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Processo nº 810/2015 Data: 19.11.2015
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Recurso.
Reenvio.
Novo julgamento (Âmbito).
Caso julgado.
Nulidade.



SUMÁRIO

  Em sede de novo julgamento efectuado na sequência de reenvio e em que se delimitou o âmbito deste, não pode o Tribunal a quo exceder-se na sua decisão, (re)apreciando matéria confirmada com o acórdão que decreta o reenvio, incorrendo em nulidade por violação de caso julgado (formal) se o fizer.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 810/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), assistente com os restantes sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão pelo Colectivo do T.J.B. proferido que, em sede de novo julgamento efectuado após reenvio, absolveu o arguido C (C) da imputada prática de 1 crime de “burla (agravada)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., assim como do pedido de indemnização civil enxertado nos autos.

Em síntese, considera que o Acórdão recorrido “violou o caso julgado formal”, padecendo também de “erro notório na apreciação da prova”, e “erro de direito por errada qualificação jurídico-penal” e “indevida aplicação de direito”; (cfr., fls. 1819 a 1842 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cabe decidir.

Fundamentação

2. Vem o assistente dos autos recorrer do (2°) Acórdão pelo Colectivo do T.J.B. proferido que absolveu o arguido nos termos atrás aludidos, imputando-lhe os vícios que igualmente se deixaram explicitados.

Da análise e reflexão que sobre as questões colocadas nos foi possível efectuar, cremos que tem o recorrente razão quanto à alegada “violação do caso julgado”, (o que, prejudica a apreciação dos restantes vícios à decisão recorrida assacados).

Sem demoras, passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.

Para a boa compreensão dos contornos da questão, mostra-se útil aqui expor o processado que segue:

1) por Acórdão do T.J.B. de 26.07.2013 (1° Acórdão, a fls. 1562 a 1569-v), decidiu-se condenar o arguido dos autos como autor de 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelos art°s 244°, n.° 1, al. a) e 245° do C.P.M., na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, na condição de pagar à R.A.E.M. MOP$30.000,00 no prazo de 60 dias, absolvendo-se o mesmo arguido da imputada prática de 1 crime de “burla (agravada)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do mesmo C.P.M., remetendo-se a apreciação do pedido civil enxertado para acção própria;

2) em sede da apreciação dos recursos do arguido e assistente então trazidos a este T.S.I., por Acórdão de 17.07.2014, (Proc. n.° 681/2013, a fls. 1720 a 1730-v), julgou-se improcedente o recurso do arguido – que contestava a sua condenação – e concedeu-se parcial provimento ao recurso do assistente, tendo-se decidido confirmar a condenação do arguido como autor da prática de 1 crime de “falsificação de documentos”, e decretando-se o reenvio dos autos para novo julgamento quanto ao (absolvido) crime de “burla” e pedido de indemnização civil.

Considerou-se neste aresto que a matéria de facto em que assentava a condenação do arguido quanto ao crime de “falsificação de documentos” não merecia censura, mas que o Acórdão recorrido padecia de “erro notório na apreciação da prova”, e daí, o reenvio para novo julgamento, consignando-se, expressamente, que em sede do novo julgamento se deveria tão só voltar a julgar a “matéria de facto não provada” respeitante ao crime de “burla”, respeitando-se a matéria de facto considerada provada assim como a não provada da contestação pelo arguido apresentada;

3) efectuado novo julgamento, em 19.06.2015, profere o (novo) Colectivo do T.J.B. o (2°) Acórdão ora recorrido, (a fls. 1805 a 1815-v), com o qual, como se referiu, se decidiu absolver o arguido do imputado crime de “burla” e enxerto civil, (mantendo-se a condenação pelo crime de “falsificação de documentos” – que aliás, está transitada em julgado – embora sem expressa pronúncia neste sentido).

Neste (2°) Acórdão, suprimiu-se matéria de facto já dada como provada (no anterior Acórdão do T.J.B. de 26.07.2013 e pelo Acórdão deste T.S.I. de 17.07.2014 confirmada), introduziu-se, como provada, matéria nova, e alterou-se a matéria de facto dada como não provada da contestação do arguido, (que, igualmente tinha sido confirmada pelo referido veredicto deste T.S.I.).

E, perante o que se deixou resenhado, cremos que só uma pode ser a solução.

De facto, e como se disse, houve patente “violação do caso julgado” (formal) por parte do T.J.B. ao decidir suprimir “matéria de facto dada como provada” assim como ao alterar a “matéria de facto não provada da contestação” que, pelo Acórdão deste T.S.I. de 17.07.2014 tinha (já) sido confirmada, e, assim, excluída da nova decisão a proferir após o reenvio e novo julgamento.

Não se nega que o C.P.P.M. não regula expressamente o “instituto do caso julgado”, (como sucedia com o anterior C.P.P. de 1929 nos seus art°s 148°, 149°, 153° e 446°). Mas a falta de norma expressa, não implica intenção de não o consagrar, tanto mais que se trata de um instituto fundamental do “direito de defesa” e da “paz social”.

Seja como for, o instituto em questão não deixa de resultar desde logo do princípio fundamental de direito penal “ne bis in idem”, plasmado no art. 14°, n.° 7 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; (cfr., art. 40° da L.B.R.A.E.M., podendo-se ver sobre o tema o Ac. da Rel. de Coimbra de 14.01.2004, Proc. n.° 3501/03 e Henrique Salinas, in “Do Caso Julgado à Definitividade da Sentença Penal”, in “www.fd.lisboa.ucp.pt”).

Pronunciando-se sobre o caso julgado consideravam C. de Ferreira e E. Correia que o fundamento central do mesmo radicava numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito, visando-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, evitando-se o (risco) de decisões contraditórias, constituindo uma «exceptio judicati» impeditiva da renovação da apreciação judicial da mesma questão ou factualidade; (cfr., C. Ferreira in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pág. 36 e segs. e S.J., T VII, n.° 35, pág. 302 e E. Correia in “Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, pág. 7 e segs.).

Por sua vez, e como (sobre situação próxima à dos presentes autos) considerou o S.T.J. no seu Acórdão de 20.10.2010, Proc. n.° 3554/02:

“Na verdade, o caso julgado enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. (…)
Com os conceitos de caso julgado formal e material descrevem-se os diferentes efeitos da sentença. Com o conceito de caso julgado formal refere-se a inimpugnabilidade de um decisão no âmbito do mesmo processo (efeito conclusivo) e converge com o efeito da exequibilidade da sentença (efeito executivo). Por seu turno, o caso julgado material tem por efeito que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento. O direito de perseguir criminalmente o facto ilícito está esgotado.
No que concerne à extensão do caso julgado pode distinguir-se entre caso julgado em sentido absoluto e relativo: no primeiro caso a decisão não pode ser impugnada em nenhuma das suas partes. O caso julgado relativo é objectivamente relativo quando só uma parte da decisão se fixou e será subjectivamente relativo quando só pode ser impugnada por um dos sujeitos processuais.
Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati). O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo –, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.
A decisão definitiva sobre a materialidade de facto que consta da anterior decisão do STJ constitui caso julgado formal nos sobreditos termos impedindo qualquer nova apreciação. Está precludida qualquer apreciação da mesma matéria que se impõe agora como definitiva”; (in “www.dgsi.pt”, podendo-se sobre a questão ver também A. dos Reis in “C.P.C. Anotado”, Vol. III, pág.92 e segs., e o Ac. do T.U.I. de 16.02.2004, Proc. n.° 3/2004).

Compreende-se o raciocínio do Colectivo do T.J.B. que, após novo julgamento, terá pretendido evitar (eventuais) incongruências, “acomodando” a decisão que, em sua perspectiva lhe pareceu a mais adequada.

Porém, o certo é que não o podia fazer.

Com efeito, face ao decidido no Acórdão deste T.S.I. de 17.07.2014, e, em especial, ao expressamente aí referido quanto ao âmbito do reenvio e novo julgamento, deste afastando também explicitamente a mencionada “matéria de facto provada e não provada constante da contestação”, evidente é que vedado estava ao Colectivo do T.J.B. uma “nova decisão” sobre esta mesma matéria.

Admite-se igualmente que se possa considerar que outra (poderia ou) deveria der sido a solução encontrada no Acórdão deste T.S.I. de 17.07.2014.

Contudo, não é este o momento nem o local processualmente próprio para tal questão.

O que aí se decidiu, (por inexistência de qualquer vicissitude que lhe retirasse definitividade), consolidou-se na ordem jurídica, formando o chamado “caso julgado”.

E, como sabido é, a sua violação acarreta a nulidade da decisão (desconforme), que não pode deixar de a afectar na sua totalidade, por a contaminar em toda a sua extensão, tornando, desta forma, prejudicada a apreciação das restantes questões pelo recorrente colocadas no seu recurso.

Decisão

3. Em face do que se deixou explanado, acordam conceder provimento ao recurso do assistente, declarando-se a nulidade do Acórdão recorrido por violação do caso julgado formal, voltando os autos ao T.J.B. para, após os procedimentos entendidos adequados, se proferir nova decisão em conformidade com o decidido no Acórdão deste T.S.I. de 17.07.2014.

Custas pelo arguido recorrido, com taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.

Macau, aos 19 de Novembro de 2015

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong

(Segundo Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira
Proc. 810/2015 Pág. 12

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