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Processo nº 442/2015
Data do Acórdão: 09JUL2015


Assuntos:

Competência externa dos tribunais e Macau
Critérios atributivos da competência aos tribunais de Macau
Residência do réu
Domicílio do réu


SUMÁRIO

Nos termos prescritos no artº 17º/-c) do CPC, para que os Tribunais da RAEM sejam competentes, é preciso que o réu tenha domicílio efectivo ou residência efectiva em Macau.

Assim, a mera ligação formalista consistente na titularidade do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, de per si, não preenche o conceito “domicílio ou residência”, a que se refere o artº 17º/-c) do CPC.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 442/2015


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

A, intentou contra B, alias C, a presente acção para a investigação da paternidade, que foi registada sob o nº FM1-12-0025-CAO e corre os seus termos no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base.

Por despacho do Exmº Juiz titular do processo, a acção foi liminarmente indeferida nos termos seguintes:

  Os tribunais de Macau não são competentes para a presente acção. Com efeito, os critérios de atribuição de competência são os que constam dos artigos 15° a 17° do CPC. Para o caso em apreço, a competência dos tribunais de Macau depende de o réu ter aqui o seu domicílio. Ora, o réu tem o seu domicílio na China continental, como consta da petição inicial, pelo que falta competência aos tribunais de Macau para apreciar e decidir a presente acção.
  Acresce que o autor tem registada paternidade no seu assento de nascimento, constando ali como seu pai pessoa diferente do réu, a qual não foi demandada. Ora, não pode investigar-se uma paternidade enquanto outra estiver estabelecida (art. 1702° do CC).
  Pelo exposto, julgam-se incompetentes os tribunais de Macau para a presente causa e, em consequência, indefere-se liminarmente a petição inicial e determina-se o oportuno arquivamento dos autos, nos termos do disposto nos arts. 30º, 31º, nº 1,33°, nº 2 e 17°, todos do Código de Processo Civil.
  Custas pelo autor, sem prejuízo do que venha a decidir-se quanto ao apoio judiciário formulado na petição inicial, uma vez que não tem aqui aplicação o disposto no art. 17º, nº 2 do DL nº 41/94/M.
*
  Notifique e abra vista ao Ministério Público relativamente ao apoio judiciário.

Inconformado com o indeferimento liminar da acção, veio o Autor A interpor dele o recurso, pedindo e concluindo que:
1. 被告持有澳門永久性居民身份證,擁有澳門永久居民的身份,只是現在暫居於中國江門市。
2. 原審法庭依據澳門《民事訴訟法典》第17條、第30條、第31條第一款及第33條第二款的規定,以被告在澳門沒有住所或居所為由,認為澳門法院對上述卷宗不具管轄權而初端駁回起訴狀(卷宗第18版)。
3. 在尊重原審法庭對上述法律理解的情況下,上訴人認為原審法庭對《民事訴訟法典》第17條的理解不完全正確!
4. 被告為澳門永久居民,絕對有權行使《基本法》賦予的權利,自由地、依其意願選擇將住所或居所設於澳門特區 (澳門《基本法》第24條及第33條)。
5. 雖然被告現暫時居住於中國內地,但不妨礙其可以隨時自由且不受限制地遷回澳門居住。
6. 被告為一名退休公務員,每月仍會收取由澳門特區政府支付的退休金,故被告與澳門特區仍具有密不可分的關係。
7. 被告是澳門…馬路…大廈第一座4樓D (上訴人與其母親的居所) 之其中一名業權人,即被告在澳門是有住所或居所的,而只是現在暫時居住在中國江門市而已。
8. 為此,上訴人認為不應單純從字面解釋《民事訴訟法典》第17條規定“住所”或 “居所”的含義,而應擴充理解為只要“擁有澳門居民身份的人”,即使其並非在澳門居住,都應符合《民事訴訟法典》第17條的規定;因這些“擁有澳門居民身份的人”可隨意、自由及不受約束地依法在澳門居住。
9. 另一方面,如本案不在澳門特區提起,恐怕上訴人主張的權利無法實現,尤其在有需要時對兩名利害關係人作親子鑑定及難以傳喚相關知情人士出席庭審。
10. 基於此,如 法官閣下對上述《民事訴訟法典》第17條、由上訴人作出的法律理解存有疑問,則請考慮本案的兩名利害關係人 (上訴人及被告)、相關的證據及證人均與澳門存有極大的連結點,適用《民事訴訟法典》第15條c項的規定,認定澳門法院對此案具管轄權。
三、請求
1. 接納本上訴陳述的內容,撤銷原審法庭作出初端駁回的批示。
2. 批准上訴人司法援助的請求,豁免其支付本上訴的相關律師費、預付金及司法費等。
請求批准。

O Exmº Juiz do Tribunal recorrido sustentou o despacho ora recorrido e determinou a citação do Réu para os termos do recurso e para os da acção.

Na tentativa da citação do Réu, foi levado ao conhecimento do Tribunal que o Réu já faleceu entretanto na China continental em 22DEZ2013.

Em consequência disso, foi determinada a suspensão da presente acção e ordenado que os autos aguardassem a habilitação do Réu.

Oportunamente foi deduzido pelo Autor, ora recorrente, o incidente da habilitação dos sucessores para a prossecução dos termos da presente acção de investigação da paternidade.

Procedido o incidente da habilitação e junta a certidão da sentença transitada em julgado, foi determinado o levantamento da suspensão da instância e retomada a tramitação da presente acção de investigação da paternidade.

Citados quer para os termos do recurso quer para os da acção, nenhum dos sucessores habilitados veio responder ao recurso nem contestar a acção.

Devidamente instruído e oportunamente feito subir para este TSI, o recurso foi admitido.

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.


II

A única questão levantada nesta lide recursória é a de saber se os Tribunais da RAEM têm competência “externa” para o julgamento da presente acção.

Fala-se da competência “externa” por se tratar de uma questão de saber se os Tribunais de Macau, em confronto com os tribunais do “exterior”, têm competência para presente acção.

Ora, os critérios determinativos da competência externa dos tribunais da RAEM encontram-se estabelecidos nos artº 15º a 17º do CPC.

Estão previstas circunstâncias gerais atributivas da competência aos Tribunais da RAEM no artº 15º do CPC, à luz do qual:

Os tribunais de Macau são competentes quando se verifique alguma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido praticado em Macau o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram;

b) Ser réu um não residente e autor um residente, desde que, se idêntica acção fosse proposta pelo réu nos tribunais do local da sua residência, o autor pudesse ser aí demandado;

c) Não poder o direito tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunal de Macau, desde que entre a acção a propor e Macau exista qualquer elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.

Na alínea a), está consagrado o princípio da causalidade, segundo o qual, é suficiente que um dos factos que integram a causa de pedir tenha ocorrido em Macau para que os Tribunais da RAEM sejam competentes.

Na alínea b), temos o princípio da reciprocidade, nos termos do qual os Tribunais da RAEM são competentes para as acções intentadas pelo residente contra não residente se este puder intentar no país da sua nacionalidade uma acção idêntica contra o residente na RAEM.

Por último, a alínea c) consagra o princípio da necessidade, invocável para atribuir a competência externa aos Tribunais da RAEM quando a efectivação do direito só é possível através da acção proposta na RAEM e entre o objecto do litígio e a ordem jurídica da RAEM existir elemento ponderoso de conexão, pessoal e real.

Ora, de acordo com a causa de pedir, nenhum dos factos que a integram ocorreu em Macau. Assim os Tribunais da RAEM não se podem considerar competentes por força do princípio da causalidade.

Quanto aos critérios determinativos da competência dos Tribunais da RAEM estabelecidos nas alíneas b) e c), é de frisar que, como a competência do Tribunal é sempre aferida em relação ao objecto apresentado pelo Autor, a invocação dos princípios da reciprocidade e da necessidade para atribuir competência aos Tribunais da RAEM deve ser alicerçada sobre a alegação e a comprovação pelo Autor da acção dos factos de cuja verificação a lei faz depender a atribuição de tal competência.

Não tendo sido in casu demonstrados pelo Autor factos exigidos essas alíneas e integrantes das circunstâncias atributivas da competência aos Tribunais da RAEM, o TJB não pode ser considerado competente por essa via.

Por sua vez que o artº 16º do CPC enuncia especificadamente as circunstâncias determinativas da competência para certas acções, que são:

As acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso, ou a resolução do contrato por falta de cumprimento, quando a obrigação devesse ser cumprida em Macau ou o réu aqui tenha domicílio;

As acções relativas a direitos pessoais de gozo, de despejo, de preferência e de execução específica de contrato-promessa, quando tenham por objecto imóveis situados em Macau;

As acções de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas quando, respeitando a navios e aeronaves, o registo destes tenha sido feito em Macau ou quando, respeitando a bem diverso, este se situe em Macau;

As acções destinadas a ser julgado livre de privilégios o navio adquirido por título gratuito ou oneroso quando, no momento da aquisição, o navio se achasse surto em porto de Macau;

As acções destinadas a regular avaria marítima comum sofrida por navio que entregue ou devesse entregar a respectiva carga em porto de Macau;

As acções de indemnização fundadas na abalroação de navios, quando o acidente tenha ocorrido em águas sob administração do Território, o dono do navio abalroador esteja domiciliado em Macau, o navio abalroador esteja registado em Macau ou for encontrado em porto de Macau, ou for de Macau o primeiro porto em que entrou o navio abalroado;

As acções destinadas a exigir os salários devidos por salvação ou assistência de navios, quando a salvação ou assistência tenha ocorrido em águas sob administração do Território, o dono dos objectos salvos tenha domicílio em Macau, o navio socorrido esteja registado em Macau, ou seja encontrado em porto de Macau o navio socorrido;

As acções de divisão de coisa comum, quando tenham por objecto bens situados em Macau;

As acções de divórcio, quando o autor resida em Macau ou aqui tenha domicílio;

As acções de inventário destinado a pôr termo à comunhão hereditária, quando a sucessão tenha sido aberta em Macau ou quando, aberta a sucessão fora de Macau, o falecido tenha deixado imóveis em Macau ou, na falta de imóveis, aqui se encontre a maior parte dos móveis por ele deixados;

As acções de habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, quando se verifique algum dos requisitos mencionados na alínea anterior, ou quando o habilitando tenha domicílio em Macau;

As acções destinadas a declarar a falência, quando o domicílio, a sede ou a administração principal do empresário comercial se situe em Macau, ou quando, não se situando nenhum destes em Macau, aquelas acções derivem de obrigações contraídas ou que devessem ser cumpridas em Macau e o empresário comercial aqui tenha sucursal, agência, filial, delegação ou representação, sendo porém restrita a liquidação aos bens existentes em Macau.

Não se integrando a presente acção da investigação da paternidade em nenhuma das acções ai enunciadas, igualmente os Tribunais da RAEM não se podem considerar competentes por essa via.

Finalmente, temos a regra residual consagrada no artº 17º do CPC que diz:

Sem prejuízo da competência que resulte do disposto no artigo 15.º, os tribunais de Macau são competentes para apreciar as acções não previstas no artigo anterior ou em disposições especiais, quando:

a) O réu tenha domicílio ou residência em Macau;

b) Não tendo o réu residência habitual ou sendo incerto ou ausente, o autor tenha domicílio ou residência em Macau;

c) Sendo o réu uma pessoa colectiva, se situe em Macau a respectiva sede ou administração principal, ou uma sucursal, agência, filial, delegação ou representação.

É evidente que não estamos perante situações integráveis nas al. b) e c).

O Exmº Juiz apoiou-se na alínea a), interpretada a contrario, para julgar incompetente o TJB e em consequência indeferir liminarmente a acção.

O recorrente, por sua vez, vem esclarecer por via de recurso que o Réu era titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, só residia temporariamente na RPC, era funcionário aposentado beneficiário da pensão de aposentação paga pela Administração da RAEM e titular de um bem imóvel situado na RAEM, defendendo que, tendo em conta a inexistência de obstáculos, face à Lei Básica, ao livre exercício do seu direito de residência na RAEM e os apontados elementos de forte conexão com a RAEM, o Tribunal a quo deveria ter feito uma interpretação extensiva do critério determinativo da competência estabelecido no artº 17º/-a) do CPC, por forma a abranger também a situação do ora Réu no âmbito da sua aplicação.

Ora, para além do facto de ser titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente (BIRP de Macau), os restantes elementos de conexão só vieram a ser trazidos aos autos pelo recorrente por via de recurso.

Como se sabe, no nosso sistema, os recursos ordinários são meios de impugnação destinados à eliminação ou correcção das decisões judiciais inválidas, erradas ou injustas por devolução do seu julgamento ao órgão jurisdicional hierarquicamente superior – Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª, pág. 72.

Então pergunta-se, para ajuizar a validade, correcção ou justeza da decisão recorrida, se o Tribunal de recurso pode servir-se de factos novos ou não conhecidos pelo Tribunal a quo no momento da decisão recorrida, ou deve apenas cingir-se aos factos sobre que incidiu a decisão recorrida, isto é, aos factos que o Juiz a quo possuía no momento dessa decisão.

De acordo com os Doutos ensinamentos do Prof. Castro Mendes, duas soluções são possíveis: o objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida ou é a questão recorrida.

Diz o Mestre que:

“a esta diferença de pontos de vista correspondem algumas diferenças de regime.

Assim, se o que se pretende com o recurso é decidir de novo a questão que estava posta, parece que se pode atender neste novo julgamento a factos novos (por exemplo, subjectivamente supervenientes) ou até alterações da lei.

Pelo contrário, se o objecto do recurso é julgar se a decisão proferida foi justa ou injusta, então não interessa senão comparar a decisão com os dados que o juiz decidente possuía.”

E concluiu dizendo que “o nosso sistema de recursos inclina-se por a seguinte solução – objecto do recurso é a decisão. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova” – cf. Castro Mendes, in Direito Processual Civil III, pág. 28 e 29.

Aderimos a esta tese doutrinária, uma vez que os recursos ordinários são justamente meios de impugnação destinados à eliminação ou correcção das decisões judiciais inválidas, erradas ou injustas, tal como referimos supra.

Voltando ao caso sub judice analisemos agora se, em face do disposto no artº 17º/-c) do CPC, o Réu podia ou não ser considerado como réu que tem domicílio ou residência em Macau.

Secundando a doutrina autorizada citada supra, devemos fê-lo apenas com base no facto a que podia cingir-se o Exmº Juiz a quo no momento de proferir a decisão recorrida, que é o único facto, alegado pelo Autor, de o Réu ser titular do BIRP de Macau.

Nos termos prescritos no artº 17º/-c) do CPC, para que os Tribunais da RAEM sejam competentes, é preciso que o réu tenha domicílio ou residência em Macau.

Então o que deve entender por “domicílio ou residência”.

Tanto “domicílio” como “residência” são conceitos jurídicos.

Para considerar que o réu tenha domicílio ou residência na RAEM, é preciso que o réu tenha uma ligação efectiva à RAEM.

O Réu era titular do BIRP de Macau.

Formalmente falando, enquanto titular do BIRP de Macau, ele era residente de Macau, mas não quer dizer necessariamente que é residente em Macau ou domiciliado em Macau.

A mera ligação formalista, de per si, para nós, não preenche o conceito “domicílio ou residência”, a que se refere o artº 17º/-c) do CPC.

Pois, ao exigir que o Réu tenha domicílio ou residência em Macau, e não que o Réu seja residente de Macau, ao legislador interessa sobretudo uma ligação material e física, e não tanto um mero laço jurídico-formal.

Portanto, entendemos que o Réu não tinha domicílio ou residência em Macau no momento da propositura da acção, sendo de concluir que bem andou o Exmº Juiz a quo, ao decidir como decidiu indeferindo liminarmente a acção com fundamento na incompetência externa dos Tribunais da RAEM por o Réu não ter domicílio ou residência em Macau.

Em princípio já podemos ficar por aqui julgando improcedente o recurso.

Todavia, não podemos.

O que nos impede de ficar por aqui é precisamente a ocorrência do falecimento do Réu na pendência da acção, o que deu lugar à modificação subjectiva da acção através do incidente da habilitação.

Compulsado o apenso da habilitação, todos os sucessores habilitados a substituir-se ao primitivo Réu são residentes em Macau.

Então parece que cessa o fundamento do indeferimento liminar.

Todavia, por força da norma expressa do artº 13º/1 do CPC, a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe.

É assim irrelevante a modificação subjectiva entretanto ocorrida.

Por último e ex abuntantia, quanto a um aspecto referenciado (a impossibilidade da investigação da paternidade enquanto outra estiver estabelecida – artº 1702º do CC) no despacho recorrido e que todavia não foi objecto da impugnação por via do presente recurso, cabe notar que a tal circunstância pode constituir, quanto muito, motivo para determinar a suspensão da presente acção da investigação da paternidade e nunca fundamento para o indeferimento liminar.

Tudo visto, resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário já concedido.

A título de honorários a favor da Ilustre Advogada nomeada subscritora da petição de recurso, fixa-se em MOP$1.500,00, a suportar pelo GPTUI.

Registe e notifique.

RAEM, 09JUL2015

Lai Kin Hong

João Gil de Oliveira

Ho Wai Neng
Ac. 442/2015-15