Proc. nº 563/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 12 de Novembro de 2015
Descritores:
-Sucessão de leis no tempo
-Leis processuais
-Título executivo
SUMÁRIO:
I. No quadro da sucessão de leis processuais no tempo, vigora o princípio geral da aplicação imediata da lei processual nova aos processos que tenham sido instaurados já sob a égide desta, tal como emerge do art. 2º, nº2, do DL nº 55/99/M, de 8 de Outubro.
II. Se um determinado documento particular assinado pelo devedor, para ter força executiva sob o domínio do CPC anterior, deveria ter a assinatura daquele reconhecida notarialmente (art. 51º, nº1), já passou a estar dotado dessa força com o início de vigência do CPC aprovado pelo DL nº 55/99/M mesmo sem esse reconhecimento.
III. Serve de título executivo um tal documento que impulsiona o credor a uma acção executiva instaurada contra o devedor sob o império do novo CPC.
Proc. nº 563/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, executado no processo CV3-12-0091-CEO do TJB na execução intentada por B, deduziu os Embargos, pedindo a extinção da execução.
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A embargada deduziu contestação, que concluiu formulando o pedido de condenação do executado por litigância de má fé e o prosseguimento da execução.
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Na oportunidade, foi proferida sentença, que julgou improcedentes os embargos, procedente a oposição à liquidação de juros (extintos ainda os juros anteriores a 28/10/2007 e indeferir a execução nessa parte), improcedentes os pedidos de condenação da embargante e da embargada por litigância de má fé.
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O embargante inconformado com tal sentença dela interpõe agora recurso jurisdicional, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
«1. O tribunal a quo disse na parte dos fundamentos jurídicos da sentença nas fls. 118 a 123v dos autos que: “o documento em que se fundamentou a execução não é executório (…) In casu, segundo o princípio da aplicabilidade imediata das leis do processo, às acções instauradas após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1999 é aplicável o mesmo Código. De acordo com o novo Código de Processo Civil, à execução podem servir de base os documentos particulares assinados pelo devedor e que importem reconhecimento da dívida. A elaboração dos documentos particulares antes ou depois da entrada em vigor do vigente Código de Processo Civil, não obsta a que estes constituam título executivo nas acções executivas instauradas após a entrada em vigor do mesmo Código. É improcedente a excepção da falta da força executiva do documento particular deduzida pelo embargante.” (vide as fls. 119 a 120 dos autos)
2. Salvo o devido respeito, o recorrente não concorda com os referidos fundamentos do tribunal a quo, porque,
3. O documento particular em que se fundamentou a execução nos autos recorridos (constante das fls. 24 dos autos principais) foi assinado em 23 de Outubro de 1998, ou seja na vigência do antigo Código de Processo Civil, pelo que deve-se verificar, segundo os dispostos no art.º 46.º, al.s b) e c) do Código de Processo Civil de 1961, se este documento particular reúne os requisitos para ser título executivo.
4. De acordo com o art.º 46.º, al.s b) e c) do Código de Processo Civil de 1961, o documento particular constante das fls. 24 dos autos principais não foi exarado ou autenticado por notário, e a sua assinatura não foi notarialmente reconhecida, pelo que não reúne os requisitos de título executivo e não é executório.
5. Por isso, ao assinar o referido documento particular, o signatário tinha a legítima expectativa no sentido de não poder ser instaurado o processo de execução. Na altura, mesmo assinado o documento particular em causa, se fosse intentada, contra o signatário, a acção de pagamento da quantia constante do documento particular, devia-se instaurar, antes de mais nada, o processo declarativo, através do qual se confirma o crédito do autor ou se declara que o recorrente deve pagar ao autor a respectiva quantia, e depois proceder ao processo de execução.
6. Ao assinar o documento, o signatário tinha a legítima expectativa no sentido de não poder ser instaurado o processo de execução, mas depois de 14 anos, devido à alteração do Código de Processo Civil, toma-se possível a instauração do processo de execução, o que contraria à legítima expectativa do recorrente.
7. Apesar de ser regulado pelo Código de Processo Civil, o título executivo em que se fundamentou a execução envolve, na verdade, o direito substantivo do signatário (ora recorrente).
8. Nos termos do art.º 11.º do Código Civil, a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
9. Este artigo pode revelar o princípio de segurança e estabilidade jurídica e em consequência, garantir a estabilidade da ordem social e proteger o interesse adquirido e a legítima expectativa das partes.
10. Os artigos 4.º, 41.º e 145.º da Lei Básica da RAEM também revelam o princípio de segurança e estabilidade jurídica.
11. Para o efeito, o disposto no art.º 677.º, al. c) do Código de Processo Civil de 1999 não deve ser aplicado aos documentos particulares assinados antes da entrada em vigor deste Código, senão, violam-se a legítima expectativa do signatário, o princípio de segurança e estabilidade jurídica e a Lei Básica.
12. A sentença recorrida aplicou o disposto no art.º 677.º, al. c) do Código de Processo Civil de 1999 para determinar que o documento particular em causa constituiu título executivo, violando a legítima expectativa do recorrente, o princípio de segurança e estabilidade jurídica e os art.ºs 4.º, 41.º e 145.º da Lei Básica.
13. Nestes termos, deve ser anulada a sentença recorrida.
Pelos expostos, pede-se ao MM.º Juiz do TSI para julgar procedente o presente recurso, anular a sentença recorrida, indeferir todos os pedidos da recorrida no processo principal de execução, e declarar extinto o processo principal, com todas as consequências jurídicas.
Solicita-se que faça a justiça!».
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«- O documento a fls. 24 dos autos principais de execução foi assinado pelo embargante (aqui se dá por integralmente reproduzido). (Alínea A) dos factos assentes)
- Em 27 de Novembro de 1998, a Alfândega de Gongbei da RPC fez a decisão punitiva contra o embargante, entendendo que o embargante cometeu a seguinte infracção: em 20 de Outubro de 1998, quando o embargante estava a sair pela “passagem de nada a declarar” no posto alfandegário de Gongbei, foram detectados e encontrados na sua posse USD$52.000,00, MOP$37.130,00, CAD$12.585,00 e HKD$106.000,00, todos em numerário e escondidos ao abdómen e à cintura para evitar a declaração e supervisão da Alfândega. Em consequência, foram aplicadas ao embargante as penas de confisco das divisas apreendidas e de multa de RMB¥60.000,00. (resposta ao quesito 7.º da base instrutória)
- Na altura, o embargante trabalhava na Associação dos Conterrâneos de Fuqing, auferindo mensalmente cerca de MOP2.000,00. (resposta ao quesito 15.º da base instrutória).»
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III – O Direito
1 – Foi pela embargada intentada uma acção executiva contra o embargante, com base num documento particular por este assinado em 23/10/1998, em que reconhecia a existência de uma dívida resultante de mútuo que aquela a este teria concedido, no valor de HK$ 924.500,00, e de que apenas restituiu HK$120.000,00.
Nos embargos, o executado invocou a inexistência de título executivo, com base nos arts. 699º, nº1 e 697º, al. a), do CPC, em virtude de as assinaturas do documento não estarem reconhecidas por notário, como o imporia o art. 46º, al. b), do CPC de 1961.
Para além disso, o executado/embargante ainda trouxe uma versão dos factos que em nada se assemelhava ao alegado mútuo. A descrição que faz dos factos é, sinteticamente, esta:
A exequente/embargada contactou-o para trazer para Macau uma avultada quantia. O executado/embargante aceitou a prestação do serviço, mas quando atravessava a fronteira com o dinheiro espalhado na cintura sob a roupa, foi detectado pelos serviços de Alfândega de Gongbei tendo o dinheiro sido apreendido. No entanto, a exequente acompanhada de outros indivíduos obrigaram o embargante a assinar um documento de dívida, a fim de que quando o dinheiro lhe fosse devolvido pelos serviços alfandegários da RPC dele não se apropriasse o embargante.
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2 – A sentença, uma vez efectuada a prova, entendeu que o documento particular era título executivo, porque lhe seria aplicável o disposto no art. 677º, nº1, al. c), do CPC de 1999. Quanto ao mérito, julgou improcedente a factualidade constante da versão exceptiva invocada pelo embargante.
E assim, julgou os embargos improcedentes, embora procedentes na parte da oposição à liquidação dos juros anteriores a 28/10/2007.
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3 – Recorre da sentença o embargante insistindo no argumento da ausência de exequibilidade do documento pretensamente titulador da dívida, rebatendo o argumento utilizado pela sentença, segundo o qual à situação em apreço, não obstante o documento datar de 1998, se aplicaria o novo CPC de 1999 e não o de 1961.
Essa é, pois, a única questão: saber se ao caso se aplicaria o disposto nos arts. 46º, al. b) e 51º, nº1, do CPC de 1961 ou o art. 677º, nº1, al. c), do actualmente vigente CPC.
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4 – O art. 46º, al. b), do CPC de 1961 dispunha assim:
«As letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis, podem servir de base à execução.»
E art. 51º, nº1, do mesmo Código estabelecia:
«A assinatura do devedor nas letras, livranças, cheques e nos outros escritos particulares, exceptuando o extracto de factura, devem estar reconhecidas por notário.»
Por seu turno, o art. 677º, nº1, al. c), do CPC, aprovado pelo DL nº 55/99/M, de 7/10, prevê que à execução podem servir de base:
«Os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável, nos termos do art. 689º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.»
Como se vê, o Código anterior obrigava ao reconhecimento notarial da assinatura do devedor no documento particular para que este pudesse ser título executivo, enquanto o actual dispensa essa formalidade.
Trata-se, portanto, de um problema de sucessão de leis no tempo.
O embargante apela ao art. 11º do CC, para defender que a lei só dispõe para o futuro.
O que foi dito na sentença?
Foi o seguinte:
«Como é sabido, conforme a doutrina dominante na lei civil, a nova lei só dispõe para o futuro e não os factos no passado (art.º 71.º, n.º 1 do Código Civil) (sic.).
Porém, em relação à aplicação das normas do processo, a orientação geral que tem prevalecido na doutrina é a contrária. Tem-se entendido que a lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções pendentes.
Duas razões fundamentais são invocadas para justificar a aplicabilidade imediata das leis do processo. Alega-se, em primeiro lugar, o facto de o direito processual ser um ramo do direito público. Acima dos interesses particulares divergentes dos litigantes pairam os interesses superiores da colectividade, inerentes ao sistema da justiça pública; e argumenta-se, em segundo lugar, com a circunstância de o direito processual ser um ramo do direito adjectivo e não um sector do direito substantivo. Não são as normas processuais que regulam o conflito de interesses entre os particulares, e não é com base nelas que o juiz, decidindo sobre a existência ou inexistência do direito que o autor se arroga, condena ou absolve o réu do pedido (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 47, e João de Castro Mendes, in Código de Processo Civil, vol. I, 2012, p. 105 e sgs).
In casu, segundo o princípio da aplicabilidade imediata das leis do processo, às acções instauradas após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1999 é aplicável o mesmo Código.
De acordo com o novo Código de Processo Civil, à execução podem servir de base os documentos particulares assinados pelo devedor e que importem reconhecimento da dívida. A elaboração dos documentos particulares antes ou depois da entrada em vigor do vigente Código de Processo Civil, não obsta a que estes constituam título executivo nas acções executivas instauradas após a entrada em vigor do mesmo Código.
Por isso, é improcedente a excepção da falta da força executiva do documento particular deduzida pelo embargante».
E tem razão.
Na verdade, as dificuldades maiores surgem quando, estando pendente uma causa em juízo, vem uma nova lei adjectiva proceder a alterações da lei processual anterior. E então, questiona-se se a lei nova se deve passar a aplicar dai para a frente ou se deve permanecer o processo submetido à lei processual anterior. Geralmente, para esses casos, o problema resolve-se de acordo com as disposições transitórias ou especiais que o novo diploma previr. Na falta delas, vigora o princípio da aplicação imediata da lei nova, salvando-se os actos praticados ao abrigo da lei anterior e aplicando-se os termos da lei nova aos actos processuais subsequentes (Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pág. 92).
Diferente é quando uma situação material-substantiva ocorrida no âmbito de uma lei processual anterior - e que podia ter sido conduzida ao litígio ao abrigo dessa lei – vem a ser objecto de uma controvérsia judicial já no âmbito de uma lei processual nova. Ora, em relação a estas situações o princípio da aplicação imediata da lei processual costuma ser menos contestado.
A aplicação imediata da lei nova obedece a três ordens de razões.
Em primeiro lugar, devido ao princípio geral de que as leis só valem para futuro; Em segundo lugar, em virtude de considerações de natureza publicística, que fazem prevalecer o interesse público sobre o privado dos interessados litigantes; Em terceiro lugar, devido ao carácter instrumental do processo, que não interfere com a existência do direito de cada um, mas sim e apenas sobre a forma como cada um pode reclamá-lo ou impugná-lo (sobre esta matéria, v.g., Manuel de Andrade, Noções Fundamentais de Processo Civil, reimpressão, pág. 40-43).
É verdade que a aplicação concreta do princípio pode aqui e ali variar, em função do tipo de leis processuais em presença, como sejam as que versam sobre a competência, sobre o simples rito processual a observar, sobre as provas, sobre os prazos judiciais, etc. (Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 44 e sgs.; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 47 e sgs.).
Mas, o caso que nos ocupa assinala claramente um tipo de lei nova (CPC de 1999) que somente interfere com o formalismo a observar. Ou seja, o que está em causa é a forma de processo a seguir. À luz da lei processual anterior, a exequente não podia lançar mão da acção executiva, porque o documento não tinha a assinatura do devedor reconhecida notarialmente, podendo no entanto servir-se de uma acção declarativa de tipo condenatório, ao passo que sob a égide do novo CPC já o credor, possuidor do documento, pode avançar directamente para o uso da acção executiva mesmo sem o reconhecimento notarial da assinatura do devedor. É que além falta exequibilidade ao título, por falta de um requisito de forma ou por ausência de uma formalidade ad probationem da genuinidade da assinatura do devedor, enquanto aqui a exequibilidade deixa de carecer de reconhecimento notarial.
Portanto, estamos a discutir, em última análise, qual a forma de processo deve ser utilizada e isso é matéria adjectiva ou processual que impõe a aplicação imediata da nova lei.
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5 – Neste sentido, o art. 11º do CC não acode ao recorrente, porque não estamos perante uma lei que interfira com o conteúdo da relação jurídica substantiva e porque o disposto no art. 2º, nº2, do DL nº 55/99/M, de 8/10, que aprovou o CPC vigente, determina que este se aplica aos processos instaurados após 1 de Novembro de 1999.
Consequentemente a invocação da segurança e a estabilidade jurídicas pelo recorrente não tem a menor razão de ser. Na verdade, nem ele sequer põe em causa que a assinatura que consta do documento lhe pertence. O que está em discussão no âmbito do presente recurso é saber da exequibilidade do título, ou seja, apurar se aquele documento pode ser utilizado com força executiva numa execução movida contra si ou se é mero documento sem essa força e que apenas podia legitimar o uso de uma acção declarativa. E de acordo com o novo CPC é título executivo, sim.
Os arts. 4º, 41º e 145º da Lei Básica, por outro lado, em nada servem o propósito do recorrente. Aliás, não é um problema de validade do documento, mas da aplicabilidade no tempo de leis processuais que concedem ou não concedem força executiva ao documento.
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6 – Pelo exposto, nem sequer pode o recorrente invocar com êxito, salvo o devido respeito, a “legítima expectativa” para se ver desonerado da sua posição de executado por falta de um alegado requisito de exequibilidade.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
TSI, 12 de Novembro de 2015
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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