Processo nº 539/2015
(Autos de recurso civil)
Data: 10/Setembro/2015
Assuntos: Acção especial de exame à sociedade
Aprovação judicial das contas
SUMÁRIO
- Numa sociedade comercial, os sócios têm direito de verificar o estado da organização societária, da evolução dos seus negócios, da sua situação económico-financeira; e constatar os resultados do exercício correspondente ao ano civil anterior, para permitir repartir os eventuais lucros ou afectá-los a outros fins de interesse social.
- Daí que compete ao órgão de administração, no termo de cada exercício, organizar as contas anuais e elaborar um relatório respeitante ao exercício e uma proposta de aplicação de resultados (artigo 254º do Código Comercial), os quais são sujeitos à aprovação dos sócios, em assembleia geral (alínea f) do artigoº 381º do Código Comercial).
- No caso de as contas anuais e o relatório da administração não serem apresentados aos sócios até três meses após o termo do respectivo exercício, pode qualquer dos sócios intentar acção especial de exame à sociedade, pedindo ao tribunal a fixação de um prazo para a sua apresentação (artigo 259º, nº 1 do Código Comercial ex vi artigo 1262º, nº 3 do Código do Processo Civil).
- Assente está que foi realizada em 19.3.2012 a assembleia geral de sócios, na qual foram aprovadas as contas anuais do exercício de 2011, não se vislumbra a verificação dos pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 259º do Código Comercial.
- Neste caso, se entender que a deliberação teria violado alguma norma legal ou estatutária, como por exemplo a falta de convocação de sócios para a assembleia geral, deveria impugnar a respectiva deliberação segundo os termos previstos na lei (artigo 229º e seguintes do Código Comercial).
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 539/2015
(Autos de recurso civil)
Data: 10/Setembro/2015
Recorrente:
- Farmácia B Limitada (requerida)
Recorrido:
- C (requerente)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Farmácia B Limitada, inconformada com a decisão que lhe fixou o prazo de 60 dias para apresentar as contas anuais e o relatório de administração referentes ao exercício de 2011, numa acção especial de exame à sociedade intentada por C, ora recorrido, dela interpôs recurso para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. No âmbito das sociedades comerciais, a aprovação ou não das contas apresentadas cabe à assembleia geral da sociedade comercial, sendo que só em caso da não aprovação pelos sócios é que nasce o direito de requerer a fixação do prazo previsto no artigo 256º, n.º 1 do Código Comercial e, por conseguinte, se justifica a intervenção do poder judicial para a sua apreciação.
2. No caso ora em apreço, as contas do exercício de 2011 foram aprovadas em assembleia geral de sócios realizada em 19 de Março de 2012, conforme resulta da acta de fls. 135, que instruiu o requerimento/resposta de fls. 126 e ss.
3. A deliberação de aprovação das contas do exercício de 2011 de fls. 135 não foi objecto de qualquer acção de anulação ou nulidade, nem o contrário resulta dos autos.
4. Logo, enquanto não for anulada ou declarada nula por sentença transitada em julgado, tal deliberação é válida e vincula todos os sócios (incluindo o ora Requerente) e órgãos sociais da sociedade.
5. Não se encontram portanto, razões para divergir da jurisprudência já firmada por unanimidade no Tribunal de Segunda Instância da RAEM quanto aos pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 259º do Código Comercial ex vi do artigo 1262º, n.º 3 do CPC.
6. E, in casu, não se verificando tais pressupostos, é de revogar a, aliás, douta sentença, na parte em que fixou prazo à Administração da “Farmácia B Limitada” para apresentar as contas anuais e o relatório de administração referentes ao exercício de 2011, por tais contas já terem sido aprovadas pelos sócios presentes na assembleia geral de 19 de Março de 2012.
Conclui, pedindo que seja concedido provimento ao recurso e, consequentemente, se revogue a decisão recorrida na parte em que fixou prazo à Administração da recorrente para apresentar as contas anuais e o relatório de administração referentes ao exercício de 2011.
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Notificados os demais interessados, apenas respondeu o recorrido, pugnando pela negação de provimento ao recurso, e a consequente manutenção da decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A requerida (ora recorrente) é uma sociedade comercial por quotas, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º XXXXX SO.
O requerente (ora recorrido) é sócio da requerida, na qual detém uma quota com o valor nominal de MOP$24.000,00.
São administradores da requerida D, F e G.
Os estatutos da requerida nada estipulam em relação ao período de exercício social da requerida.
A requerida, após citada nos presentes autos, juntou aos autos os documentos a fls. 127 a 151, 174 a 191, 192 a 197, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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Prevê-se no artigo 589º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.
Com fundamento nesta norma tem-se entendido que se o recorrente não leva às conclusões da alegação uma questão que tenha versado na alegação, o tribunal de recurso não deve conhecer da mesma, por entender que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.1
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A única questão colocada no presente recurso é saber se estão verificados os pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 259º, nº 1 do Código Comercial ex vi do artigo 1262º, nº 3 do Código de Processo Civil.
No caso em apreço, o Tribunal a quo entendeu que demonstrada não ficou a elaboração e apresentação das contas anuais e do relatório, daí que fixou o prazo de 60 dias para a Administração da sociedade requerida (ora recorrente) apresentar as contas anuais e o relatório da administração referentes ao exercício de 2011.
Contudo, defende a recorrente que as contas do exercício de 2011 foram devidamente aprovadas em assembleia geral de sócios, e não sendo a tal deliberação objecto de qualquer acção de anulação ou nulidade, a referida deliberação continua a ser válida e vincula todos os sócios, incluindo o aqui requerente ora recorrido.
Daí que, no seu entender, preenchidos não estão os pressupostos de aplicação do disposto no artigo 259º do Código Comercial de Macau.
Vejamos.
Estatui o nº 3 do artigo 1262º do Código de Processo Civil de Macau que quando o exame à sociedade tiver como fundamento a não apresentação pontual do relatório da administração, contas anuais e demais documentos de prestação de contas, seguem-se os termos previstos no artigo 259º do Código Comercial.
Por sua vez, preceitua o artigo 259º do Código Comercial o seguinte:
“1. Se as contas anuais e o relatório da administração não forem apresentados aos sócios até três meses após o termo do exercício a que respeitem, pode qualquer sócio requerer ao tribunal a fixação de um prazo, não superior a 60 dias, para a sua apresentação.
2. Se, decorrido o prazo fixado nos termos da parte final do número anterior, a apresentação não tiver tido lugar, o tribunal pode determinar a cessação de funções de um ou mais administradores e ordenar exame judicial nos termos do artigo 211º, nomeando um administrador judicial encarregado de elaborar as contas anuais e o relatório da administração referentes a todo o prazo decorrido desde a última aprovação de contas.
3. Elaborados o balanço, as contas e o relatório, são sujeitos à aprovação dos sócios, em assembleia geral para o efeito convocada pelo administrador judicial.
4. Se os sócios não aprovarem as contas, o administrador judicial requer ao tribunal, no âmbito do exame, que elas sejam aprovadas judicialmente, fazendo-as acompanhar de parecer de auditor de contas sem relação com a sociedade.”
Em boa verdade, um dos factos mais importantes da vida social é o que anualmente permite aos sócios: verificar o estado da organização societária, da evolução dos seus negócios, da sua situação económico-financeira; e constatar os resultados do exercício correspondente ao ano civil anterior, para permitir repartir os eventuais lucros ou afectá-los a outros fins de interesse social.2
Em regra, no termo de cada exercício, compete ao órgão de administração organizar as contas anuais e elaborar um relatório respeitante ao exercício e uma proposta de aplicação de resultados (artigo 254º do Código Comercial), os quais são sujeitos à aprovação dos sócios, em assembleia geral (alínea f) do artigoº 381º do Código Comercial).
E só no caso de as contas anuais e o relatório da administração não serem apresentados aos sócios até três meses após o termo do respectivo exercício, é que pode qualquer dos sócios intentar acção especial de exame à sociedade, pedindo ao tribunal a fixação de um prazo para a sua apresentação (artigo 259º, nº 1 do Código Comercial ex vi artigo 1262º, nº 3 do Código do Processo Civil).
Ora bem, no vertente caso, alega a recorrente que se realizou em 19.3.2012 a assembleia geral de sócios, na qual foram aprovadas as contas anuais do exercício de 2011, e cuja deliberação não foi objecto de impugnação por via de acção de anulação ou nulidade.
Entretanto, diz o recorrido que ele nunca foi convocado para tal assembleia geral na qualidade de sócio da sociedade recorrente.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos que, tal como refere a recorrente, e bem, a aplicação do regime de aprovação judicial das contas previsto no artigo 259º do Código Comercial no presente caso pressupõe que não se tivesse realizado a assembleia geral ou nela não tivesse sido deliberada a aprovação das contas do exercício de 2011, ou havendo deliberação, que tal tivesse sido oportunamente impugnada e declarada inválida por sentença transitada em julgado.
Mas nenhuma destas hipóteses se verificou no nosso caso.
De facto, embora a assembleia geral de sócios não tenha, em princípio, competência para intervir de modo directo nas operações de gestão da sociedade, mas compete aos mesmos deliberar sobre as matérias discriminadas nas várias alíneas do artigo 381º do Código Comercial, através da manifestação e declaração de vontade dos sócios, exprimidas sob a forma e através de voto.
A cada sócio é atribuído, em princípio, o direito de intervir e de votar nas assembleias gerais3, e se a deliberação tomada pelos sócios em assembleia viole algum preceito legal ou estatutário, dando origem a situações de invalidade, então só por via de impugnação é que pode arguir-se os vícios dessa mesma deliberação social.
Ora bem, assente está que foi realizada em 19.3.2012 a assembleia geral de sócios, na qual foram aprovadas as contas anuais do exercício de 2011, daí que, se entender que a deliberação teria violado alguma norma legal ou estatutária, como por exemplo a falta de convocação do recorrido para a assembleia geral, deveria impugnar a respectiva deliberação segundo os termos previstos na lei (artigo 229º e seguintes do Código Comercial).
Em nosso modesto entender, uma vez realizada a assembleia geral dos sócios, e nela foram aprovadas as contas do exercício de 2011, não se vislumbra a verificação dos pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 259º do Código Comercial.
Aliás, não devemos esquecer que, ainda que o Tribunal decida nomear um administrador judicial encarregado de elaborar as contas anuais e o relatório da administração, em virtude de aqueles documentos não terem sido apresentados aos sócios até três meses após o termo do respectivo exercício, tais documentos terão que ser sujeitos igualmente à aprovação dos sócios em assembleia geral (artigo 259º, nº 3 do Código Comercial), isso significa que, no fundo, a aprovação dos sócios em assembleia geral prevalece sobre a aprovação judicial das contas.
Veja-se o que se disse no Acórdão deste TSI, de 15.12.2011, no Processo 627/2010: “No âmbito das sociedades comerciais, a aprovação ou não das contas apresentadas cabe à assembleia geral da sociedade comercial, só em caso da não aprovação é que justifica a intervenção do poder judicial para a sua apreciação.”
Aqui chegados, julgamos ter razão a recorrente.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela requerida ora recorrente Farmácia B Limitada, revogando a decisão recorrida e, consequentemente, julgando improcedente o pedido formulado pelo requerente ora recorrido C.
Custas pelo recorrido em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
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RAEM, 10 de Setembro de 2015
(Relator)
Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 663
2 Miguel J.A. Pupo Correia, Direito Comercial, 7ª edição, 2001, pág. 585
3 A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, 1968, pág. 343
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Recurso Civil 539/2015 Página 1