Processo nº 707/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão proferido em 29.05.2015 decidiu-se condenar A, arguido com os restantes sinais dos autos, pela prática em autoria material e na forma continuada de um crime de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 e 4, al. b) do C.P.M., na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, assim como a pagar à ofendida e assistente “B – HOTÉIS E ADMINISTRAÇÃO, S.A. (B酒店管理股份有限公司)”, a quantia de MOP$2.200.110,90 acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal a contar da data do referido Acórdão; (cfr., fls. 264 a 273).
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Inconformados com o assim decidido, do mesmo recorreram o arguido A e a assistente “B – HOTÉIS E ADMINISTRAÇÃO, S.A.” (B酒店管理股份有限公司).
O arguido para – em síntese – dizer que não se conforma com a decisão que lhe indeferiu o “pedido de devolução de 7 garrafas de vinho”, considerando excessiva a pena decretada, (que, em sua opinião, devia ser especialmente atenuada nos termos do art. 66°, n.° 2, al. c) e 201° do C.P.M.), pedindo, também, a suspensão da sua execução, e a redução do quantum da indemnização arbitrada à ofendida assistente; (cfr., fls. 291 a 301).
Esta, (a assistente), considerando que a indemnização devia ser no montante de MOP$6.299.700,00, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal a contar da decisão recorrida; (cfr., fls. 326 a 349).
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Respondendo ao recurso do arguido, diz o Ministério Público que o recurso deve ser julgado improcedente; (cfr., fls. 354 a 356).
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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer opinando no sentido da improcedência do recurso do arguido; (cfr., fls. 379 a 381).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 267 a 269-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..
O primeiro, do arguido A, em que pede a revogação do indeferimento do seu pedido de devolução de garrafas de vinho, a redução da pena para outra não superior a 2 anos e 6 meses de prisão, pedindo, também, a suspensão da sua execução, e a redução do quantum da indemnização.
O segundo, da assistente “B – HOTÉIS E ADMINISTRAÇÃO, S.A.”, pedindo a condenação do arguido no pagamento do valor de MOP$6.299.700,00, (valor que considera ser o do seu prejuízo).
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3.1 Vejamos, afigurando-se-nos deste já úteis as seguintes considerações prévias.
Em relações à parte do recurso que incide sobre a “decisão que indeferiu o pedido de devolução das garrafas de vinho”, sendo que a mesma foi proferida em audiência de julgamento, na sessão de 30.04.2015, e verificando-se que a sua impugnação tão só ocorre com o recurso do Acórdão pelo Colectivo do T.J.B. prolatado a final daquela, apresentado em 16.06.2015, impõe-se concluir que a aludida decisão (recorrida) já transitou em julgado, não sendo assim passível de recurso ordinário, como é o caso, mais não se mostrando de consignar sobre a questão.
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3.2 Continuemos, centrando-nos agora na decisão crime e civil ínsita no “Acórdão do T.J.B. ”.
Pois bem, o crime de “abuso de confiança” pelo qual foi o arguido condenado vem previsto no art. 199° do C.P.M. onde se prescreve que:
“1. Quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento penal depende de queixa.
4. Se a coisa referida no n.º 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”.
No caso, e como se referiu, foi o arguido condenado nos termos do n.° 4, al. b) do transcrito comando legal, atento o valor da “coisa” (ilegitimamente apropriada) e objecto do crime.
Verificando-se que com o seu recurso discute precisamente a assistente o “valor do seu prejuízo”, e não deixando de ter este reflexo (directo) na pena a aplicar ao crime em questão e cuja redução vem pelo arguido peticionada, afigura-se-nos de se começar por esta questão.
–– Nesta conformidade, vejamos do “recurso da assistente”.
Ora, o Tribunal deu como provado e considerou o valor de MOP$2.200.110,90, sendo este o valor pela assistente pago na aquisição de um conjunto de 50 garrafas de vinho que o arguido “desviou”.
Discordando, considera a assistente que o assim decidido não se pode manter, e que o valor a ter em conta devia ser o de MOP$6.095.700,00, correspondente ao preço de venda das ditas garrafas de vinho aos seus clientes, aliás, como oportunamente alegou, e, em sua opinião, justificou.
E, nestes termos posta a questão, que dizer?
Pois bem, afigura-se-nos que relevante terá de ser o preço pelo qual as garrafas de vinho em questão estavam a ser postas à venda, e não o valor pelo qual as mesmas foram pela assistente adquiridas, (sabendo-se lá quando, há quanto tempo, em que condições, e, v.g., se com descontos em relação ao seu valor do momento).
Na verdade, e como em tudo na vida, as coisas tem um preço de fabrico, (produção), e outro de venda, que pode variar, (nomeadamente), consoante esta é efectuada pelo próprio produtor ou não, sendo de equacionar e se contabilizar, entre outros, os custos de transporte, armazenamento, etc…
E, assim sendo, razoável não se nos mostra de atender (apenas) ao valor que a assistente despendeu pela aquisição das garrafas de vinho, adequado nos parecendo de considerar o preço pelo qual as mesmas estavam à venda aos seus clientes, até por ser este o que a assistente (efectivamente) deixou de receber em consequência do crime pelo arguido cometido.
Aliás, não se pode esquecer que como estabelecimento de restauração, a venda de bebidas, nas quais se inclui obviamente o vinho, constitui um dos principais objectivos da assistente, natural nos parecendo assim que o prejuízo se contabilize com base no valor que deixou de poder obter com a venda das garrafas em questão.
Outrossim, tal entendimento é o que se nos apresenta como o mais em sintonia com o estatuído no art. 556° e 558°, n.° 1 e 2 do C.C.M., onde se prescreve que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, que, “1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”, e que “2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente é remetida para decisão ulterior”.
Aqui chegados, certo sendo que a assistente peticionou, oportunamente, o montante de MOP$6.095.700,00, mostrando-se-nos de concluir que sobre tal “montante” nada disse o Tribunal a quo, (no sentido de o considerar “provado” ou “não provado”), crendo nós, por considerar o mesmo irrelevante, imperativo é concluir que incorreu no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, a impor o reenvio para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
Justifica-se aqui uma nota.
Não se nega que no seu Acórdão o Colectivo a quo consignou, (genericamente), que “não se provaram outros factos”, admitindo-se entendimento no sentido de se ter por decidida a matéria em questão.
Porém, no caso, não se mostra de acolher tal posição.
É que o preço de “aquisição” e de “venda” não são, entre si, “incompatíveis”, implicando, a prova de um, o resultado contrário em relação ao outro. Isto é, a prova do preço de aquisição das garrafas de vinho não implica que se desse (necessáriamente), como não provado o seu “preço de venda”.
E, assim, suficiente não é a mera afirmação (genérica) de que não se provaram os demais factos, (especialmente quando, como in casu sucede, em sede de fundamentação expõe o Tribunal entendimento no sentido de que os mesmos eram irrelevantes para a solução jurídica que considera como adequada).
–– Outra questão há aqui a resolver, sendo a seguinte.
Diz o arguido que depositou à ordem dos autos HKD$680.000,00 com intenção de demonstrar arrependimento e pagar parte do prejuízo da assistente, e que este montante não foi descontado no “quantum da indemnização” a pagar.
Ora, é uma “falsa questão”.
Uma coisa é o “quantum da indemnização”.
Outra, a “forma do seu pagamento”.
Sendo coisas distintas, nada impede que através do montante depositado nos autos se proceda ao pagamento de uma (parcela da) indemnização arbitrada.
Porém, tal não implica que se proceda ao seu imediato desconto no montante da indemnização.
Dest’arte, não se mostrando existir lapso nesta parte do decidido, e crendo nós que a resolução de tal pretensão pode ser resolvida – até em sede de execução do julgado – após devolução dos presentes autos ao T.J.B., continuemos.
–– Tratadas que nos parecem ter ficado as questões relacionadas com o “pedido civil”, que solução dar à “decisão crime”?
Pois bem, não se sabendo qual o efectivo valor do prejuízo, adequado será apreciar-se da justeza da medida da pena ao arguido aplicada?
Eis o que se nos parece de considerar.
Como se deixou relatado, foi o arguido condenado pela prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 e 4, al. b) do C.P.M., na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
E pretende o arguido a redução – atenuação especial – e suspensão da execução de tal pena.
Ora, antes de mais, temos para nós que o crime em questão é o de “furto” e não o de “abuso de confiança”.
Na verdade, e como provado está, “o arguido era empregado de mesa do restaurante…”, que “geria a adega de vinhos do mesmo restaurante”, e que “no âmbito destas funções, facilmente tinha acesso a todos os vinhos guardados na adega”.
Certo sendo que o arguido se apropriou de 50 garrafas de vinho que se encontravam na dita adega, e atento o prescrito no art. 199°, n.° 1 do C.P.M. – onde se prescreve “Quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” – como dizer-se, (com base na dita factualidade), que as garrafas de vinho tinham sido “entregues ao arguido por título não translativo de propriedade”, ou que o mesmo exercia a “posse” sobre as mesmas?
Como se viu, o arguido, (apenas) “geria” a adega, assegurando a sua manutenção e conservação (dos vinhos aí guardados), não parecendo que se lhe tivesse sido atribuído qualquer direito de “dispor” das ditas garrafas.
Assim, considerando o estatuído no art. 197° (e 198°, n.° 2 al. a)) do C.P.M., afigurando-se-nos que a conduta do arguido integra a prática de 1 crime de “furto” – já que provado está que “com ilegítima intenção de apropriação para si, subtraiu coisa móvel alheia” – e visto que pode (e deve) este T.S.I. proceder oficiosamente a uma requalificação jurídico – penal da factualidade dada como assente, (sem a sua alteração e), sem prejuízo do estatuído no art. 399° do C.P.P.M., e certo sendo que observado está também o contraditório, há que decidir em conformidade, declarando-se o arguido autor material e na forma continuada de 1 crime de “furto”, como supra se referenciou, p. e p. pelos art°s 197° e 198°, n.° 2, al. a) do C.P.M..
E, quid iuris em relação a “pena”?
Ora, o Colectivo a quo considerou o depósito pelo arguido feito nos autos no montante de HKD$680.000,00.
Porém, tão só em termos gerais, nada dizendo em relação ao estatuído no art. 201° do C.P.M., quanto a uma eventual “atenuação especial da pena” por tal preceito permitida e ora peticionada.
Não se olvidando que a pena para o crime de “furto” pelo arguido (efectivamente) cometido é de prisão de 2 a 10 anos, (isto, sem prejuízo do art. 399° do C.P.P.M.), mas desconhecendo-se qual o real valor do prejuízo, e inviável sendo também uma ponderação sobre a relevância do depósito efectivado para efeitos de (eventual) “atenuação (especial ou não) da pena”, deve tal questão ser, oportunamente, apreciada pelo Tribunal que em sede do novo julgamento irá decidir do quantum do efectivo dano à assistente causado.
Decisão
4. Em face do que se deixou exposto, acordam não conhecer do recurso pelo arguido interposto do despacho que indeferiu o seu pedido de devolução de garrafas de vinho à assistente, (porque extemporâneo), julgando-se parcialmente procedente o recurso da assistente, e assim, decretando-se o reenvio dos autos para novo julgamento e decisão nos exactos termos consignados, prejudicado ficando o pedido de redução e suspensão da execução da pena pelo arguido deduzido.
Pelo seu decaimento, pagarão o arguido e a assistente, as respectivas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.
Macau, aos 15 de Outubro de 2015
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (vencido parcialmente na decisão dos recursos do arguido e da assistente, porquanto entendo que: quanto ao montante dos prejuízos patrimoniais sofridos pela assistente, deve ser atendido tão-só o total dos custos da aquisicão dos vinhos em causa pela assistente (i.e., HKD $ 2.136.030,00), já que o arguido foi empregado da assistente e não um “cliente” seu; e no tocante à qualificação jurídico-penal dos factos provados, o arguido praticou sim apenas um crime (“continuado” – não se alterando a configuração do crime continuado, por falta do recurso neste ponto, pela parte acusadora) de abuso da confiança, de valor consideravelmente elevado, e no caso punível com pena especialmente atenuada nos termos do art.º 67.º, n.º 1, alínea b), do CP e do art.º 66.º, n.º 2, al. c), deste código, delito este que deveria ser punido com dois anos e seis meses de prisão efectiva).
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