Proc. nº 100/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 24 de Setembro de 2015
Descritores:
-Computo do Prazo
-Contagem de prazo
-Representação sem poderes
-Abuso de representação
-Ineficácia
SUMÁRIO
I. Na contagem de um prazo que termine em dia certo, deve entender-se que este termina às 24 horas do dia correspondente, como resulta do art. 272º, al. b), do CC.
II. Na representação sem poderes existe uma actuação de alguém em nome de outrem, sem estar investida dos necessários poderes, sem estar legitimada para o efeito no momento da prática do acto, ou porque não tem nem, nunca teve, essa legitimidade, ou porque, tendo-a tido, entretanto cessou, ou porque, finalmente, tem legitimidade representativa quando da prática do acto mas a mesma não é suficiente para abranger o acto praticado.
III. O abuso de representação implica que o representante tenha ido para além do que o permitiam os poderes concedidos. Os poderes existem, mas são exercidos para fim diferente do pretendido pelo representado. Abusa dos poderes de representação o representante que, embora actuando dentro dos limites formais dos poderes conferidos, utiliza conscientemente esses poderes de modo e em sentido substancialmente contrario ao fim ou indicações do representado.
IV. Mesmo que a procuração não seja restritiva quanto a data possível para que o procurador pudesse realizar o negócio consigo mesmo, valerão as condições que tenham sido estabelecidas fora dela, em que representante e representado convencionam que os poderes transmitidos só podem ser usados após uma determinada data (condição suspensiva) ou que deixam de poder ser usados após um determinado acontecimento futuro (condição resolutiva).
V. Se a venda é feita consigo mesmo ao abrigo de uma representação abusiva, o negócio é ineficaz, como ineficaz é em relação aos negócios subsequentes que tenham naquela venda a sua base ou fundamento.
Proc. nº 100/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
B (B), do sexo feminino, solteira, maior, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Estrada de ......, n.º ..., Edifício “......”, Bloco ..., ....º andar ..., portadora do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º xxxxxxx(x), intentou no TJB (Proc. nº CV2-11-0043-CAO) contra ---
C (C), do sexo feminino, solteira, maior, de nacionalidade chinesa, portadora do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau, n.º xxxxxxx(x), residente na Avenida de ...... n.ºs ... a ..., Edifício ......, Bloco ..., ....º andar ..., Taipa, Macau, ---
acção declarativa ordinária, ---
pedindo que: ---
1. Se declarasse que a Autora é a proprietária legítima do imóvel situado na Avenida de ...... n.ºs ... a ..., Edifício ......, Bloco ..., ....º andar ..., Taipa, Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o n.º 21...-VI, com o n.º de proprietário 21......G;
2. Se condenasse a Ré a reconhecer o aludido direito da Autora, proibindo a Ré de fazer qualquer negócio que possa perturbar o exercício do direito de propriedade da Autora;
3. Se condenasse a Ré a restituir imediatamente a fracção em causa à Autora.
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Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.
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É contra essa sentença que a autora se insurge no presente recurso, concluindo as respectivas alegações do seguinte modo:
«- A recorrente tem interesse no presente recurso;
- O objecto do recurso é a sentença recorrida - O presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Venerando Tribunal em 2 de Setembro de 2014 que decidiu o seguinte:
“Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e, em consequência, absolve a Ré, C, dos pedidos formulados pela Autora.
Custas pela Autora.
(…)
(…)”
- A recorrente não se conforma com o assim decidido, entendendo que a primeira decisão da sentença recorrida enferma dos vícios de: “erro na apreciação dos factos”, violação da “validade da procuração e princípios para a sua utilização” e “validade, nulidade e anulabilidade do negócio jurídico realizado mediante o “abuso de representação” / “representação sem poderes”.
- Uma vez que conforme o “Contrato-Promessa da Compra e Venda de Imóvel” celebrado em 10 de Março de 2010 entre a Ré C e YYY, a outorga da procuração em causa visa garantir os interesses de YYY.
- Conforme o referido “Contrato-Promessa da Compra e Venda de Imóvel”, a Ré C e YYY combinaram outorgar o instrumento público da compra e venda do imóvel em causa em 10 de Setembro de 2010. Caso não fosse outorgado o referido instrumento público no prazo fixado, conduziria à nulidade da referida compra e venda, prejudicando os interesses legítimos de YYY.
- Através da procuração lavrada pela Ré C, YYY cumpriu os deveres estipulados no “Contrato-Promessa da Compra e Venda de Imóvel”, pelo que, tal negócio é válido.
- Não há qualquer facto que prove que o negócio jurídico da outorga do instrumento público realizado em 10 de Setembro de 2010 por YYY mediante a referida procuração constitui o “abuso de representação”;
- Nem há qualquer norma que estipule que o “abuso de representação” produz o efeito jurídico da “representação sem poderes”.
- Mais ainda, a Ré C nunca adoptou qualquer medida necessária e eficiente para impugnar a nulidade ou a anulabilidade do negócio jurídico realizado por YYY em 10 de Setembro de 2010 ou do negócio jurídico realizado entre YYY e a recorrente em 1 de Abril de 2011.
- Nos termos dos artigos 261.º, 262.º, 279.º a 287.º do Código Civil, pode-se reconhecer que a recorrente adquiriu o direito de propriedade do imóvel em causa e é eficaz a terceiro.
- O acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no recurso do processo civil n.º 12/2013, de 4 de Junho de 2014, no qual se referiu que foi fixado um prazo para a utilização duma procuração, estipulando-se que a procuradora não poderá utilizar a procuração dentro de um prazo fixado. As circunstâncias deste acórdão são basicamente idênticas às do presente processo.
- Pelos acima expostos, por provados os factos e nos termos dos fundamentos de direito invocados pela recorrente no recurso, vem solicitar ao Tribunal Superior que profira a decisão nos termos da lei, julgue procedente o recurso interposto pela recorrente e revogue a sentença recorrida, e em consequência, declare procedentes os pedidos, formulados pela recorrente em sede da primeira instância».
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A ré não respondeu ao recurso.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II - Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
« - A fracção autónoma situada na Avenida de ...... n.ºs ... a ..., Edifício ......, Bloco ..., ....º andar ..., Taipa, Macau, está descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o n.º Y21...- VI (alínea A) dos factos assentes).
- Em 1 de Abril de 2011, por escritura pública de compra e venda celebrada com YYY, a Autora adquiriu a aludida fracção (alínea B) dos factos assentes).
- Através da inscrição n.º 21......G, de 4 de Abril de 2011, a Autora é a actual proprietária da fracção autónoma mencionada na alínea A (alínea C) dos factos assentes).
- Através da inscrição n.º 19......G, de 10 de Março de 2010, YYY havia inscrito como proprietário da fracção autónoma mencionada na alínea A) (alínea D) dos factos assentes).
- Através da inscrição n.º 18......G, de 15 de Abril de 2009, a Ré havia inscrito como proprietária da fracção autónoma mencionada na alínea A) (alínea E) dos factos assentes).
- Em 10 de Março de 2010, YYY e a Ré celebraram um contrato denominado “Contrato-Promessa de Compra e Venda de Imóvel”, cujo conteúdo se encontra constante do documento de fls. 25 dos autos e se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea F) dos factos assentes).
- A Autora e YYY e a sua esposa ZZZ celebraram um acordo em 16 de Fevereiro de 2011, através do qual a Autora prometeu comprar e estes prometeram vender o imóvel mencionado na alínea A) pelo preço de HKD2.050.000,00, cujo teor se encontra constante de fls. 27 dos autos e se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea G) dos factos assentes).
- Consta do “Acordo complementar” celebrado entre a Ré e YYY em 31 de Março de 2010, que este entregou àquele mais HK$100.000,00. (artigo 7.º da base instrutória)
- De harmonia com o dito “Acordo complementar”, o remanescente do preço da fracção em causa tinha de ser pago até 10 de Março de 2010, no valor de HK$900.000,00. (artigo 8.º da base instrutória)
- Após a celebração da escritura referida em B) dos factos assentes, o irmão da Autora deslocou-se à fracção em causa, pretendendo que a fracção autónoma fosse entregue à Autora. (artigo 9.º da base instrutória)
- A Ré ainda não abandonou a fracção autónoma. (artigo 10.º da base instrutória)
- Em Março e Abril de 2010, por três vezes, a Ré pediu dinheiro emprestado a YYY na quantia total de HK$700.000,00. (artigo 13.º da base instrutória)
- YYY disse que caso a Ré não pagasse o dinheiro emprestado até ao dia 10 de Setembro de 2010, teria que lhe vender a fracção autónoma referida em A) dos factos assentes. (artigo 15.º da base instrutória)
- A Ré aceitou essas condições de empréstimo fixadas por YYY. (artigo 17.º da base instrutória)
- Assim, em 10 de Março de 2010, a Ré a YYY deslocaram-se ao escritório do Advogado e Notário Privado D onde assinaram o contrato referido em F) dos factos assentes. (artigo 18.º da base instrutória)
- No mesmo dia, a Ré outorgou uma procuração com poderes especiais, vulgarmente conhecida por “procuração irrevogável”, conferindo a YYY os mais plenos poderes para administrar, vender, prometer-vender o referido imóvel incluindo poderes para a celebração de negócio consigo mesmo. (artigo 19.º da base instrutória)
- Em 31 de Março de 2010, a Ré contraiu o 2.º empréstimo dos três empréstimos referidos na resposta ao quesito 13.º, no montante de HK$100.000,00. (artigo 21.º da base instrutória)
- No mesmo dia, a Ré e YYY deslocaram-se ao Escritório do Notário Privado D e aí assinaram o contrato referido na resposta ao quesito 7.º. (artigo 22.º da base instrutória)
- Em 15 de Abril de 2010, a Ré contraiu o 3.º empréstimo dos três empréstimos referidos na resposta ao quesito 13.º, no montante de HK$100.000,00, tendo a Ré, para o efeito, deslocado ao 1.º Cartório Notarial de Macau e aí reconhecido a assinatura aposta num novo documento. (artigo 23.º da base instrutória)»
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Acrescentamos ainda os seguintes elementos de facto:
- No dia 10/03/2010 YYY procedeu ao registo na respectiva Conservatória do contrato-promessa celebrado com a ré (fls. 22).
- Esta inscrição, que era provisória por natureza, foi convertida em definitiva em 27/09/2010, mediante a apresentação da escritura de 10/09/2010, que YYY, por si e na qualidade de procurador de C (ré) celebrou consigo mesmo, transmitindo para si próprio a propriedade da dita fracção (fls. 322-329).
- Correu termos um processo crime-contra YYY, tendo sido objecto de acusação por crime de usura (fls. 148 e sgs. dos autos), que viria a dar lugar a instrução e posteriormente autuado como autos de processo comum singular, tendo nele sido formulado um pedido de indemnização cível (Proc. nº CR1-11-0341-PCS: fls. (fls. 159 e sgs.).
- No processo-crime foi proferido acórdão datado de 26/11/2013, e já transitado em julgado, que absolveu o réu YYY do crime e julgou improcedente o pedido de indemnização cível (fls. 91 e sgs. do apenso “traduções”).
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III - O Direito
1- A posição da autora, B, muito resumidamente, foi esta:
Adquiriu por escritura de 1/04/2011 um determinado prédio (identificado na p.i.) a YYY. Este, porém, disse que nele vivia a anterior proprietária e que após a compra que a esta fez a deixou lá viver durante seis meses.
Simplesmente, a ré, C, não chegou a abandonar o prédio, mesmo sem ter fundamento para a sua ocupação. Pretende, por isso, a autora que o prédio lhe seja restituído.
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2 - A ré, que foi proprietária do prédio, trouxe, porém, ao processo outra versão dos factos.
Diz que, por ter o vício do jogo, teve que por três vezes pedir dinheiro emprestado a um amigo, YYY. O dinheiro teria que ser devolvido até ao dia 10/09/2010, sob pena de ter que transferir a propriedade do imóvel para o seu nome. Para que isso fosse garantido, no dia 10/03/2010 celebraram um contrato-promessa de compra e venda (alínea f) dos Factos) juntamente com uma procuração com poderes especiais, a qual conferiu ao mutuante, Y, plenos poderes para vender, incluindo para celebrar negócio consigo mesmo.
Porém, Y no mesmo dia 10/03/2010, abusando da procuração, e contra as estipulações do contrato-promessa, celebrou negócio consigo mesmo de compra e venda, registando-o.
Foi instaurado um processo crime contra Y por crime de usura, com pedido cível que foi julgado improcedente.
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3 - O julgamento da matéria de facto revelou que:
A ré realmente contraiu alguns empréstimos junto de Y, com a condição de que a ré teria que lhe vender a casa se o dinheiro não lhe fosse devolvido até 10/09/2010. A ré aceitou as condições e por isso deslocaram-se ao escritório de um advogado, para celebrarem o contrato-promessa (fls. 2-6 do apenso “traduções”) e a procuração irrevogável acima referidos (fls. 144-147 dos autos).
Y, utilizando a referida procuração, celebrou a escritura de compra e venda consigo mesmo no dia 10/09/2010, procedendo ao registo da aquisição na respectiva Conservatória.
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4 - A sentença, com base nos factos provados, considerou que a autora é presumida proprietária por ter registado a aquisição da fracção, nos termos do art. 7º do CRP.
Considerou depois que a ré pretendeu impugnar a validade da compra que a autora teria feito a Y. Mas, como não pediu o cancelamento do registo, não podia apreciar essa validade, face ao que consta do art.8º do CRP.
Prosseguindo, entendeu que a escritura de 10/09/2010 foi feita em abuso de representação, na medida em que esse foi o último dia acordado para a devolução do dinheiro do empréstimo pela ré a Y. E, assim, nos termos do art. 261º, nº1, do Código Civil, tal negócio seria ineficaz em relação à ré, porque por ela não ratificado. E se não eficaz em relação à ré, também o não é o celebrado pelo Y com a autora.
E deste modo julgou improcedente a acção.
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5 - No recurso, a autora defende que a sentença não esclareceu as circunstâncias por que concluiu que Y sabia da utilização abusiva da procuração que detinha da ré, existindo quanto a isso erro na apreciação dos factos.
E acrescenta que, de resto, aquele Y cumpriu o acordo do empréstimo, pois que o último dia do prazo para a devolução era precisamente o dia 10/09/2010, aquele em que foi lavrado o instrumento público de compra e venda. E pergunta até: por que razão não apareceu a ré no último dia do prazo fixado no contrato-promessa, nem contactou Y para tratar da venda? Daí retira a conclusão de que não foi abusivo o uso da procuração que a ré lhe tinha emitido.
Diz depois que a procuração em causa é um documento de representação voluntária em que não foram estabelecidas cláusulas limitativas para a sua utilização, podendo o procurador Y exercer os respectivos poderes livre e autonomamente e sem condições. Assim, ao contrário do que o asseverou a sentença recorrida, nada impedia a execução da procuração.
Acha ainda a recorrente que ao caso se não pode aplicar o disposto nos arts. 261º e 262º do CC. Na verdade, a ré mostrou através de factos instrumentais que não tinha vontade de reembolsar o empréstimo, caso contrário não teria ido ao banco no dia 13/09/2010 para pagar a prestação da hipoteca bancária. Assim, a utilização da procuração não pode significar uma vontade de abuso dos poderes de representação.
Por fim, desde 10/09/2010 a ré nunca instaurou qualquer acção declarativa de nulidade desse negócio de compra e venda realizado ao abrigo da referida procuração.
Em remate, acha que não sendo o caso de representação sem poderes, quando muito poderia ser de negócio jurídico anulável. Será pelo menos eficaz para a autora, terceiro de boa fé (art. 284º, nºs 1 e 4, do CC).
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6 - Apreciando
6.1 - Como já se disse, a sentença recorrida considerou que a situação que levou Y a efectuar a escritura de compra e venda em seu favor, ao abrigo da procuração irrevogável, caracterizava um exercício abusivo da representação, nos termos do art. 262º do CC.
Antes de mais nada, o que parece emergir de todo este imbróglio é um contrato-promessa (al. F) da Matéria Assente) que serviria como garantia negociada da devolução do dinheiro que Y emprestou à ré.
Mas, enfim, isso não está em discussão.
A recorrente acha que a sentença não esclareceu as circunstâncias por que concluiu que o Y sabia da utilização abusiva da procuração que detinha da ré. E por isso, opina que houve erro na apreciação da matéria de facto.
Não tem razão. É muito claro e perceptível que a conclusão a que a sentença chegou assenta no facto de Y ter realizado a escritura antes do termo que tinha sido conferido no contrato-promessa celebrado entre si e a ré (10/09/2010). Este era, efectivamente, o último dia. Assim, a escritura que o representante Y podia celebrar consigo mesmo ao abrigo da procuração apenas podia ser outorgada a partir do dia 11/09/2010, inclusive, tendo em conta a matéria da resposta ao art. 15º da BI.
É certo que a data da realização da escritura não foi levada à matéria assente, nem à Base Instrutória. Contudo, não deixou a sentença de lhe fazer referência na fundamentação (v.g., págs. 9, 13 e 14, da sentença, na versão traduzida no apenso”traduções”).
De qualquer maneira, porque o TSI julga de facto e de direito (art. 39º da LBOJ), não deixou de a introduzir no complemento da factualidade acima dada por provada em II.
E dela fica evidente que o representante Y sabia - ou devia saber - que estava a fazer um uso contra a estipulação da procuração em causa.
Improcede, pois, esta matéria do recurso.
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6.2 - A recorrente está, por outro lado, crente que Y cumpriu o acordo do empréstimo e a condição da procuração, uma vez que o último dia do prazo para a devolução era precisamente o dia 10/09/2010, aquele em que foi lavrado o instrumento público de compra e venda.
Ora, este modo de ver as coisas não é certo. Efectivamente, se a ré tinha que transmitir o bem para o nome do representante, caso não devolvesse o dinheiro emprestado até ao dia 10/09/2010, está bom de ver que nunca podia efectivamente realizar a transmissão do bem para em seu nome no último dia do prazo, como já se disse. Na contagem de um prazo que termine em dia certo, deve entender-se que ele termina às 24 horas do dia correspondente, como resulta do art. 272º, al. b), do CC
E nem se diga que a ré não apareceu no último dia do prazo fixado no contrato-promessa, nem contactou Y para tratar da venda.
Em primeiro lugar, nada disso está provado na matéria assente ou na provada a partir da base instrutória e, portanto, não vale a pena perder tempo a laborar com factos não demonstrados.
Por outro lado, que motivo tinha ela para aparecer no dia último do prazo fixado no contrato-promessa para tratar da venda, se a celebração do contrato não tinha que ser feita em 10/09/2010? Ora, se a transmissão da propriedade do bem só podia ser feita após o último dia (a partir de 11/09/2010) e se a ré nem tinha que aparecer (pois Y tinha uma procuração que lhe permitia realizar o negócio consigo mesmo), para que fim haveria ela de aparecer?! Se ela quisesse aparecer, seria apenas para efectuar a devolução do dinheiro emprestado (de acordo com a resposta ao art. 15º da BI). Mas, Y, pelos vistos, nem esperou pelo fim do dia 10/09/2010.
Não tem, pois, razão a recorrente.
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6.3 - Alega a recorrente, também, que a procuração em causa é um documento de representação voluntária em que não foram estabelecidas cláusulas limitativas para a sua utilização, podendo o procurador Y exercer os respectivos poderes livre e autonomamente e sem condições. Assim, ao contrário do que o asseverou a sentença recorrida, nada impedia a execução da procuração.
A procuração de fls. 144 e sgs. realmente não apresenta cláusulas limitativas. Contudo, além de não estar em causa a sua validade, nem o seu conteúdo, não podemos deixar de conjugar o seu teor com o contexto da prova ao art. 15º da BI.
E sobre isso, teremos oportunidade de voltar ao assunto.
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6.4 - Prosseguindo, acha ainda a recorrente que ao caso se não pode aplicar o disposto no art. 261º e 262º do CC, porque dos autos resulta que a ré não tinha vontade de reembolsar o valor empréstimo. E esta conclusão retira-a a recorrente do facto de ter ido ao banco no dia 13/09/2010 para pagar a prestação da hipoteca bancária. Assim, a utilização da procuração não pode significar uma vontade de abuso dos poderes de representação.
Ora, esta matéria circunstancial, além de não permitir a conclusão a que a recorrente chega com a sua invocação, também não está adquirida nos autos, por não ter sido levada à factualidade assente, nem à base instrutória.
Também não podemos retirar da circunstância de desde 10/09/2010 a ré não ter instaurado qualquer acção declarativa de nulidade desse negócio de compra e venda realizado ao abrigo da referida procuração qualquer subsídio ou elemento indirecto de prova no sentido de ela se ter desinteressado da sorte desse negócio.
Ora bem. Também sobre este assunto não podemos acompanhar a recorrente. Com efeito, como resulta dos factos acima expostos, foi movido contra Y um processo-crime, em que foi deduzido um pedido de indemnização cível. Cremos que isto já é bastante para revelar uma postura de inconformação com a atitude de Y.
De resto, nem sequer esse dado serviria para destruir qualquer invalidade ou conferir eficácia ao negócio (ineficaz) celebrado sem poderes de representação ou com abuso de representação. Nada está previsto na lei que pudesse dar à omissão impugnativa aludida pela recorrente o sentido que ela retira.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
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6.5 – A finalizar, acha que não sendo o caso de representação sem poderes, quando muito poderia ser de negócio jurídico anulável. Será pelo menos eficaz para si, autora, por se achar terceiro de boa fé (art. 284º, nºs 1 e 4, do CC).
Eis-nos chegados, enfim, ao cerne da questão do recurso: apurar se o caso se pode caracterizar por uma actuação por parte de Y em representação sem poderes ou de abuso de representação.
Assim equacionado, o problema é de representação voluntária, claramente (arts. 255º e sgs. do CC). E sobre a representação de poderes dispõe o art. 261º, com o seguinte conteúdo:
1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. Contudo, o negócio celebrado por representante sem poderes é eficaz em relação ao representado, independentemente de ratificação, se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justificassem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do representante, desde que o representado tenha conscientemente contribuído para fundar a confiança do terceiro.
3. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
4. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
5. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.
Sobre esta figura, Pedro Nunes Rodrigues observou:
“O que caracteriza a representação sem poderes é a actuação de uma pessoa em nome de outra, sem estar investida dos necessários poderes, sem estar legitimada para o efeito no momento da prática do acto, ou porque não tem nem nunca teve essa legitimidade, ou porque, tendo-a tido, ela entretanto cessou, ou porque, finalmente, tem legitimidade representativa quando da prática do acto mas a mesma não é suficiente para abranger o acto praticado (…)”1.
Outra situação é a do abuso de representação que, nos termos do art. 262º do Código, implica que o representante tenha ido para além do que o permitiam os poderes concedidos. Todavia, este regime, que se molda pelo da representação sem poderes, obriga a que a outra parte conheça ou deva conhecer o abuso. Só em tal circunstância o negócio se pode dizer ineficaz.
Mas, sobre o abuso afirmou o autor atrás citado:
«No abuso de poderes, os poderes existem, mas são exercidos para fim diferente do pretendido pelo representado. Abusa dos poderes de representação o representante que, embora actuando dentro dos limites formais dos poderes conferidos, utiliza conscientemente esses poderes de modo e em sentido substancialmente contrario ao fim ou indicações do representado»2.
Também este TSI, em Ac. de 27/09/2012 (Proc. nº 367/2012) teve oportunidade de explanar sobre o assunto:
“O interesse do mandatário ou de terceiro no mandato só é relevante para efeitos da sua consideração como mandato in rem propriam ou de interesse comum, quando tenha sido valorado pelas partes em termos de o mandante ter acedido a que o contrato seja também um instrumento de tutela jurídica da posição do outro interessado. Mas é claro que apesar do dominus não poder instruir o procurador, tal não significa que o procurador possa exercer os poderes de representação arbitrariamente e sem limite ou critério. O interesse do procurador não é um interesse subjectivo, que pode mudar conforme a sua vontade. O procurador não pode exercer os poderes que resultam da procuração de acordo com o seu livre arbítrio, tem que se conformar com o interesse que resulta da relação subjacente, não o podendo violar. Caso o procurador viole o interesse relevante, age em abuso de representação. Isso implica a aplicação do regime jurídico do artº. 262º do CC, podendo ainda dar causa a responsabilidade civil”.
Concluiu este aresto que “age em abuso de representação de poderes o procurador munido de uma procuração para poder vender uma dada fracção e poder celebrar negócio consigo mesmo, existindo um acordo para que essa procuração só pudesse ser usada decorridos 7 anos”.
Ora bem. Olhando para o teor da procuração de fls.144 a 147 dos autos, logo nos apercebemos que pela sua alínea i) o procurador Y podia celebrar negócio consigo mesmo, dentro do quadro substantivo outorgado nas alíneas anteriores, em que avultava a possibilidade de compra e venda. Ou seja, podia vender a fracção em causa a si próprio.
É certo que, quando o art. 262º do Código fala em abuso de poderes – numa figura que se nos afigura próxima do “abuso do direito” do art. 326º, infra – está necessariamente a partir de um quadro de poderes estritamente definidos.
Pode no entanto suceder, segundo cremos, que, dentro dos limites da procuração, as partes estabeleçam um consenso sobre o modo e o tempo do exercício dos poderes pelo representante. É o que frequentemente sucede, fora do documento escrito, quando representante e representado acordam que os poderes transmitidos só podem ser usados após uma determinada data (condição suspensiva) ou que deixam de poder ser usados após um determinado acontecimento futuro (condição resolutiva).
Bom. Verdade é que a dita procuração não estabelece quaisquer condições temporais para o exercício dos poderes concedidos. Dela se retira, portanto, que o uso dos poderes podia ser feito sem restrições, logo a todo e qualquer momento desde a data da outorga da referida procuração.
Todavia, os autos provam que a procuração se insere num ambiente holístico e é fruto, por conseguinte, de uma situação mais vasta de que resultou também o acordo a que se refere as respostas aos arts. 15º e 17º da BI. Ou seja, entre Y e a ré foi estabelecida uma convenção, segundo a qual o dinheiro que aquele a esta emprestou deveria ser devolvido até ao dia 10/09/2010, sob pena de a fracção em apreço lhe ter que ser vendida.
Ora, aquela procuração tem que ser interpretada em conjugação com esta convenção, pois só assim se consegue uma harmonização e compatibilização das vontades declaradas pelos seus autores, Y e ré.
Quer isto dizer que o exercício pelo representante Y dos poderes conferidos pela procuração só estava temporalmente legitimado a partir de 11/09/2010 e condicionado à hipótese de a ré não ter restituído até ao dia da véspera, inclusive, o valor das importâncias em dinheiro emprestados por aquele.
O procurador Y sabia bem que não podia fazer a venda consigo mesmo ao abrigo da procuração, enquanto não tivesse findado o prazo de que a ré dispunha para liquidar a dívida do empréstimo.
Logo, estamos perante um abuso de representação, porque, contra a convenção entre ambos que estabelecera um prazo a partir do qual a venda poderia efectuar-se, o representante fez a si próprio a venda da fracção.
É o mesmo que dizer que o caso é de venda ineficaz. Ineficaz, dada a remissão que o art. 262º, do CC faz para o artigo precedente, na medida em que o beneficiário do negócio, aquele que no contrato figura como a “outra parte”, é o próprio representante.
Mesmo que o art. 262º implique que a contra-parte conheça ou deva conhecer o abuso para que a ineficácia prevista no art. 261º se estenda ao negócio celebrado com o representante abusador, a verdade é que, quando o negócio celebrado por este é consigo mesmo então o abuso fica desde logo automaticamente demonstrado.
Andou bem, pois, a sentença recorrida.
E se o negócio de 10/09/2010 celebrado consigo mesmo por Y, em abuso de representação da ré, é ineficaz em relação ao representado, ineficazes em relação a ela são também os negócios subsequentes que naquele têm a sua base ou que nele repousam o seu fundamento, como é o contrato-promessa entre Y e autora e como é, também, a compra e venda celebrada entre esses mesmos promitentes3.
E a conclusão acerca da ineficácia não pode deixar de alcançar-se, uma vez que a única condição prevista na lei para que se pudesse conferir eficácia ao negócio era a ratificação (cfr. art. 261º, nº1, do CC), que na situação em apreço nunca foi obtida. Prova do contrário até o mostra o processo-crime instaurado contra Y por banda da ré e o pedido civil formulado contra aquele representante.
Finalmente, o disposto no nº2, do mesmo art. 261º do CC também não acode ao caso “sub judice”, pois que da atitude da ré representada não resulta que tenha contribuído para fundar a confiança dos direitos de terceiro4.
Neste sentido, não merece censura a decisão recorrida.
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IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
TSI, 24 de Setembro de 2015
(Relator)
José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
1 Direito Notarial e Direito Registral, Almedina, 2005, pág.149
2 Ob. cit., pág. 148. No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., pág. 249. Ver também, Acs. STJ de 06/04/83, in BMJ nº. 326, pág. e de 29/04/2003, no Proc. 907/03.
3 Neste sentido, o Ac. do TUI, de 10/10/2012, Proc. nº 39/2012.
4 No mesmo sentido, ver o citado Ac. do TUI, de 10/10/2012.
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100/2015 4