Processo n.º 817/2015 Data do acórdão: 2015-11-5 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– cúmulo jurídico das penas
– art.o 72.o, n.o 1, do Código Penal
– determinação superveniente da pena do concurso
– penas já cumpridas em processos anteriores
– momento temporal para saber se a pena anterior está extinta
– momento de proferimento da nova condenação
S U M Á R I O
1. Para que seja possível, sob a égide do disposto mormente no art.º 72.º, n.º 1, do Código Penal, a determinação superveniente da pena do concurso, é também sempre necessário que a pena proferida na condenação anterior não se encontre ainda cumprida, prescrita ou extinta, porque só uma pena que ainda não se encontre, por qualquer forma, extinta pode ser integrada no objecto do processo posterior e servir para a formação da pena conjunta.
2. Momento temporal decisivo para saber se a pena anterior já está ou não extinta é aquele em que a nova condenação é proferida e até ao qual ainda se tornaria possível condenar numa pena conjunta.
3. No caso dos autos, como antes do dia de proferimento da condenação no subjacente processo (“processo posterior”), todas as penas de prisão impostas noutros processos condenatórios anteriores (“processos anteriores”) já foram cumpridas, não se pode, à luz do art.o 72.o, n.o 1, do Código Penal, operar o cúmulo jurídico das penas aplicadas, e actualmente por cumprir, no dito “processo posterior” com as penas impostas, mas já cumpridas todas elas, nos referidos “processos anteriores”, mesmo que os factos delinquentes em causa no “processo posterior” tenham sido praticados antes da data de proferimento, em primeira vez, de qualquer uma das decisões condenatórias nos “processos anteriores”.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 817/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguido recorrido: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido em 16 de Julho de 2015 a fls. 5817 a 5818v do ora subjacente Processo Comum Colectivo n.º CR3-08-0344-PCC do Tribunal Judicial de Base (TJB) que, a pedido formulado em 30 de Abril de 2015 pelo respectivo arguido A, aí já melhor identificado, acabou por operar o cúmulo jurídico, nos citados termos do art.os 71.º, n.º 1 e 72.º, n.os 1 e 2, do Código Penal (CP), das penas de prisão por que este sujeito ficou condenado por decisão condenatória completada em 10 de Fevereiro de 2015 e transitada em julgado no Primeiro de Abril de 2015 neste processo, com as penas de prisão pelas quais tinha sido condenado em outros quatro processos penais anteriores, penas anteriores essas entretanto já totalmente cumpridas antes, veio o Ministério Público recorrer dessa decisão judicial para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a revogação da mesma, devido à alegada violação do art.º 72.º, n.os 1 e 2, conjugado com o art.º 71.º, ambos do CP, precisamente, em suma, e na sua essência, por ter aí sido feito o cúmulo jurídico de algumas penas já totalmente cumpridas (cfr. a motivação do recurso a fls. 5822 a 5826 dos presentes autos corrrespondentes).
Ao recurso respondeu o arguido no sentido de manutenção do julgado (cfr. a resposta de fls. 5828 a 5831 dos autos).
Subido o recurso, opinou o Digno Procurador-Adjunto, em sede de vista, pela procedência do recurso (cfr. o parecer de fl. 5875 dos autos).
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro juiz-adjunto nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do Código de Processo Penal.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se, com pertinência à decisão, que:
Antes do dia 10 de Fevereiro de 2015 em que se completou a decisão condenatória penal do arguido ora recorrido A no subjacente Processo n.º CR3-08-0344-PCC do TJB (cfr. especialmente o texto do respectivo acórdão terminado a fl. 5678 dos presentes autos correspondentes) (decisão condenatória essa ulteriormente transitada em julgado no Primeiro de Abril de 2015 – cfr. a cota do trânsito em julgado lançada a fl. 5718 dos mesmos autos), todas as penas de prisão por que o mesmo arguido tinha ficado condenado em quatro processos anteriores do TJB com os n.os CR2-09-0259-PCC, CR1-10-0282-PCS, CR4-08-0285-PCS e CR4-10-0072-PCC já foram cumpridas.
O Tribunal ora recorrido, sentenciador no subjacente Processo n.º CR3-08-0344-PCC do TJB, decidiu, em 16 de Julho de 2015, proceder, a pedido do mesmo arguido em 30 de Abril de 2015, ao cúmulo jurídico, nos citados termos sobretudo do art.º 72.º, n.os 1 e 2, do CP, das penas de prisão por que este sujeito ficou aí condenado, com todas as penas de prisão impostas nos referidos quatro processos anteriores.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O art.º 72.º do CP determina que:
“1. Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se provar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior.
2. O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado.” (com sublinhado só posto agora).
O Ministério Público ora recorrente entendeu, na sua essência, que foi violado, pela decisão judicial impugnada, o disposto nos art.º 72.º, n.os 1 e 2, e art.º 71.º, ambos do CP, precisamente por ter aí sido feito o cúmulo jurídico das penas anteriores já totalmente cumpridas.
Procede esta objecção do Ministério Público, porquanto como antes do dia 10 de Fevereiro de 2015 em que se completou a decisão condenatória penal do arguido ora recorrido no subjacente Processo n.º CR3-08-0344-PCC, todas as penas de prisão por que o mesmo arguido tinha ficado condenado nos acima identificados quatro processos anteriores já foram cumpridas, é inviável, independentemente da demais indagação por desnecessária, o pretendido cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente, dessas penas anteriores com as por que vinha condenado esse arguido no ora subjacente processo.
Isto tudo porque para que seja legalmente possível, sob a égide do disposto mormente no art.º 72.º, n.º 1, do CP, a determinação superveniente da pena do concurso, é também sempre necessário <<[…] que a pena proferida na condenação anterior se não encontre ainda cumprida, prescrita ou extinta: só uma pena que ainda se não encontre, por qualquer forma, extinta pode ser integrada no objecto do processo posterior e servir para a formação da pena conjunta. Momento temporal decisivo para saber se a pena anterior já está ou não extinta é […] aquele em que a nova condenação é proferida e até ao qual ainda se tornaria possível condenar numa pena conjunta>> (neste sentido, e inclusivamente a propósito do preceito legal materialmente homólogo ao disposto no n.º 1 do art.º 72.º do CP vigente em Macau, cfr. os ensinamentos doutrinários vertidos nas páginas 293 a 294 do livro Direito Penal Português Parte Geral II As Consequências Jurídicas do Crime, de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Aequitas e Editorial Notícias, 1993).
Ou seja, outra vez concretamente falando no caso do arguido recorrido, como antes do dia 10 de Fevereiro de 2015 em que a condenação foi proferida no subjacente Processo n.º CR3-08-0344-PCC (considerado como “processo posterior”), todas as penas de prisão impostas nos mencionados quatro processos condenatórios anteriores (considerados como “processos anteriores”) já se encontravam cumpridas, não pôde ter o Tribunal Colectivo a quo operado o cúmulo jurídico das penas aplicadas (e actualmente por cumprir) no dito “processo posterior” com as penas impostas, mas já cumpridas todas elas, nos referidos “processos anteriores”, mesmo que os factos delinquentes em causa no “processo posterior” tenham sido praticados antes da data de proferimento, em primeira vez, de qualquer uma das decisões condenatórias nos mesmos “processos anteriores”.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, revogando o acórdão recorrido.
Custas do presente recurso pelo arguido recorrido A, com quatro UC de taxa de justiça e mil e oitocentas patacas de honorários ao seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Macau, 5 de Novembro de 2015.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo (Vencido. Segue declaração)
(Relator do processo)
Processo nº 817/2015
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Com o douto Acórdão que antecede, concedeu-se provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto, revogando-se o Acórdão de 16.05.2015 pelo Colectivo do T.J.B. prolatado que efectuou o cúmulo jurídico das penas ao arguido/recorrido aplicadas em cinco processos aí referenciados.
Outra sendo a solução que considero adequada à questão colocada, cumpre-me expor o porque da minha divergência.
Pois bem, antes de mais, vale a pena aqui transcrever a decisão recorrida.
Tem o teor seguinte:
“1. Relatório
O arguido A foi condenado a prática dos crimes seguintes:
1.1 No processo CR2-09-0259-PCC, o Tribunal colectivo condenou o arguido A no dia 16/04/2010, a prática de 1 crime de roubo p.p.p. pelo artº 204º, nº 2, al. b), em conjugação com o artº 198º, nº 2, al. f) do CP, a pena de 4 anos de prisão efectiva.
1.2 No processo CR1-10-0282-PCS, o Tribunal colectivo condenou o arguido A, no dia 26/05/2011, a prática de 1 crime de furto, a pena de 7 meses de prisão efectiva.
1.3 No processo CR4-08-0285-PCS, o Tribunal colectivo condenou o arguido A, no dia 11/02/2010, a prática de 1 crime de tráfico de quantidade diminuta p.p.p. pelo artº 9º, nº 1, da Lei nº 5/91/M de 28 de Janeiro, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão efectiva e multa no valor de MOP$5,000,00, na falta do pagamento ou a não substituição por trabalho tem de cumprir 33 dias de prisão.
1.4 No processo CR4-08-0072-PCC, o Tribunal colectivo condenou o arguido A, no dia 28/01/2011, a prática de 1 crime de furto qualificado, a pena de 1 ano de prisão efectiva.
1.5 No processo CR3-08-0344-PCC, o Tribunal colectivo condenou o arguido A, no dia 09/05/2014, a prática de 2 crimes de ofensas graves à integridade física ou saúde da pessoa p.p.p. pelo artº139º, nº 1, al. b) em conjugação com o artº 138º, al. d) do CP, que por sua vez causou a morte da vítima, e de 1 crime de ofensas graves à integridade física ou saúde da pessoa p.p.p. artº 138º, al. d) do CP, respectivamente a pena de 7 anos e 6 meses, 7 anos e 6 meses e 4 anos e 6 meses de prisão efectiva, em cúmulo, a pena única de 10 de prisão efectiva.
O arguido trabalhava como motorista, auferia o salário no montante de MOP$10,000.00.
Tem como habilitações a 2ª classe do ensino primário, não tem ninguém a seu cargo.
Pelo exposto, nos termos do artº 71º, nº1 e 72º, nº 1 e 2 do CP, tem de proceder o cúmulo das penas, sendo o presente Colectivo, o Tribunal que proferiu o último acórdão, pelo que é competente fazer o cúmulo das penas aplicadas aos vários crimes.
2. Cúmulo das penas
2.1 O diploma legal do cúmulo das penas
Ao abrigo do artº 71º, nº 2 do CP: “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
2.2 A moldura penal do cúmulo da pena
Conforme o artigo supracitado, sendo o cúmulo como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, 26 anos e 7 meses e multa no valor de MOP5,000.00, na falta do pagamento ou a não substituição por trabalho tem de cumprir 33 dias de prisão.
E como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, 7 anos e 6 meses e multa no valor de MOP5,000.00, na falta do pagamento ou a não substituição por trabalho tem de cumprir 33 dias de prisão.
2.3 Medida concreta da pena depois do cúmulo
Ao abrigo do artº 71º, nº 1 do CP: “…é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
Pelo exposto, feito o cúmulo das penas, condena o arguido a pena única de 14 anos de prisão efectiva.
3. Decisão:
Nos termos expostos, o presente Colectivo decidiu fazer o cúmulo das penas que por sua vez:
Condena o arguido A, a pena única de 14 anos de prisão efectiva.
Mais condena o arguido nas custas judiciais e demais encargos do processo fixada em 2UC.
Fixam-se honorários ao defensor do arguido no montante de MOP$1,000.00.
Boletim do CRC à DSI.
Comunique o proc. nº CR4-10-0072-PCC para fins tidos por conveniente.
(…)”; (cfr., fls. 5817 a 5818-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
Inconformado com o assim decidido, era o Exmo. Magistrado do Ministério Público de opinião que a transcrita decisão devia ser objecto de revogação porque nela se efectuou o cúmulo jurídico, englobando-se penas já extintas, em colisão com o estatuído nos art. 71° e 72° do C.P.M.; (cfr., fls. 5822 a 5826).
Sendo de notar que nos preceitos em questão se consagram as regras da “punição do concurso de crimes”, (art. 71°), e da solução a adoptar no caso do seu “conhecimento superveniente” (art. 72°), vejamos.
Sob a epígrafe “regras da punição do concurso”, preceitua o art. 71° que:
“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”.
Por sua vez, (e tratando da matéria do “conhecimento superveniente do concurso”), estatui-se no art. 72° que:
“1. Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se provar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior.
2. O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado.
3. As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior”.
Como nota L. Henriques, (in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, vol. II, pág. 257 e segs), de entre as várias soluções possíveis para uma situação de “concurso de crimes”, adoptou o legislador local o “sistema da pena conjunta ou do cúmulo jurídico”, onde – diversamente do que sucede, v.g., com o “sistema de acumulação material”, (como, v.g., sucede no Brazil), em que a pena única resulta do somatório de todas as penas encontradas para cada uma das infracções que entram no concurso – se “leva em conta a totalidade dos factos integrantes dos diversos crimes em presença e as respectivas penas, penas essas que passam assim a fundamento da pena do concurso, construindo-se a partir delas e com elas uma pena única, que assentará não apenas nos factos integradores dos diversos crimes concorrentes mas ainda na personalidade do agente e seu modo de vida”, (cfr., art. 71°, n.° 1) tendo esta “pena única” – os limites estatuídos no n.° 2, isto é – como “limite máximo”, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (…), e como “limite mínimo”, a pena mais elevada das concretamente aplicadas; (sobre o sistema da pena conjunta e cúmulo jurídico, vd., tb., F. Dias in “Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 406 e segs).
Dito isto, e centrando-nos agora nos “pressupostos” para efeitos de aplicação de tal “pena única”, cabe dizer que, (atento o prescrito no n.° 1 do aludido art. 71°), tem-se entendido que para tal se exige:
“- a prática de uma pluralidade de crimes pelo mesmo arguido, formando um concurso efectivo de infracções, seja ele concurso real, seja concurso ideal (homogéneo ou heterogéneo); e,
- que esses crimes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, ou seja: a decisão que primeiro transitar em julgado fica a ser um marco intransponível para se considerar a anterioridade necessária à existência de um concurso de crimes.
Se o crime ou crimes forem praticados depois do trânsito, já a pluralidade ou concurso de crimes não dá lugar à aplicação de uma única pena, mas sim a penas ou cúmulos sucessivos, eventualmente considerando-se a agravante da reincidência, se se verificarem os respectivos pressupostos”; (cfr., A. Rodrigues da Costa, in “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, estudo publicado na Revista “Julgar”, n.° 21, pág. 171 e segs).
Por sua vez, no igualmente atrás transcrito art. 72°, regula-se a matéria do “conhecimento superveniente do concurso”, tudo se passando “como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando-se um juízo censório único, projectando-o retroactivamente, surgindo a pena conjunta como a «reposição da situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida em que os foi praticando»”; (cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 22.03.2006, Proc. n.° 364/06, in “www.dgsi.pt”).
Voltando a acompanhar L. Henriques (in ob. cit.), “Nos casos do art.° 71.° «o conhecimento da pluralidade de crimes é actual, contemporâneo do julgamento dos crimes em concurso», sendo que essa pluralidade «emerge da própria descrição/enumeração dos factos provados…, emerge da fundamentação de facto» constituíndo a pena conjunta uma «pena de síntese…, feita ao momento, ao vivo e em directo, em sequência do julgamento».
Já nos casos do art.° 72.° trata-se de «uma elaboração de cúmulo tardia, efectuada ao retardador, subsequente, correspondendo à punição de uma situação de pluralidade de infracções que se encontram em concurso real e de condenações que se sucedam no desconhecimento uma das outras».
Situações de concurso superveniente ou retardado são fáceis de acontecer.
Com efeito, «devido a várias causas, nomeadamente insuficiência do registo criminal, expedientes dos arguidos, simplicidade dos processos sumários», e de uma forma recorrente «em tribunais de grande movimento», podem ficar para trás, no momento da prolacção da antecedente decisão, crimes cometidos pelo agente anteriormente e porventura já julgados ou ainda em investigação.
Ora foi exactamente para impedir «situações chocantes de cúmulos materiais muito elevados» que acudiu o legislador com esta regulamentação, estendendo o regime comum gizado no art.° 71.° para a formação da pena do concurso a casos que escaparam à pena anteriormente estabelecida (cfr., v.g., o Ac. do STJ de Portugal, de 18.04.2007. Proc.° n.° 1032/07-3.ª).
Em suma: a configuração de uma situação de superveniência depende de ter havido antes uma decisão condenatória que não englobou, por desconhecimento, todos os crimes cometidos pelo agente até essa altura.
Como assim, o regime deste art.° 72.° vem exactamente repôr a situação no seu devido lugar, isto é, permitir a “repescagem” do crime ou crimes que ficaram de fora na anterior decisão, reunindo-os agora, todos, na nova decisão, integrando numa pena única a pena ou penas parcelares anteriores e que ainda se não encontrem cumpridas, prescritas ou extintas”.
“In casu”, e, como observa o Exmo. Magistrado recorrente, as penas ao arguido dos autos aplicadas nos primeiros 4 processos referidos na decisão ora recorrida – cfr., ponto “1.1 a 1.4”, a fls. 1 e 2 desta declaração – e que foram englobadas no cúmulo jurídico operado com o Acórdão recorrido encontram-se já (totalmente) “extintas”, (pelo seu cumprimento), considerando-se assim que o decidido colide com o estatuído no art. 72°, n.° 1, que exclui, (claramente), do cúmulo (jurídico), as penas “cumpridas, prescritas ou extintas”.
Ora, da reflexão que nos foi possível efectuar, e sem prejuízo do muito respeito por entendimento em sentido diverso, outra nos parece que deva ser a solução.
Vejamos.
Como se deixou consignado, em sede da “punição do concurso de crimes”, adoptou o legislador de Macau o “sistema da pena conjunta e cúmulo jurídico”, rejeitando o da “acumulação material”.
Como razões para tal opção ter-se-à (certamente) considerado que o sistema de “acumulação material” potenciava a aplicação de “penas demasiado longas”, (em certas situações, eventualmente, “perpétuas”, expressamente proibidas pelo art. 39°, n.° 1 do C.P.M.), e, desta forma, nem sempre em harmonia com o “princípio da culpa” e da “finalidade preventiva” visada pela aplicação das penas; (cfr., art. 40°, n.° 1 do C.P.M. onde se prescreve que “A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”).
Abordando idêntica questão, observa F. Dias que a acumulação material impulsiona a ultrapassagem dos limites – intransponíveis – da “culpa do facto”, distorcendo os “efeitos individuais de cada pena”; (cfr., “Direito Penal Português”, Parte Geral II, pág. 277 e segs).
Sendo esta – a da “pena única” resultante do “cúmulo jurídico” – a solução que se encontrou e entendeu como mais razoável para a “punição do concurso de crimes”, considerou-se também que era (devia ser) a mesma igualmente aplicável na situação de “conhecimento superveniente do concurso de crimes”.
Razões (evidentes) de “justiça material” – e assim, da adequação, proporcionalidade e necessidade da pena – e de respeito pelo “principio da igualdade” subjazem a tal extensão ao “conhecimento superveniente do concurso”, pois que (manifestamente) injusto seria não se operar o cúmulo jurídico das penas, (tendo então o arguido que cumprir “penas sucessivas”), tão só por tardio conhecimento da relação de concurso dos crimes que deram lugar à sua aplicação.
E, então, cabe aqui reflectir: porque excluir de tal cúmulo jurídico (superveniente) as penas já “extintas” (por cumprimento) – sendo apenas estas que estão em causa nestes autos – se, porventura, a constatação que os crimes que lhes deram origem (também) se encontram em situação de concurso, e que, oportunamente, apenas por desconhecimento, não se operou o seu cúmulo jurídico, (se calhar, até por motivos alheios ao arguido)?
Motivos (válidos) existem ou existirão para se afastar as preocupações que levaram o legislador a adoptar o sistema do “cúmulo jurídico”, (acabando-se por cair desta forma no sistema da “acumulação material” e de “penas sucessivas” que foi rejeitado)?
Não ficaria assim – fatal e especialmente – afectado o “princípio da igualdade”, se em situação de dois co-arguidos, com (exactamente) as mesmas condenações em vários processos, se vier a decidir não operar o cúmulo jurídico superveniente em relação a um, (apenas) porque este, (quiçá), entregou-se para cumprimento das penas passíveis de cúmulo, e assim expiou-as, encontrando-se a maioria delas já extintas?
Dir-se-à, porventura, que (tal foi a opção legislativa face à redacção do art. 72°, n.° 1 do C.P.M., e que, seja como for), a “pena extinta”, (ainda que por cumprimento), deixou de ter qualquer “relevância jurídica”, tudo se passando como se não existisse, tratando-se de um acontecimento jurídico completo e findo, que já não tem dignidade para ser considerado…
Admitindo-se que sobre a questão outro(s) entendimento(s) possa(m) existir, (e que, como é óbvio, se respeita(m)), tal argumento não se nos mostra convincente.
Não se pode olvidar que se está perante um “cumprimento autónomo” (sucessivo) de pena(s) (parcelares) – apenas e tão só – por desconhecimento do facto de que ela(s), em boa verdade, devia(m) englobar uma “pena única” (resultante do seu cúmulo jurídico).
Dizer-se (mesmo assim) que em virtude de tal “cumprimento” já não tem relevância a questão do seu “cúmulo” quando (ainda) se está a tempo de se corrigir o lapso cometido, não se nos apresenta adequado, (especialmente, em sede de um processo com a natureza – penal – dos presentes autos).
De facto, se verificados estão, (e já estavam), os pressupostos para o cúmulo jurídico das penas, e este não foi oportunamente efectuado (apenas) por desconhecimento da sua existência, (da verificação dos seus pressupostos), então o que há a fazer é rectificar-se o lapso cometido, repondo-se a necessária e natural justiça à situação.
Esta a “solução” que se nos apresenta como adequada.
E só assim não deveria de suceder se todas as penas passíveis de cúmulo jurídico estivessem (todas elas) extintas, (por cumprimento).
Aí, (sim), nada poderia fazer “recuar o tempo” e reparar o erro cometido, pois que inviável era repor-se seja o que for: as penas estavam expiadas, e só o desconhecimento, esquecimento, compreensão de quem as expiou (ou eventual indemnização) podia apresentar-se como solução. (Note-se, outrossim, que a questão de se saber se em sede de cúmulo jurídico superveniente se devem ou podem englobar “penas já extintas” – embora, tanto quanto julgamos saber, nova para os Tribunais locais – foi já objecto de abundante debate na doutrina e jurisprudência portuguesa, tendo levado à alteração de idêntico preceito legal ao do C.P.M., dele se retirando a referência à pena “cumprida, prescrita ou extinta”; cfr., art. 78°, e a sua reforma operada em 2007, pela Lei n.° 59/97 de 04.09, podendo-se sobre o tema ver, v.g., o Parecer do Ministério Público sobre o “Cúmulo Jurídico de Penas Cumpridas” in Revista do Ministério Público, n.° 43, pág. 131 e segs., o estudo de Paulo Dá Mesquita, “O Concurso de Penas no Código Penal”, na mesma Revista do Ministério Público, n.° 63, pág. 21 e segs, posteriormente, em 1997, com mais desenvolvimentos, publicado pela Coimbra Editora, e João Costa in “Da Superação do Regime Actual do Conhecimento Superveniente do Concurso”, Almedina, 2014, assim como o Ac. da Rel. de Lisboa de 15.06.84 in C.J. IX, tomo 3, pág. 193, e os do S.T.J. de 26.02.86, in B.M.J. 354°-345; de 02.10.86, in B.M.J. 360°-340; de 19.11.86, in B.M.J. 361°-278; de 25.10.1990, in B.M.J. 400°-331; de 30.01.91, in B.M.J. 403°-203; de 14.11.96, in B.M.J. 461°-186; de 24.05.2000, in C.J.S.T.J., tomo 2, pág. 204 e de 30.05.2001, in C.J.S.T.J., tomo 2, pág. 210).
Mostrando-se-nos assim de considerar que o verdadeiro alcançe do art. 72°, n.° 1 quanto ao cúmulo jurídico superveniente é o que permite cumular jurídicamente diversas penas desde que “uma delas” não esteja extinta, (cumprida), (sendo este o seu sentido útil, pois que, necessáriamente, mais consentâneo com o princípio de igualdade e justiça material), adequada não me parece a decisão ínsita no douto Acórdão que antecede.
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Aqui chegados, e embora se nos mostre de concluir que as penas extintas (por cumprimento) devem e podem ser englobadas em sede de cúmulo jurídico superveniente, (e foi – apenas – esta a questão colocada no presente recurso), para (eventual) confirmação da decisão recorrida importa ainda a verificação dos requisitos legais para tal operação.
Constata-se porém, que a decisão recorrida não menciona a “data da prática dos factos criminosos” que levaram às condenações nas penas que foram integradas no cúmulo jurídico que operou.
Certo sendo que arguida não foi a indicada “omissão”, – que constitui nulidade por “falta de fundamentação” e que, por assim ser, sanada está; cfr., v.g., o recente Ac. do T.R.C. de 14.10.2015, Proc. n.° 197/14 – cabe notar que da análise aos autos se verifica que a “data da prática dos factos” é a seguinte, (na mesma ordem indicada na decisão recorrida): 08.07.2009, 26.04.2009, 10.08.2005, 18.03.2006 e Setembro de 1998.
E verificando-se que a primeira condenação que o arguido viu contra si proferida ocorreu em 11.02.2010, no (3°) processo n.° CR4-08-0285-PCS, verificados estão os pressupostos para que, como sucedeu, se tivesse operado o cúmulo das penas em questão: com efeito, a prática dos factos em todos os processos é anterior a tal data respeitante à 1ª condenação.
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Por fim, um último aspecto importa referir.
É o seguinte:
Com o decidido fixou-se ao arguido a “pena única de 14 anos de prisão”.
Há, certamente, equívoco.
O facto de as penas extintas por cumprimento poderem englobar o cúmulo jurídico não implica que o arguido tenha que voltar a expiar uma (ainda que reduzida) parcela das mesmas.
Na verdade, o arguido tinha (estava) a cumprir uma pena única de 10 anos de prisão no processo n.° CR4-08-0072-PCC, a única que não se encontrava extinta (por cumprimento).
E, como se vê, com o decidido, e em resultado do cúmulo jurídico operado, passou a ficar com uma nova “pena única de 14 anos”.
Ainda que pelo arguido não tenha sido apresentado recurso a impugnar tal nova pena única, (e certo sendo que tem este T.S.I. que respeitar o “princípio da proibição da reformatio in pejus”, previsto no art. 399° do C.P.P.M., que não está em causa), lícita é a “reformatio in mellius”.
No caso, até por uma questão de evidente justiça, pois que adequado não é um novo cumprimento de (parcelas de) penas já expiadas.
E, nesta conformidade, haveria pois que se alterar o decidido, já que de tal pena única de 14 anos se devia ter descontado as penas já extintas aplicadas nos 4 processos referidos em “l.1 a 1.4”, sob pena de o cúmulo jurídico superveniente efectuado ser até prejudicial ao arguido.
Procedendo-se a tal desconto, (14 anos – 4 anos – 7 meses – 1 ano e 6 meses e 33 dias – 1 ano), verifica-se que a pena única que o arguido devia cumprir é de 6 anos 9 meses e 27 dias de prisão.
Macau, aos 05 de Novembro de 2015
José Maria Dias Azedo
Processo n.º 817/2015 Pág. 8/19