8. Mas o recorrente só fez justificação ex post facto até que foi detectada a declaração falsa de estado civil, de resto, não foi justificado porque eles escolheram divórcio a despeito de dificuldade de abrir mão das emoções e porque ocultaram dolosamente o estado civil verdadeiro no pedido de renovação de residência.
9. Essa justificação não é convincente.
10. O recorrente não conseguiu explicar persuasivamente a anormalidade de relação matrimonial entre ele e B, as autoridades administrativas tinham de entender existentes fortes indícios de usar prova falsa para ocular o estado civil, a fim de ajudar B a obter a autorização de residência.
11. Portanto, não tem razão afirmar que a entidade recorrida cometeu erro ao dar provada a existência de fortes indícios.
12. Cabe apontar que o recorrente incorre em erro sobre os fundamentos fácticos do despacho recorrido.
13. Embora o despacho recorrido mencione que o Ministério Público procedeu ao inquérito penal sobre o recorrente e a PJ e a CCAC pediram ao IPIM as informações de pedido de autorização de residência por investimento do recorrente, esses factos não são, como entendido pelo recorrente, fundamentos de decisão do despacho recorrido.
14. O recorrente foi informado de fazer audiência escrita apenas no tocante a ser susceptível de prestar declaração falsa e ocultar o estado civil a fim de ajudar outrem a obter a autorização de residência temporária.
15. O despacho recorrido limita-se a proceder à análise e conclusão no âmbito das alegações da audiência escrita do recorrente e os documentos, consiste em erro de pressuposto de facto a imputação de que o despacho recorrido se fundamenta no mero facto da instauração de processos de inquérito penal por parte do Ministério Público.
16. Na verdade, no caso, as autoridades administrativas não precisam de analisar se a possibilidade de condenação é superior à de absolvição no processo penal, uma vez que isso não é elemento de ponderação no procedimento administrativo da apreciação de autorização de residência.
17. Basta analisar os factos provados e concluir que “existem indícios fortes de terem praticado quaisquer crimes”, para indeferir a renovação de autorização de residência nos termos do art.º 4.º n.º 2 alínea 3) da Lei n.º 4/2003, o que construi o poder discricionário conferido pela lei às autoridades administrativas.
18. Só é sindicável o exercício do poder discricionário quando haja desvio de poder, erro manifesto ou total desrazoabilidade do seu exercício, mas tudo acima dito não existe no despacho recorrido.
19. Pelo exposto, não existem vícios de violar do princípio de presunção de inocência e de dar provada erradamente a existência de fortes indícios previstos no art.º 4.º n.º 2 alínea 3) da Lei n.º 4/2003;
20. O recorrente entende que no despacho recorrido é incorrecto dar provado que o recorrente e a sua mulher não têm relação matrimonial após divórcio.
21. O recorrente defende que, o divórcio não equivale à impossibilidade de existência de união de facto, porque a lei não proíbe o surgimento de união de facto entre o casal divorciado.
22. Há erro na interpretação do recorrente sobre o despacho recorrido. Quer na análise, quer na conclusão, o despacho recorrido não sustenta que não pode existir a união de facto entre o casal divorciado.
23. O despacho recorrido põe em dúvida a justificação de união de facto, que só foi feita pelo recorrente quando se detectou a prestação de declaração falsa e se exigiu a audiência escrita, entendendo por não convincente essa justificação, o que não tem nada a ver com a questão de poder ou não haver união de facto entre casal divorciado.
24. É uma questão que merece discutir se poder ou não haver união de facto entre casal divorciado, mas não é a questão analisada no despacho recorrido.
25. O despacho analisa somente se existe união de facto entre o recorrente e B e resolve que não se acredita a existência.
26. As duas questões são distintas, mas o recorrente confundiu-as e alegou que o despacho recorrido deu provada erradamente a inexistência de união de facto entre o recorrente e B, o que obviamente não é verdade.
27. Não se deve admitir esse vício por consistir em erro de pressuposto de facto.
Pelo exposto, deve-se rejeitar o presente recurso».
*
Em alegações facultativas, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:
«(1) Para o devido efeito jurídico, nomeadamente do art.º 68.º n.º 4 do Código de Processo Administrativo Contencioso, dá-se aqui por integralmente reproduzido todo o teor da presente petição de recurso, sobretudo a parte de conclusão e pedido.
(2) O recorrente não concorda com os art.ºs 4.º a 8.º dos factos e os art.ºs 1.º a 4.º da conclusão da contestação do recorrido. Deste modo, pede-se que seja proferida a decisão com habitual justiça.
(3) Segundo; o recorrido invocou os acórdãos n.º 52/2009 e n.º 759/2007 de Tribunal de Segunda Instância, mas nos acórdãos referidos, o sujeito do processo é recurso interposto por indivíduo sobre a decisão do Secretário para a Segurança.
(4) São correctos os acórdãos referidos visto que é a competência da Secretaria para a Segurança assegurar a paz de Macau, pelo que ao Secretário para a Segurança são conferidos pela lei a competência e o poder de determinar se existe “indícios fortes” para um interessado. E mais, a decisão do Secretário para a Segurança é proferida certamente com base nas informações no processo administrativo. A esse processo administrativo, são provavelmente juntadas as informações de todos os crimes que ele pode conhecer no âmbito da sua competência, até as informações dos delinquentes ou de notícias de crime com auxílio das regiões aproximadas. Deste modo, pelas razões expostas, o tribunal entende que o Secretário para a Segurança goza da discricionariedade nesta parte.
(5) Ora, o recorrido não é o Secretário para a Segurança, assim sendo, não tem o conhecimento profissional e a habilitação, como o Secretário para a Segurança, sobre os crimes penais. Pelo que, ao aplicar a norma de “indícios fortes”.
(6) O recorrido alegou que a decisão não foi proferida com base no processo de inquérito penal, mas foram mencionados os processos de inquérito penal na decisão administrativa.
Se, bem como afirmado pelo recorrido, a decisão não fosse proferida com base nos processos de inquérito penal, não deviam constar da decisão administrativa. Todavia, face à declaração prestada pelo recorrido na contestação, ficam restringidos os fundamentos do acto administrativo objecto, isto é, o acto administrativo objecto não ponderou nem se fundamentou nos processos de inquérito penal. No caso, o acto administrativo objecto não devia apreciar qualquer informação ou elemento do processo de inquérito penal.
(7) Terceiro; o recorrido afirmou que, não considerou que não podia existir união de facto entre casal divorciado, mas a justificação não foi convincente, portanto, foi proferido o acto administrativo objecto.
(8) Baseando-se apenas no fundamento referido, como pode o recorrido entender que, “o surgimento de união de facto após divórcio” sem justificação, satisfaz o requisito de “indícios fortes” previstos na norma invocada?
(9) O recorrente entende que, como o recorrido prestou a declaração aludida, deve-se assim considerar que o acto administrativo objecto se fundamenta em “surgimento de união de facto após divórcio” sem justificação.
(10) O recorrente entende que, são questões emocionais o encontro, namoro, casamento, divórcio e restabelecimento de relação entre o casal. É impossível para nós descrever o amor para uma pessoa, até não podemos explicar porque amamos uma pessoa ou porque não. Não somos o recorrente e não devemos apreciar porque ele e o cônjuge se amaram, se divorciaram e se casaram de novo e se há justificação legítima ou não.
(11) Porém, não devemos prestar atenção a exigir ao recorrente fazer justificação, mas sim a conhecer se existe casamento, união de facto e novo casamento entre o recorrente e o cônjuge.
(12) Constam dos autos as provas documentais, que o recorrido nunca duvida ou impugna, portanto, o Tribunal deve vê-las como meios de prova legal e dá-las provadas.
(13) Assim, não se deve suportar a alegação do recorrido de que o acto administrativo objecto foi proferido em face da falta de justificação legítima sobre o “surgimento de união de facto após divórcio”.
(14) Portanto, o Tribunal deve fazer a habitual justiça e dar provimento aos pedidos do recorrente».
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A entidade recorrida concluiu as suas alegações facultativas do seguinte modo:
«1. O recorrente tinha como prova de relação matrimonial o certificado de casamento oficialmente registado quando pediu a extensão de autorização de residência à sua mulher B.
2. Esse certificado de casamento fundamentou o deferimento por parte da Administração à extensão de autorização de residência a B.
3. Se o recorrente não consiga manter este fundamento ao pedir a renovação, a Administração não tem razão para continuar a conceder a autorização de residência a B.
4. Quando o recorrente pediu a renovação correspondente ao presente recurso, já se divorciou de B e, porém, ainda declarou no pedido que tinha relação matrimonial com esta, com intuito de ocultar o facto de divórcio e ajudar B a obter a autorização de residência. Só quando a Administração constatou e exigiu uma justificação escrita, alegou que, mesmo sendo divorciados, tem existido sempre a união de facto porque não conseguem abrir mão das emoções.
5. Na verdade, ao recorrente incumbiu o ónus de prova quando afirmou que eles têm mantido a união de facto após divórcio e, para tal, devia produzir provas persuasivas concretas às autoridades administrativas. Mas o recorrente não conseguiu submeter provas convincentes e, em face disso, é difícil acreditar a autenticidade da alegada existência de união de facto.
6. Assim sendo, é incontroverso que a Administração não acredite a alegada união de facto e entenda por existentes fortes indícios de uso de prova falsa para ocultar o estado civil, a fim de ajudar B a obter a autorização de residência temporária.
7. Não padece de qualquer vício que conduza à anulação o despacho recorrido de indeferimento de renovação de autorização de residência temporária do recorrente e dos membros do seu agregado familiar.
Deve-se rejeitar o presente recurso.».
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O digno Magistrado do MP opinou nos seguintes termos:
«No ofício n.º 03314/GJFR/2013 (doc. de fls.17 dos autos), encontra-se a menção expressa de «批示之作出及基於 閣下卷宗意見書共4頁之內容。現附上其影印本,具體說明不批給之理由。». A Informação n.º 2211/居留/2004/2R constantes de fls.18 a 21 dos autos torna inquestionável que o recorrente recebeu a mesma.
Aquela “menção expressa” e essa Informação demonstram que a Administração não infringe o preceito na a) do art.70º do CPA. Acresce que de acordo com a jurisprudência pacífica (a título exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processos n.º 1/2004 e 25/2012), a omissão ou insuficiência dos elementos previstos neste art. 70º não tem condão de conduzir à invalidade do acto notificando/notificado.
A leitura mesmo perfunctória da Informação n.º 2211/居留/2004/2R faz seguramente perceber que aí se consta da exposição dos fundamentos de facto e de direito do despacho sob sindicância, exposição que se mostra clara, congruente e suficiente.
Daqui decorre que a Administração cumpriu pontualmente o dever de fundamentação por remissão e, nesta medida, não pode deixar de ser manifestamente infundada a arguição de o acto recorrido infringir o n.º 1 do art.114º do CP A (a 2a conclusão formulada na petição).
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No caso vertente, não há margem para dúvida de que é dolosamente falsa por não corresponder à verdade a declaração constante da coluna 2.2 do Requerimento de renovação da autorização da residência temporária datado de 04/02/2008 (doc. de fls.1 no P.A.), visto naquela altura o recorrente estar divorciado do seu cônjuge B.
A coluna 2.2 do dito Requerimento e a Declaração da Manutenção da Relação Conjugal de fls.11 do P.A. revelam que o recorrente prestou falsa declaração do seu estado civil. Tal facto constitui naturalmente forte indício da prática do crime p.p. pela b) do art.240º do Código Penal.
Ora, inculca a boa jurisprudência (Acórdãos do Venerando TSI nos Processos n.º 93/2002, n.º 6/2003 e n.º 759/2007): O “princípio da presunção da inocência” não i obsta à imposição da prisão preventiva a um arguido antes de estar condenado por decisão transitada em julgado. E no Direito Administrativo, a recusa da entrada na RAEM, como uma medida policial destinada a assegurar a paz e a tranquilidade social desta comunidade, não confronta com o princípio da presunção da inocência.
Por maioria da razão ou, pelo menos, por mesma razão subjacente às sensatas jurisprudências acima citadas, temos por certo que o despacho objecto do presente recurso contencioso não contende com o princípio da presunção da inocência, nem ofende o conteúdo essencial do direito fundamental do recorrente, sendo insubsistentes as conclusões 7 a 10 da petição inicial.
Da apontada falsa declaração do estado civil que constitui forte indício da prática do crime p.p. pela b) do art.240º do Código Penal, influi que o acto recorrido não comete a errada aplicação da alínea 3) do n.º 2 do art. 4º da Lei n.o4/2003, pelo que falecem as conclusões 10 a 17 da petição inicial.
O que levou a Administração a indeferir o pedido de renovação da autorização da residência temporária consiste na referida falsa declaração do estado civil. Daí nos parece que não faz sentido arguir a violação pelo acto impugnado do disposto no n.o3 do art. 4º do D.L. n.º 14/95/M.
*
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso».
*
Por despacho do relator de fls. 87 vº foi determinada a suspensão dos presentes autos até ser proferida decisão definitiva do processo-crime instaurado contra o aqui recorrente pela prática do crime de falsificação de documento.
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Desse despacho foi interposta reclamação para a conferência, que por acórdão de 20/11/2014 o decidiu manter (fls. 120-123).
*
Na oportunidade foi junta aos autos uma certidão da sentença condenatória proferida no TJB contra o aqui recorrente pela prática do aludido crime, bem como do acórdão do TSI que, em recurso jurisdicional, a confirmou (fls. 131-142 dos autos e fls. 140-159 do apenso “traduções”).
*
O digno Magistrado reafirmou, então, o anterior parecer, concluindo pela improcedência do recurso (fls. 148).
***
II – Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
Julga-se assente a seguinte factualidade:
1º - O recorrente A contraiu casamento no interior da República Popular da China com B no dia 15/12/1989.
2º - Em 2005 o recorrente obteve autorização de residência em Macau, por investimento relevante na RAEM, da qual beneficiou também a mulher B.
3º - Em 21/04/2007, porém, divorciaram-se por mútuo consentimento perante a Conservatória de Registo de Casamento do Instituto para os Assuntos Cívicos da Nova Região de Pudong, em Shangai.
4º- No dia 3/02/2009 o recorrente pediu a autorização de residência temporária na RAEM, invocando ser casado e titular de um documento da Gâmbia, com fundamento na aquisição de uma fracção em Macau no valor de HK$ 2.931.000,00 (fls. 88 do apenso “traduções”).
5º - Na mesma data pediu a extensão do direito de residência à mulher de nome B (fls. 92, do apenso “traduções”), com quem se tinha casado na RPC em 15/12/1989, e a um filho de nome C, nascido em XX/XX/19XX na RPC (fls. 93 do citado apenso).
6º - Com o pedido aludido em 3º o requerente não fez menção da situação de divorciado e, em vez disso, declarou que era casado, tendo o anexo destinado aos membros do agregado sido referido que B era seu cônjuge.
7º - O Ministério Público instaurou os Processos de Inquérito nº 4980/2011 e 2330/2012.
8º - O Técnico Superior do IPIM prestou a seguinte Informação:
«第2211/居留/2004/02R號意見書 不動產投資居留申請-續期
申請人-A 適用第14/95/M號法令
____________________________________________________________________
事由:審查臨時居留申請
執行委員會:
1. 利害關係人身份資料及建議批給臨時間許可期限:
序號
姓名
關係
證件/編號
證件有效期
臨時居留許可有效期至
建議批給臨時居留許可至
1
A
申請人
中國護照GXXXXX643
2017/07/04
2009/08/13
2
B
配偶
中國護照GXXXXX873
2018/09/18
2009/08/13
3
C
卑親屬
中國護照GXXXXX610
2018/12/22
2009/05/09
2. 申請人於2005年7月8日首次獲批臨時居留許可申請。
3. 為續期目的,申請人提交下列原不動產文件,證實仍持續擁有符合法律規定的不動產投資:
(1)物業標示編號: XXX79-III
澳門XX馬路XX號XX居XX樓XX座
B價值: 3,018,930.00澳門元
登記日期:2008/12/31(42)
透過文件證實,申請人以上述物業抵押予大西洋銀行借款1,460,000.00港元,直至2009年1月12日止,尚欠1,304,767.36澳門元(見第82頁文件)。
4. 本局於2009年2月9日收到一舉報,指出申請人已於2007年4月21日與其配偶B離婚,認為申請人有意圖以欺騙方式為他人取得本澳臨時居留許可。就上述舉報,本局已將相關文件移送予檢察院跟進。
5. 就本個案,本局亦曾應廉政公署第Of.0139/DSCC/2010號公函(見第91頁文件),提供本個案卷宗予該局查閱。
6. 其後,本局於2010年6月28日亦再次收到舉報人之來函,並提供一份與申請人相關報導作佐證,有關補充材料亦透過第03503/GJFR/2011號公函送予檢察院跟進倪第88頁文件)。
7. 而就有關舉報,本局於2011年3月31日透過第03273/GJFR/2011號公函(見第87頁文件),通知申請人就其涉嫌提供虛假聲明及隱瞞結婚狀況以圖為他人取得臨時居留許可之事宜,由於上述事宜存在不利於其臨時居留訐可續期申請,故申請人須於10日內就上述事宜提交書面意見答辯及相關證明文件。
8. O requerente entregou no dia 11 de Abril de 2011 a declaração, a escritura pública de divórcio e a escritura pública de casamento (vide os documentos constantes das fls. 12 a 44), pelas quais se verifica que:
(1). O requerente casou-se na Província Zhe Jiang com o cônjuge B, para quem pediu a extensão, e divorciou-se dela no dia 21 de Abril de 2007 em Xangai. Em seguida, o requerente casou-se de novo com B em 8 de Abril de 2011 perante o Ministério dos Assuntos Civis do Bairro Pu Dong Xin Qu de Xangai.
(2). De acordo com a contestação escrita do requerente, divorciou-se de B no dia 21 de Abril de 2007, mas eles têm vivido juntos até hoje, sem casar-se com outrem; e residem conjuntamente com os outros membros familiares em Bairro XX, XX Cheng, Torre XX, Bloco XX, apartamento XX, possuído por B, Cidade de XX, Província de Zhe Jiang (XX省XX市XX區XX城XX幢XX單元XX室).
(3). O requerente indica que, por motivo pessoal, não conseguiu completar oportunamente os trâmites de casamento novo com B. Pede desculpa por entregar declaração sobre B não conformada com regulamento administrativo. Alega que, após divórcio, tem vivido com B em união de facto (foram juntadas as declarações dos dois indivíduos para efeito de prova), está preenchido o disposto do art.º 5.º n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, pede que seja acompanhado o pedido tendo em conta o investimento relevante dele em Macau.
9. Por ofício n.º kinpaninon (2011)57 de 14 de Junho de 2011 do Gabinete do Procurador (vide o documento constante da fls. 86), foi comunicado que o estado civil do requerente era contrário à verdade e o Ministério Público já instaurou processo penal (processo de inquérito n.º 4980/2011).
10. Quanto a este caso, por ofício n.º PJGD12003355 de 18 de Abril de 2012 (vide o documento constante da fls. 85), a PJ pediu as informações do pedido de autorização de residência por investimento do requerente. O IPIM forneceu à PJ a cópia do processo de pedido do requerente (vide o documento constante da fls. 84), por ofício n.º 7172/GJFR/2012 de 21 de Maio de 2012.
11. Por conseguinte, o IPIM recebeu de novo do Gabinete do Procurador em 5 de Dezembro de 2012 o ofício n.º kinpaninon (2012)138 (vide o documento constante da fls. 83), no qual indicou que o Ministério Público recebeu participação em 2010, alegando que o requerente A foi susceptível de prestar declaração falsa e ocultar o estado civil, de forma a obter a autorização de residência temporária. No tocante ao assunto denunciado, o Ministério Público instaurou processo penal (processo de inquérito n.º 4980/2011), o que foi comunicado ao IPIM por ofício n.º kinpaninon(2011)57. Como ora recebeu uma outra carta de participação sobre A, foi instaurado o processo penal (processo de inquérito n.º 2330/2012) para proceder à investigação.
12. Cumpre fazer a seguinte análise sintetizada dos documentos entregues pelo requerente:
(1) O requerente apresentou em 4 de Fevereiro de 2009 o presente pedido de autorização de residência temporária, no qual as informações pessoais dos membros do agregado familiar foram assinadas pela procuradora do requerente, Sr.ª D, e pediu a renovação para B, a título de “cônjuge”. Foi entregue também a declaração de relação matrimonial continuada, assinada pelo requerente e reconhecida pelo 2º Cartório Notarial.
(2) Mas conforme a escritura pública de sumário de registo de divórcio (sic.) e a escritura pública de casamento, entregues pelo requerente ao IPIM até que ele recebeu o ofício de audiência escrita emitido em 31 de Março de 2011, verifica-se que o requerente divorciou-se de B em 21 de Abril de 2007. Cabe mencionar que, desde o divórcio (21 de Abril de 2007) até a emissão do ofício de audiência escrita referido, o requerente nunca tomou a iniciativa de notificar o IPIM da alteração do seu estado civil.
(3) De acordo com a escritura pública de casamento, verifica-se que o requerente se casou de novo com B em 8 de Abril de 2011. Das datas resulta-se que, se não recebesse o oficio, o requerente não iria notificar activamente o IPIM do facto de divórcio e fazer o novo registo de casamento.
(4) Não tem importância se o requerente se casou de novo em 8 de Abril de 2011, juridicamente, foram divorciados no dia 21 de Abril de 2007, portanto, no pedido de autorização de residência temporária do requerente apresentado em 8 de Fevereiro de 2009, não tem razão o pedido de extensão a B, a título de cônjuge.
(5) Embora após o divórcio o requerente tenha vivido juntamente com B em união de facto, dispõe o art.º 4.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 14/95/M que “Aqueles que não sendo casados ou, sendo-o, se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens e vivam, há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, são havidos como cônjuges para efeitos do presente diploma.” O requerente já fez registo de divórcio em 21 de Abril de 2007 perante o Ministério dos Assuntos Civis, não estando preenchida a condição referida de que “se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens e vivam, há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges”.
(6) Ao abrigo dos art.º 8º e 62.º n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo, os órgãos administrativos são obrigados a confiar que o requerente não oculta ou presta declaração falsa sobre a relação entre ele e os membros do agregado familiar para quem se pede a extensão, e não articula factos contrários à verdade no pedido da autorização de residência.
(7) Todavia, no caso, o IPIM pediu por carta ao requerente fornecer o seu estado civil e entregar a escritura pública de divórcio e o documento comprovativo de casamento, só quando recebeu a carta, o requerente entregou a escritura pública de sumário de registo de divórcio (sic.) e a escritura pública de casamento, e notificou o IPIM do divórcio e do novo casamento. Daqui verifica-se que, ao pedir a renovação de autorização de residência temporária, o requerente ocultou o facto de ter-se divorciado de B, prestou declaração falsa e dissimulou o estado civil, a fim de ajudar B a obter a autorização de residência temporária, o que constitui a existência de fortes indícios de crime previstos no art.º 9.º n.º 2 alínea 1) da Lei n.º 4/2003, subsidiariamente aplicada nos termos do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M, e resulta em inexistência de pressuposto de concessão de autorização de residência ao requerente.
13. Pelo exposto, em face dos factos aludidos, o requerente é susceptível de prestar declaração falsa e dissimular o estado civil, a fim de ajudar outrem a obter a autorização de residência temporária, propõe-se que seja indeferido o pedido de renovação de autorização de residência do requerente A e dos membros do seu agregado familiar, nos termos do art.º 9.º n.º 2 alínea 1) e do art.º 4.º n.º 2 da Lei n.º 4/2003, subsidiariamente aplicada nos termos do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M.
À consideração superior.
Técnico superior
Ass. vide o original
XX
20 de Fevereiro de 2013
9º - A Comissão Executiva do IPIM emitiu o seguinte parecer:
«Exmº Sr Secretário para a Economia e Finanças,
Tendo-se procedido à análise, como o recorrente é susceptível de prestar declaração falsa e ocultar o estado civil, a fim de ajudar outrem a obter a autorização de residência temporária, é elaborado o parecer de indeferimento de pedido de renovação dos interesses seguintes. Venho propor o indeferimento do respectivo pedido.
Nº
Nome
Relação
1.
A
Requerente
2.
B
Cônjuge
3.
C
Descendente
Submete-se o presente parecer para decisão de V. Exª.
O Presidente
(Ass. vide o original)
XX
11º - Em 19/3/2013, o Secretário para a Economia e Finanças despachou (a.a.):
«Autorizo a proposta» (fls. 52).
12º - O Recorrente apresentou reclamação ao Secretário para a Economia e Finanças contra tal despacho (fls. 94-116).
13º - Foi deduzida acusação contra o recorrente (fls. 11, do apenso “traduções”), tendo sido oportunamente sido submetido a julgamento em processo crime, no qual veio a ser condenado no TJB (Proc. nº CR4-14-0244-PCS, do 4º juízo criminal) pela prática de um crime de falsificação de documento por sentença de 21/10/2014, que foi confirmada por acórdão proferido no Proc. nº 760/2014, do TSI de 21/05/2015 (fls. 132-142 dos autos e fls. 140 a 159 do apenso “traduções”).
14 – O recorrente voltou a casar com a ex-mulher no dia 8/04/2011 (cfr. fls. 37-42 do p.a.).
***
IV - O Direito
1 – Introdução
Entre vários casos que neste TSI têm aparecido em recursos contenciosos similares, este é mais um de alguém que:
- Sendo casado, obtém autorização de residência por investimento relevante, para si e seu agregado familiar;
- Mais tarde se divorcia, continuando, porém, a viver com a mesma pessoa (“ex-conjuge”);
- Não informa as entidades competentes do divórcio;
- Renova posteriormente o pedido de autorização de residência, ocultando o divórcio e, pelo contrário, afirmando ser casado;
- Casa, posteriormente, novamente com o mesmo “ex-conjuge”.
Por ocasião da renovação, ou antes mesmo, foi detectado que a alteração da situação familiar do recorrente não foi levada ao conhecimento da entidade administrativa competente.
E com base nessa dupla circunstância – ocultação do verdadeiro estado civil e falsa declaração – foi o pedido de renovação indeferido, tendo por base jurídica o disposto nos arts. 9º, nº2, alínea 1) e do art. 4º, nº 2, da Lei nº 4/2003, subsidiariamente aplicada nos termos do art. 11º do DL nº 14/95/M.
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2 – Os fundamentos do recurso
O recorrente considera que o acto administrativo em apreço, padece dos seguintes vícios:
- Violação do art. 70º, al. a), do CPA;
- Vício de forma por falta de fundamentação (art. 114º, nº1, do mesmo Código);
- Violação do art. 29º, nº2, da Lei Básica;
- Violação, por errada aplicação, do art. 4º, nº3, da Lei nº 4/2003.
- Violação do art. 4º, nº3, do DL nº 14/95/M.
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3 – Apreciando
3.1 – Violação do art. 70º do CPA
Está em causa para o recorrente, alegadamente, a falta de comunicação de elementos que deveriam ter acompanhado a notificação do acto.
Ora, como se sabe, a notificação é posterior ao acto. A causa de pedir no recurso é constituída pelos factos que densificam os vícios do acto. A omissão do envio de alguns elementos não invade o acto (que se era perfeito e válido, assim continuará a ser), não o inquina, não o invalida; quando muito, torna-o ineficaz.
Por isso se diz que, enquanto a fundamentação é intrínseca do acto, a notificação e a publicação são já extrínsecas ao acto decisor e a ele necessariamente posteriores; São veículos ou instrumentos de comunicação (por isso se dizendo instrumentais) e visam conferir eficácia ao acto.
Quando tal sucede, o interessado pode requerer, no prazo de 10 dias, nos termos do nº 2 do artº 27º do CPAC, uma nova notificação com indicação dos elementos em falta ou a passagem de certidão ou fotocópia autenticada que os contenha, ficando suspenso, a partir da data da apresentação do requerimento, e até à daquela notificação ou passagem, o prazo para interposição do recurso cuja contagem se tenha iniciado.
Sobre o assunto, ver, Ac. TSI, de 7/12/2011, Proc. nº 346/2010; 18/04/2013, Proc. nº 647/2012, entre outros.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
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3.2 - Vício de forma por falta de fundamentação
O recorrente diz que não consegue perceber de forma completa e indubitável os fundamentos da decisão impugnada.
Apesar desta invocação, a verdade é que o recorrente nada mais acrescenta a propósito. Refere que faltou a notificação dos arts. 1º a 7º do parecer que antecedeu o despacho em crise.
Efectivamente, aqueles artigos do parecer não foram notificados. Contudo, a respeito disso duas coisas podemos nós dizer:
1ª Em primeiro lugar, os pontos 8 e seguintes do parecer revelam bem o que esteve em causa; toda a fundamentação do acto está ali contida com suficiente clareza. Tanto assim, que a petição do recurso foi bem estruturada, não denotando nenhuma dificuldade em alcançar o sentido perfeito do acto.
2 Em segundo lugar, tais elementos não foram solicitados pelo recorrente posteriormente à notificação. Podia o recorrente tê-los pedido ao abrigo do art. 27º como já dissemos. Não é por os não ter requerido que o acto se torna inválido por falta de fundamentação. A fundamentação do acto está completa; o que faltou foi a comunicação de parte dos seus fundamentos. O que é diferente, como já se disse.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
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3.3 - Violação do art. 29º, nº2, da Lei Básica
Acha o recorrente que o art. 29º, nº 2 da Lei Básica foi violada.
O pensamento do recorrente é este: Como todo o residente de Macau se presume inocente até ao trânsito em julgado de sentença condenatória, não podia a Administração proceder consigo como se estivesse a tratar de um criminoso, num momento em que apenas se pode falar de meros indícios.
Com todo o respeito, está enganado. O art. 9º, nº 2, al. 1), da Lei nº 4/2003, considera que na decisão administrativa para a autorização de residência devem ser atendidos os antecedentes criminais, o comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4º desse mesmo diploma.
Ora, mesmo sem esperar pela condenação pelo crime em que o recorrente ficou incurso – e pelo qual até veio a ser condenado – a Administração foi naquela ocasião (o momento do pedido de renovação) confrontada com três factos relevantes: a) a “alteração do estado civil” do ora impugnante, uma vez que nessa altura já era divorciado; b) a ocultação desse facto à Administração; a errada declaração de que era casado.
Nenhum destes factos é contrariado pelo recorrente; a realidade demonstra serem verdadeiros. Portanto, qualquer que fosse o resultado do processo-crime a propósito do imputado crime de “falsificação de documentos” pelo qual veio a ser acusado, é indiscutível que produziu no documento escrito de requerimento para a renovação da autorização de residência uma declaração que não correspondia à verdade (disse ser casado, quando era divorciado).
Ora, sendo assim o princípio da presunção da inocência por aquele crime nunca afastaria a declaração errada inscrita no documento.
Não se pode, pois, dar por procedente o recurso nesta parte.
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3.4 - Violação, por errada aplicação, do art. 4º, al. 3), da Lei nº 4/2003
Teria sido feita errada aplicação da disposição legal epigrafada, na tese do recorrente.
Não vemos como, sinceramente.
Então não vê o recorrente que o seu comportamento, com o devido respeito, constitui um incumprimento das leis da RAEM? Dizer que é casado, quando se é divorciado, não é produzir uma declaração falsa (errada se quiser) a respeito do estado civil? Não vê que poderia obter um direito com base numa informação que não correspondia à realidade?
Se é o próprio recorrente que, chamado a pronunciar-se em sede audiência prévia, admite que aquela declaração não corresponde à verdade, o que é confirmado documentalmente através de registo de casamento, como pode dizer que não há fortes indícios de ter sido cometido um ilícito criminal?
Já por isso se diz que não viola o princípio in dubio pro reo a decisão da Administração de indeferir pedido de fixação de residência por haver fortes indícios da prática de crime, sem haver qualquer condenação judicial, com fundamento no disposto nos artigos 9.º, n.º 2, alínea 1) e 4.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003 (Ac. do TUI, de 15/10/2014, Proc. nº 103/2014).
Ora, bastando a existência desse forte indício, pouco interessa dizer que o IPIM ou qualquer outra entidade administrativa não tenha poderes em matéria criminal, tal como o argui o recorrente. Na verdade, não está em causa uma punição criminal pela prática de um ilícito criminal, para o que faltaria competência à entidade administrativa, mas sim retirar efeitos jurídico-administrativos da existência de fortes indícios dessa ilicitude.
Consequentemente, não se vê como possa dizer-se violado aquele dispositivo legal.
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3.5 - Violação do art. 4º, nº3, do DL nº 14/95/M.
Desta feita, trata-se de imputar ao acto a violação desta disposição legal.
Este diploma, como se sabe, foi revogado pelo Regulamento nº 3/2005. Todavia, a sua aplicação ainda se mantém para as renovações de autorizações que tenham sido concedidas sob a sua égide (cfr. art. 22º, do cit. Regulamento).
O nº 3, do citado artigo 4º preceitua que “Aqueles que não sendo casados ou, sendo-o, se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens e vivam, há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, são havidos como cônjuges para efeitos do presente diploma”.
O art. 5º do Regulamento 3/2005 dispõe que se podem habilitar à autorização de residência temporária na RAEM o cônjuge (1)), o unido de facto (2)).
Pretende, pois, o recorrente avistar ali uma previsão legal que dê cobertura à sua situação de facto.
Mas, não tem razão, salvo o devido respeito.
O que o art. 5º do Regulamento Administrativo estabelece é um elenco das pessoas que podem ter acesso à autorização de residência. A circunstância de figurar nesse elenco o unido de facto não basta para desde logo o seu caso poder subsumir-se àquela previsão.
Com efeito, mesmo que, apesar de formalmente divorciado, continuasse unido de facto à mesma “ex-cônjuge”, isso não lhe podia permitir o acesso automático ao direito, por duas razões:
Em primeiro lugar, este diploma não lhe seria aplicável. Tendo a sua situação primitiva sido submetida ao DL nº 14/95/M, seria ao seu abrigo que o seu caso deveria continuar a ser apreciado (cfr. art. 22º do Regulamento nº 3/2005). Portanto, não faz sentido invocar uma norma que não tem aplicação ao caso concreto.
Em segundo lugar, o art. 4º do DL nº 14/95/M também prevê que o direito se estenda “àqueles que não sendo casados ou, sendo-o, se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens e vivam, há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, são havidos como cônjuges para efeitos do presente diploma”. Ou seja, a união de facto acaba por estar ali também prevista.
O problema que desencadeou o acto administrativo sob sindicância não está, de resto, no estado civil do recorrente. Se esse fosse, realmente, o fundamento do indeferimento administrativo, então cremos que o caso poderia ter a solução por que o recorrente se bate. Com efeito, em princípio, nada parece obstar a que os cônjuges se divorciem e, após, reatem a relação, não sob o vínculo do casamento, mas sob o da união de facto. E não parece, igualmente, que apenas por isso alguém possa ser prejudicado se a lei nenhuma restrição introduz ao caso.
Também não salva a situação o casamento em Abril de 2011 celebrado novamente com a mesma mulher. Na verdade, o que conta para efeito da apreciação da validade do acto administrativo é a factualidade existente à data da sua prática, não a ocorrida posteriormente.
A questão está no facto de o interessado, desde o divórcio ocorrido em 21 de Abril de 2007 até a emissão do ofício de audiência escrita referido, sem ter tomado a iniciativa de notificar o IPIM da alteração do seu estado civil, ter faltado à verdade quando apresentou o requerimento de renovação da autorização de residência, dizendo que era casado, quando já era divorciado, naquilo que pode aparentar ser uma intenção de ludíbrio e, sem dúvida, constitui um indício forte de ilícito criminal (pelo qual, aliás, viria ser punido criminalmente).
Sendo assim, a invocação daquela disposição legal mostra-se inoperante.
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4 – Conclusão
O que se disse parece ser suficiente para a improcedência do recurso contencioso.
Esta tese, de resto, vem já na linha do acórdão deste mesmo tribunal, datado de 11/12/2014, no Proc. nº 624/2013.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso e confirmar o acto administrativo impugnado.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 6 UC.
TSI, 08 de Outubro de 2015
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José Cândido de Pinho Mai Man Ieng
(Fui presente)
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
283/2013 32