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Processo nº 894/2015 Data: 29.10.2015
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Quebra da caução.
Motivos.




SUMÁRIO

1. Dois são os motivos (taxativos) para a quebra da caução:
a) a falta injustificada do arguido a acto processual a que deva comparecer; ou,
b) o incumprimento de obrigações derivadas de medida de coacção que lhe tinha sido imposta.

2. Não se verificando nenhum destes motivos, ilegal é a decisão de quebra da caução prestada.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 894/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, (2°) arguido com os sinais dos autos, vem recorrer da decisão pelo T.J.B. proferida que declarou quebrada a caução que nestes autos prestou no montante total de MOP$300.000,00.

Motivou para a final produzir as conclusões seguintes:

“1. Numa das suas deslocações a Macau o Arguido foi indiciado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas de menor gravidade p.p. pelo art. 11° da Lei 17/2009 e consequentemente, no âmbito desse inquérito, no dia 24 de Março de 2014 ao Arguido ora Recorrente foram aplicadas as medidas de coação de termo de identidade e de residência (TIR) de acordo com o art. 181° do Código de Processo Penal, prestação de caução no valor de MOP$100.000,00 (cem mil patacas) de acordo com o art. 182° do Código de Processo Penal e proibição de ausência de Macau de acordo com o art. 184° do Código de Processo Penal;
2. Em 10 de Junho de 2014 por despacho do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal de fls. 290 e na sequência do pedido formulado pelo Arguido foi ordenado o levantamento da proibição de ausência da RAEM com a condição do reforço da caução já prestada num montante adicional de MOP$200.000,00.
3. Prestação esta a qual foi efectuada pelo Arguido e validada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal a fls. 14 dos respectivos autos de prestação de caução que se encontram apensos aos presentes autos. Perfazendo-se assim um total de MOP$300.000,00 prestados a título de caução.
4. Em 18 de Junho de 2014 o Arguido ausentou-se da RAEM por razões que se prendem com a doença do seu pai.
5. Ao ausentar-se da RAEM, e como tem sido prática em idênticas circunstancias, os agentes do Corpo de Policia de Segurança Publica dos Serviços de Migração da RAEM providenciaram ao Arguido duas notificações na qual lhe foi comunicada a proibição de entrada na RAEM pelo período de 8 anos.
6. Na sequência dessas notificações em 10 de Julho de 2014 o Arguido apresentou uma audiência escrita e um recurso hierárquico necessário junto do Director do Corpo de Policia de Segurança Pública dos Serviços de Migração e Secretário para a Segurança, respectivamente.
7. Como resposta à audiência escrita e ao recurso hierárquico necessário, em 20 de Agosto de 2014 o Director do Corpo de Policia de Segurança Pública dos Serviços de Migração e Secretário para a Segurança vieram manter a posição anteriormente adoptada, ou seja, a de interdição da entrada do Arguido na RAEM pelo período de 8 anos.
8. A audiência de discussão e julgamento foi agendada para o dia 25 de Março de 2015 e pese embora o Arguido tenha sido regularmente citado para comparecer na referida, o mesmo não compareceu em virtude da referida proibição de entrada na RAEM, a qual ainda pende sobre ele.
9. A não comparência do Arguido em audiência de discussão e julgamento foi no acto justificada ao douto tribunal a quo pela mandatária do Arguido como tendo-se ficando a dever ao facto do Arguido se encontrar proibido de entrar na RAEM pelo período de 8 anos.
10. No sentido de evitar mais delongas processuais foi solicitada a mandatária do Arguido que apresentasse uma declaração do Arguido manifestando a sua concordância em que o julgamento de realizasse na sua ausência nos termos e para efeitos doa artigo 315° do Código de Processo Penal, sem que mais justificações tivessem sido solicitadas da parte deste.
11. Tendo a referida autorização nos termos do art. 315° do Código de Processo Penal sido apresentada por parte do Arguido no dia 5 de Maio de 2015 e, no dia 3 de Junho de 2015 realizou-se a audiência de discussão e julgamento na ausência do mesmo.
12. Do art. 192° do Código de Processo Penal importará saber se a falta do Arguido à audiência de julgamento em virtude de estar interdito de entrar na RAEM pelo período de 8 anos contados desde o dia 18 de Junho de 2014, consubstancia ou não uma falta injustificada.
13. Salvo devido respeito por opinião contrária, outro não poderá ser o entendimento se não o de que atendendo ao conflito de deveres em que o Arguido se viu envolvido – faltar a uma audiência de julgamento ou incorrer em responsabilidade criminal por crime de reentrada ilegal p.p. pelo art. 21° da Lei 6/2004 o qual é punível com pena até uma anos de prisão – o Arguido optou claramente por aquele que numa ordem hierárquica lhe pareceu menos grave.
14. É certo a ninguém é legítimo alegar o desconhecimento da Lei para o cometimento de factos que possam consubstanciar crime – o desconhecimento da Lei não aproveita a ninguém. Porém, outra questão bem diferente é a de se pedir ao Homem Médio que interprete um conceito jurídico-legal, como o de conflito de deveres.
15. Para o Arguido é de difícil perceber porque razão estando ele proibido de reentrar na RAEM é penalizado com a perda da caução por falta injustificada à audiência de discussão e julgamento, se legalmente aquilo que ele fez foi “optar”, por imposição do Corpo de Policia de Segurança Publica da RAEM, não cometer um crime – o de reentrada legal p.p. pelo art. 21° da Lei 6/2004.
16. Atento o disposto no art. 35° do Código Penal que rege o conflito de deveres podemos constatar que “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos (…) satisfaz dever (…) de valor igual ou superior ao do dever (…) que sacrifica”.
17. Por todo o exposto, parece-nos, mais uma vez ressalvado o devido respeito, que andou mal o douto Tribunal a quo quando proferiu a decisão recorrida na parte em que determinou a quebra da caução prestada pelo arguido por falta injustificada, incorrendo por isso em vicio de violação do art. 35° do Código Penal e art. 192° do Código de Processo Penal, porquanto, encontrando-se o Arguido numa posição jurídica de evidente conflito de deveres – faltar a uma audiência de julgamento ou incorrer em responsabilidade criminal por crime de reentrada ilegal p.p. pelo art. 21° da Lei 6/2004 o qual é punível com pena até uma anos de prisão – o Arguido optou claramente por aquele que numa ordem hierárquica lhe pareceu menos grave.
18. Concluindo-se assim que, não era legítimo ter sido declarada a quebra da caução que o Arguido havia prestado no montante total de MOP$300.000,00 por falta injustificada na audiência de discussão e julgamento em virtude do arguido se encontrar numa posição de manifesto e evidente conflito de deveres”; (cfr., fls. 475 a 483 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Respondendo pugna o Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 485 a 488).

*

Neste T.S.I. juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Encontrando-se comprovado que:
- o recorrente prestou a caução inicial de 100.000 patacas;
- reforçou tal montante em mais 200.000, a fim de obter, e obtendo, o levantamento da proibição de ausência da RAEM;
- a proibição de reentrada na Região, pelo período de 8 anos, lhe foi comunicada aquando da sua saída da RAEM, medida da qual recorreu hierarquicamente, não tendo obtido sucesso;
- a sua falta de comparência a audiência de julgamento foi justificada pela sua mandatária, com a descrição da situação em causa, razão por que foi solicitada e obtida do recorrente autorização para efectivação do julgamento na sua ausência,
mal se percebe a razão (nem, verdadeiramente, se vê tal medida devidamente justificada e fundamentada) por que, em situação em que o tribunal “a quo” sabia não ser possível, legalmente, a comparência do visado a julgamento, por se encontrar ausente no exterior e proibido de entrar na RAEM pelo período de 8 anos, se quebrou a caução pelo mesmo prestada.
Na situação, configurada nos parâmetros essenciais a que acima nos reportamos, haverá, em nosso critério, que considerar-se a ausência do recorrente como justificada, não se mostrando, portanto, reunidos os requisitos exigidos pelo n° 1 do art° 192°, CPP para a medida questionada.
Donde, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, entendermos merecer provimento o presente recurso”; (cfr, fls. 496 a 497).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Feito que está o relatório que antecede, vejamos se tem o arguido razão.

Em causa está a decisão que declarou quebrada a caução pelo arguido prestada.

O Tribunal a quo considerou que o arguido ora recorrente “não cumpriu as obrigações que lhe tinham sido impostas”, e nesta conformidade, invocando o art. 192° do C.P.M., proferiu a decisão agora objecto do presente recurso e a que já se fez referência.

Porém, admitindo-se que sobre a questão outro entendimento possa existir, (e que se respeita), cremos que a decisão não é de manter.

Vejamos.

Como sabido é, a “caução”, (ou melhor, a “prestação de caução”), vulgarmente entendida como “valor aceite como garantia do cumprimento de uma obrigação”, é, em sede de direito processual penal, uma “medida de coação” regulada no art. 181° e segs. do C.P.P.M..

E, como já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar, as medidas de coacção e de garantia patrimonial são meios processuais que tem como finalidade acautelar a eficácia do processo quer quanto ao seu normal prosseguimento quer quanto às decisões que nele vierem a ser proferidas; (cfr., v.g. o Acórdão de 19.07.2012, Processo n.° 606/2012, de 23.01.2014, Proc. n.° 15/2014, e mais recentemente, de 12.03.2015, Proc. n.° 140/2015).

São, pois, providências de natureza cautelar e processual, limitadoras da liberdade do arguido, e que tem como objectivo assegurar que o processo penal decorra sem incidentes (anómalos).

No caso, foi (exactamente) o que aconteceu.

Indiciado que foi o recorrente pela prática de ilícitos criminais, foram-lhe, em sede de Inquérito, aplicadas várias medidas de coacção a fim de se assegurar o “normal prosseguimento do processo”.

De entre estas, a ora reclamada “caução (carcerária)” pelo arguido prestada no valor de MOP$100.000,00, e que, posteriormente, perante um pedido de ausência do território pelo mesmo arguido apresentado, (cfr., fls. 253), e que em apreciação foi deferido, foi objecto de “reforço”, (cfr., fls. 290 a 290-v e art. 191° do C.P.P.M.), passando a ser no montante total de MOP$300.000,00.

Nos termos do art. 192° do C.P.P.M.:
“1. A caução considera-se quebrada quando se verificar falta injustificada do arguido a acto processual a que deva comparecer ou incumprimento de obrigações derivadas de medida de coacção que lhe tiver sido imposta.
2. Quebrada a caução, o seu valor reverte para a Região Administrativa Especial de Macau”.

Do estatuído no n.° 1, verifica-se que a quebra da caução pode ocorrer por 2 motivos:
- “falta injustificada do arguido a acto processual que deve comparecer”; e,
- incumprimento de obrigações derivadas de medida de coacção que foi imposta.

In casu, cremos que verificado não está nenhum dos referidos motivos.

Vejamos.

Quanto ao primeiro, afigura-se-nos inadequado considerar que incorreu o arguido em “falta injustificada a acto processual”.

Como se viu, o arguido foi (expressamente) autorizado a sair de Macau, (a troco de um reforço da caução antes prestada), e, à saída, foi notificado da proibição de reentrar, podendo incorrer no crime de “reentrada ilegal” se o fizesse.

Atente-se que o arguido até reagiu contra a referenciada medida, recorrendo de tal “proibição de reentrada”, contudo, sem sucesso.

Assim, estando proibido de regressar a Macau, justificada se nos afigura de considerar a sua ausência à audiência de julgamento que teve lugar no T.J.B..

Aliás, se o Tribunal quando confrontado com tal situação de proibição de reentrada não diligenciou no sentido de a ultrapassar, considerando mais adequado solicitar ao arguido um comprovativo da sua concordância com o julgamento sem a sua presença, razoável não parece que depois do julgamento considere injustificada a sua falta.

Em relação ao segundo (motivo), igualmente não vemos qual a “obrigação que o arguido incumpriu”.

Se a sua saída de Macau foi autorizada, e não tendo regressado porque a tal (expressa e legitimamente) proibido, nada nos parece que se lhe possa ser imputado, até porque, como se deixou consignado, oportunamente, tentou inverter a situação, (recorrendo do decidido), mais não nos parecendo de exigir da sua parte quanto a tal aspecto.

Dest’arte, por inverificação dos pressupostos legais para a declarada quebra da caução que o arguido, ora recorrente, prestou, imperativa é a revogação da decisão recorrida.

Decisão

3. Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que declarou a quebra da caução pelo arguido recorrente prestada nestes autos.

Sem custas.

Macau, aos 29 de Outubro de 2015

José Maria Dias Azedo [Com a declaração de que – como já entendi no âmbito do Ac. de 25.07.2013 Proc. n.° 393/2013 – considero que a decisão recorrida viola também o “princípio do contraditório”, pois que, em obediência ao “princípio do contraditório” e da proibição de “decisões-surpresa”, constitui entendimento firme que o arguido deve ser ouvido antes da declaração de quebra da caução, pois que esta não é automática; (cfr., v.g., M. Gonçalves, in “C.P.P.”, 17ª ed., 2009, pág. 507, P. Pinto de Albuquerque, in “Comentário ao C.P.P.”, pág. 558, o Ac. da R.P. de 11.01.1995, Proc. n.° 9330987, e da R.L. de 24.03.2004, Proc. n.°6008/2003-3 in www.dgsi.pt, aqui citados como mera referência)].

Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 894/2015 Pág. 2

Proc. 894/2015 Pág. 3